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João Marco Braga da Cunha*, da Hashdex, é o colunista convidado desta semana.
Recentemente, o Stock Pickers, um dos principais podcasts sobre finanças e investimentos no Brasil, trouxe a discussão sobre alocação em ouro com a participação dos convidados Bruno Cordeiro, da Kapitalo, e Felipe Dexheimer, da XP (confira clicando aqui).
O programa foi uma resenha riquíssima sobre a commodity, passando pelo histórico, comparações com outros metais, as propriedades como ativo de investimento nos diferentes regimes macroeconômicos e, é claro, o cenário atual e as perspectivas para o futuro, incluindo a possibilidade de mineração espacial, com algumas visões contrapostas bastante interessantes.
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Foi uma verdadeira aula sobre o tema.
Já no terço final do programa, porém, o assunto tomou um leve desvio de rumo e chegou ao Bitcoin, no contexto de reservas de valor. Vale a pena recapitular alguns dos pontos levantados e reexaminá-los.
Um dos apresentadores perguntou aos convidados se acreditavam que havia alguma chance do Bitcoin substituir o ouro na sua função de reserva de valor. Na formulação da pergunta, foi descrita, com tom cético, a controversa tese de que o ativo digital poderia atingir o valor de US$ 100 mil ao absorver os US$ 8 trilhões atualmente alocados no metal.
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A descrença do apresentador na tese que ele descreveu é justificável. Uma primeira questão em relação a ela é que, presentemente, o Bitcoin ainda possui um grande obstáculo a superar para tornar-se uma reserva de valor stricto sensu, que vem a ser a sua alta volatilidade.
Ademais, ainda que esse problema fosse sanado, há uma boa dose de especulação a respeito de qual seria a parcela de reservas alocada entre os dois ativos. Por fim, há, na tese, um passo de dedução lógica bastante frágil que assume que o preço é a variável de ajuste entre a demanda por reserva em uma determinada forma e a quantidade disponível da mesma. Via de regra, o preço de um ativo é determinado por suas oferta e demanda nos mercados e não pelo montante que os investidores querem manter alocado no mesmo. Somando-se essas três vulnerabilidades, a tese parece, de fato, bem pouco sólida.
A despeito das fragilidades apontadas acima, Felipe Dexheimer seguiu um caminho completamente diferente em sua resposta. Seu argumento foi de que, ao contrário do ouro, cujo único substituto viável é a também rara platina, o Bitcoin não seria, de fato, escasso, uma vez que existem centenas de outras criptomoedas e é extremamente fácil criar novas.
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Entretanto, ocorre que o que faz o Bitcoin ser o que ele é hoje não são meramente as linhas de código do seu programa computacional, essas sim facilmente replicáveis. São as cinquenta milhões de carteiras já existentes, sendo mais de um terço ativas, as dezenas de milhares de mineradores ao redor do mundo que processam, atualmente, cerca de 150 exahashes por segundo e garantem a segurança da rede, as dezenas de exchanges e custodiantes, que viabilizam a negociação e o armazenamento do ativo, entre outros fatores.
Uma rede de agentes engajados como essa não se organiza facilmente, ainda mais quando já existe uma estabelecida. É por isso que, apesar dos diversos projetos já concebidos com a ambição de desbancar o Bitcoin, ele segue extremamente dominante entre as criptomoedas, e que a facilidade de criação de novos criptoativos não afeta sua escassez.
Bruno Cordeiro, por sua vez, iniciou a sua resposta com uma boa digressão sobre valor de uso, exemplificando com o papel do dólar nas transações internacionais. Seguindo essa linha, ele argumenta que o Bitcoin é extremamente ineficiente como meio de pagamento, mas que possui uso em atividades ilícitas, alegando opacidade das transações que ocorrem na rede.
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Na verdade, porém, as transações entre carteiras na rede do Bitcoin são absolutamente transparentes, apesar do possível anonimato dos beneficiários finais. A blockchain é, basicamente, um registro público de todas as transações já realizadas. A opacidade passa a existir na transição entre a criptomoeda e o sistema financeiro tradicional, ou seja, quando a criptomoeda é trocada por moeda fiduciária, é possível que se perca o rastro.
Ainda assim, há casos relevantes de crimes solucionados através do rastreamento das movimentações na rede do Bitcoin. Pesquisas recentes indicam que uma parcela bem pequena de transações com essa criptomoeda são associadas a atividades ilegais apesar de, no passado, haver indícios de uma fração significativa (o que talvez explique a grande difusão dessa ideia).
Sobre o Bitcoin ser uma opção ruim como meio de pagamento, é preciso pontuar alguns fatos. Primeiro, da forma como está programado atualmente, o Bitcoin propõe-se a operar como a camada mais basal de um sistema internacional descentralizado de liquidações, semelhante ao ouro durante a vigência do tratado de Bretton-Woods, e não para pequenos pagamentos.
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Assim sendo, a comparação apresentada por Dexheimer entre a capacidade de processamento de pagamentos das redes da Visa e do Bitcoin, que estão em pontas opostas do sistema de liquidação, não é pertinente.
Por fim, apesar de não ser essa a sua finalidade, a realidade é que o uso do Bitcoin para transferências internacionais de valores é extremamente competitivo em termos de custo e tempo, especialmente para grandes quantias.
O Bitcoin é relativamente novo, especialmente quando comparado ao ouro, e se transforma ao longo do tempo. Ainda existem ideias imprecisas a seu respeito circulando, o que torna fundamental o debate aberto pois, como disse Leo Tolstoy, “a verdade é obtida como o ouro, não deixando-o crescer, mas lavando dele tudo o que não é ouro”.
*Bacharel e Mestre em Economia, pela PUC-Rio e pela EPGE-FGV, e Mestre e Doutor em Engenharia Elétrica, também pela PUC-Rio. Há mais de uma década no mercado financeiro, já trabalhou nas áreas de quant trading, private equity, risco de mercado, pesquisa macroeconômica e gestão de portfólios, posição que atualmente ocupa na Hashdex.