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A versão da Proposta de Emenda à Constituição que trata da reforma tributária dos impostos sobre o consumo (PEC 45/2019) aprovada pelo Senado Federal não trouxe mudanças expressivas em relação ao texto que saiu da Câmara dos Deputados, mas promoveu ajustes “incrementais” e incluiu alguma complexidade ao novo sistema, em razão da criação de novos regimes especiais a serem detalhados em legislação posterior.
É o que avalia a advogada Vanessa Canado, coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper e uma das autoras da versão original da proposta em tramitação no Congresso Nacional. Em entrevista ao InfoMoney, a especialista apontou como retrocessos a inclusão de tratamento diferenciado para setores como turismo e a concessão de alíquota reduzida para profissionais liberais, com desconto de 30% em relação à padrão.
Para ela, tratamentos favorecidos e regimes específicos, em alguma medida, prejudicam os objetivos estabelecidos pela reforma tributária: simplificação, transparência, estímulo à eficiência e à atividade econômica, redução do contencioso, correção de distorções e adequação ao padrão internacional mais moderno de Imposto sobre o Valor Agregado (IVA).
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“As alíquotas menores reduzem a simplificação, porque uma atividade vai ter uma alíquota diferente. Então, haverá uma obrigação acessória diferente, um campo da nota fiscal diferente, vai haver uma discussão se um contribuinte está enquadrado na alíquota menor ou não. (…) Essas diferenças sempre diminuem a simplificação e aumentam a possibilidade de contencioso”, explica.
Mesmo assim, Canado acredita que as mudanças implementadas pelos senadores não deverão produzir grandes diferenças na alíquota padrão calculada há algumas semanas pelo Ministério da Fazenda para os dois tributos que serão criados com a reforma − a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS, em nível federal) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS, em nível subnacional) − em até 27,5%.
“Não me parece que as exceções do Senado vão aumentar muito essa previsão do Executivo de alíquota. Isso porque, em termos de benesses, tratamentos favorecidos, só houve a inclusão de turismo e profissionais liberais. Sendo que, no caso dos profissionais liberais, quando a alíquota reduzida em 30% for aplicada em operações entre empresas, ela é neutra”, observa.
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“As operações que chamamos de B2B, entre empresas, seja no setor de turismo, seja no segmento de profissionais liberais, reduzem a base tributária só quando são prestadas ao consumidor final, no B2C, e considerando que não é uma empresa do Simples [Nacional], porque neste caso vai acabar pagando o tributo de qualquer forma”, diz.
Veja os destaques da entrevista:
InfoMoney: O Senado Federal realizou uma série de mudanças no texto aprovado pela Câmara dos Deputados em julho. Qual balanço você faz sobre a nova versão? Quais são os principais avanços e retrocessos?
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Vanessa Canado: As principais mudanças feitas pelo Senado foram incrementais àquilo que já havia sido considerado pela Câmara. Com exceção da tributação sobre extração de 1% pelo Imposto Seletivo, o restante foi sobre aquilo que já havia sido inserido pelos deputados, não foram propriamente novidades.
Além disso, a grande maioria das mudanças foi na inclusão de alguns regimes especiais − não necessariamente favorecidos − e alterações na transição, especialmente no que diz respeito à transição do ICMS. Houve um aumento do dinheiro destinado ao Fundo [Nacional] de Desenvolvimento Regional, houve a previsão de criação de um fundo exclusivo para a Amazônia Ocidental e o Amapá e a substituição do Imposto Seletivo pela Cide − também para manter a competitividade da Zona Franca [de Manaus]. Isso tudo tem a ver com a transição, porque hoje a maioria desses benefícios fiscais de ICMS e IPI é que lideram a ideia de desenvolvimento regional. Agora, isso vai passar a ser feito de forma orçamentária, não mais mexendo no desenho do tributo.
Eu não diria que são avanços ou retrocessos. Essa parte da transição é totalmente ajustável. São sempre avanços que são feitos se pensarmos na possibilidade política de aprovação. A inclusão de tratamentos diferenciados e de mais tratamentos favorecidos para turismo e profissionais liberais eu considero retrocessos, porque são benesses que diminuem a tributação para alguns aumentando para os outros.
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IM: O Ministério da Fazenda estimou que o parecer apresentado pelo relator Eduardo Braga em 25 de outubro exigiria uma alíquota padrão de até 27,5% com IBS e CBS para manter a carga tributária atual. Com as novas exceções e concessões feitas na CCJ e no plenário, corremos risco de ter uma alíquota superior a 30%?
VC: Não me parece que as exceções do Senado vão aumentar muito essa previsão do Executivo de alíquota. Isso porque, em termos de benesses, tratamentos favorecidos, só houve a inclusão de turismo e profissionais liberais. Sendo que, no caso dos profissionais liberais, quando a alíquota reduzida em 30% for aplicada em operações entre empresas, ela é neutra. Então, se um escritório de advocacia presta serviço para uma empresa, embora ele vá aplicar uma alíquota 30% menor, a empresa que está tomando o serviço também vai tomar um crédito menor. As operações que chamamos de B2B, entre empresas, seja no setor de turismo, seja no segmento de profissionais liberais, reduzem a base tributária só quando são prestadas ao consumidor final, no B2C, e considerando que não é uma empresa do Simples [Nacional], porque neste caso vai acabar pagando o tributo de qualquer forma. Portanto, eu não acredito na alteração dessa alíquota padrão que já foi calculada pelo Executivo.
IM: Os principais objetivos da reforma tributária envolvem simplificação, transparência, estímulo à eficiência e atividade econômica, redução de contenciosos jurídicos e administrativos, correção de distorções e adequação do Brasil ao padrão internacional. Quão bem-sucedidos fomos em cada um deles?
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VC: Todos esses itens − simplificação, transparência, estímulo à eficiência e à atividade econômica, redução do contencioso, correção de distorções e adequação ao padrão internacional mais moderno de IVA… Os tratamentos favorecidos e os tratamentos especiais, os regimes diferenciados e os regimes específicos da PEC são os itens que basicamente reduzem todos os objetivos colocados.
As alíquotas menores reduzem a simplificação, porque uma atividade vai ter uma alíquota diferente. Então, haverá uma obrigação acessória diferente, um campo da nota fiscal diferente, vai haver uma discussão se um contribuinte está enquadrado na alíquota menor ou não. Se, por exemplo, dermatologia estética vai estar incluída no conceito de saúde ou não. Se atendimento ambulatorial é diferente de atendimento em consultório médico. Haverá essas diferenças que, na verdade, sempre diminuem a simplificação e aumentam a possibilidade de contencioso.
Existe uma frase ótima de um professor titular de Oxford que diz: uma vez que se cria uma distinção, cria-se uma distorção. E eu adiciono a ela que também se cria mais complexidade, porque você acaba dividindo o mundo necessariamente em duas partes: o que é turismo e o que não é, o que é saúde e o que não é, o que é educação e o que não é. Toda divisão gera um debate sobre qual lado você está. O contribuinte, claro, vai querer ficar do lado que tem tratamento favorecido, e o Fisco o oposto. Com isso, há litígio, além das distorções econômicas, que já são bem conhecidas.
IM: Críticos ao texto aprovado dizem que ele não garante o fim da guerra fiscal entre os Estados. Existe uma preocupação com incentivos fiscais mantidos em uma transição até 2032, além do risco de futuramente o parlamento prorrogar essa condição, apesar da aprovação da PEC. Qual sua avaliação sobre isso? O texto peca no objetivo de pôr fim a essa disputa entre os entes subnacionais?
VC: Confesso que não entendi esse argumento. Vi ele ser construído pelo [economista] Felipe Salto, mas não consegui entender muito bem como ele mantém a guerra fiscal entre os Estados. Se sou uma empresa que vai investir em um Estado usando benefícios da guerra fiscal, eu já sei que eles vão acabar em 2032 e vão começar a ser reduzidos em 2029, sendo que, se me forem dados agora, não necessariamente vão ser compensados pelo Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais.
Acho meio simbólico e desnecessário colocar [na PEC] uma vedação à possibilidade de concessão de novos incentivos fiscais, porque isso parece um pouco óbvio. Estou até vendo o setor privado deixar de fazer novos investimentos cujo benefício fiscal ia perdurar por mais tempo. Primeiro, porque só os benefícios fiscais dados até maio deste ano é que vão ser compensados. E, segundo, porque o tributo está previsto para acabar a partir de 2029.
Não consigo entender como funcionaria a guerra fiscal durante o período de transição, e muito menos como ficaria eventualmente uma guerra fiscal depois de 2032, dado que não importa onde a empresa esteja, o que importa é para onde ela vende, já que o princípio do destino está mantido intacto na PEC. Para mim, o próprio desenho do IVA com o princípio do destino acaba com a guerra fiscal.
IM: Na PEC aprovada, há mais de 90 menções a leis complementares a serem criadas. Quais são suas expectativas e preocupações para esta segunda etapa do debate sobre a reforma tributária?
VC: Acho um pouco óbvia a questão da lei complementar. É curioso as pessoas fazerem essa crítica, porque é lógico que na Constituição você tem que colocar os princípios, e, depois precisa detalhar em uma lei. Se é lei complementar ou ordinária, na minha visão é menos relevante. Mas o fato de a Constituição mencionar é óbvio, não precisava nem mencionar, porque não dá para detalhar nela como vai funcionar o Comitê Gestor [do IBS], como vão ser apropriados os créditos… Já temos até coisa demais que está na Constituição e deveria estar em lei.
IM: Durante a tramitação no Senado Federal, o volume de exceções aumentou, a possibilidade de cobrança de contribuições por Estados do Centro-Oeste até 2043 voltou, os repasses ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional foram elevados para R$ 60 bilhões e foi incluída a previsão de um fundo para Estados da região Norte que com Áreas de Livre Comércio. As mudanças tornaram a reforma mais “cara” para a União. O governo, porém, sustenta que a elevação de PIB potencial fará a conta valer a pena. Qual sua avaliação sobre isso? A reforma tributária superou o preço que deveria custar para o governo federal para sair do papel?
VC: Sendo bem honesta, acho que esse é um problema que vai ser resolvido mais adiante. Se a União vai ter ou não dinheiro para bancar todos esses fundos, é algo que depende muito mais das ações do governo agora, em termos de contenção de gastos ou pelo menos de diminuição da elevação dos gastos, e as medidas de ajuste fiscal. Elas têm menos a ver com a reforma tributária e mais com a sustentabilidade fiscal da União.
A União se comprometeu com os valores do Fundo de Desenvolvimento Regional na Constituição. Os demais têm a previsão de um fundo, mas vão depender de dinheiro. E acho que não haveria outra forma de conseguir apoio dos entes federativos sem colocar dinheiro de algum modo em poder dos governadores e prefeitos, dado que é com isso que, em princípio, eles vão poder fazer ações direcionadas à população e alcançarem seus objetivos políticos.
Eu não diria que superou o preço, porque, na verdade, não havia preço. Essa questão política olha menos para o presente e para as maneiras, e muito mais para a barganha entre os entes federativos.