Reforma tributária “contrata” impasse futuro com trava de 26,5% para novos impostos

Teto para alíquota de CBS e IBS pode exigir que governo tenha que enviar novo projeto de lei para o Congresso Nacional a partir de 2031 para rever benefícios tributários

Marcos Mortari

O plenário da Câmara dos Deputados durante sessão deliberativa (Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados)
O plenário da Câmara dos Deputados durante sessão deliberativa (Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados)

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Mudanças introduzidas na reta final das discussões sobre o projeto de lei complementar (PLP 68/2024) que trata da regulamentação da reforma tributária dos impostos sobre o consumo no Congresso Nacional podem trazer problemas na implementação do novo sistema de Imposto sobre Valor Agregado (IVA). É o que avaliam especialistas consultados pelo InfoMoney.

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Uma das inovações da última versão do relatório coordenado pelo deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados na última quarta-feira (10), estabelece uma “trava” para a alíquota-padrão acumulada com a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), em nível federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), em nível subnacional, em 26,5%.

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O patamar é o mesmo que a equipe econômica do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estimou para a soma dos dois novos tributos se a exata versão do projeto de lei complementar encaminhada pelo Poder Executivo fosse aprovada pelo Congresso Nacional − o que não aconteceu.

Ao longo da tramitação da matéria, parlamentares ampliaram listas de produtos e serviços sujeitos a regimes especiais e alíquotas reduzidas, como a inclusão de carnes, peixes, queijos e do sal na Cesta Básica Nacional de Alimentos − o que levará tais produtos de um desconto de 60% de imposto para a isenção total.

Com as mudanças aprovadas pelos deputados, seria necessária uma recalibragem da alíquota geral, que teria que ser elevada para compensar as perdas com a redução do universo de cobertura dos novos impostos e manter a neutralidade (ou seja, o mesmo nível de arrecadação atual) defendida pelo governo federal. O que com a “trava” aprovada pelos parlamentares ficaria impedido de acontecer.

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O relatório, que agora segue para análise do Senado Federal, determina que o Poder Executivo e o Comitê Gestor do IBS (formado por representantes de Estados, Distrito Federal e Municípios) realizem uma avaliação, a cada 5 anos, da eficiência, eficácia e efetividade, enquanto políticas políticas sociais, ambientais e de desenvolvimento econômico de uma série de pontos da reforma tributária, com os regimes aduaneiros especiais para os dois novos tributos e a Cesta Básica Nacional de Alimentos.

Pelo texto, a avaliação deverá considerar impactos na promoção da igualdade entre homens e mulheres, étnico-racial e sobre desigualdades de renda. No caso da cesta de alimentos isentos, também deve ser levado em conta o objetivo de garantir a alimentação saudável e nutricionalmente adequada da população, privilegiando alimentos in natura ou minimamente processados e alimentos consumidos majoritariamente pelas famílias de baixa renda.

O relatório aprovado pelos deputados estipula que a primeira avaliação quinquenal seja realizada com base nos dados disponíveis no ano-calendário de 2030. Caso se verifique que a soma das alíquotas de referência irá superar 26,5%, o Poder Executivo terá que encaminhar ao Congresso Nacional um novo projeto de lei complementar propondo uma redução nas alíquotas especiais (originalmente com descontos de 30% e 60% em relação à alíquota-padrão).

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O texto precisaria ser enviado pelo governo federal até o último dia útil de março de 2031, com previsão de início de eficácia para 2032, e após a realização de consultas ao Comitê Gestor do IBS. A diminuição do desconto nas alíquotas poderá ser linear para todos os bens e serviços listados ou diferenciada por produto ou setor.

Impasse “contratado”

Segundo uma fonte que participou das negociações da regulamentação da reforma tributária, esta foi uma definição política. A construção, que foi classificada por ela como “republicana”, ainda precisará ser testada na prática − e é isso que preocupa alguns dos advogados tributaristas ouvidos pela reportagem.

“O mecanismo de trava exige que o Poder Executivo consulte o Comitê Gestor e envie um Projeto de Lei Complementar (PLP) ao Congresso para realizar cortes de benefícios fiscais − processo que está sujeito à aprovação parlamentar”, observa Leonardo Roesler, sócio do escritório RMS Advogados.

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“Essa exigência pode criar um impasse legislativo, uma vez que a negociação política necessária pode resultar em atrasos e dificuldades na obtenção de consenso. Isso compromete a eficiência da gestão tributária e a capacidade do governo de ajustar rapidamente as alíquotas conforme necessário para manter a carga tributária dentro do limite estipulado”, avalia.

Além disso, o especialista alerta para riscos federativos. Isso porque a imposição da “trava” poderia ser entendida como interferência sobre a autonomia de Estados e Municípios para gerir seus próprios tributos e finanças.

“Embora o objetivo de limitar a alíquota do IVA dual a 26,5% possa ser justificado pela necessidade de manter a carga tributária dentro de um patamar aceitável, o mecanismo de trava proposto apresenta desafios significativos. Eles incluem potenciais impasses legislativos, a violação da autonomia dos entes federativos e a possibilidade de uma nova guerra fiscal, comprometendo a eficiência e a justiça do sistema tributário brasileiro”, alerta Roesler.

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“Acho que vai ser difícil [o desenho proposto funcionar]. Reduzir benefícios por PLP é sempre impopular. E se ultrapassar [o teto de 26,5%], deveria haver uma previsão de sanção. Fora isso, acho que fere a autonomia dos entes federativos”, pontuou outra fonte sob a condição de anonimato.

Preocupação similar tem o advogado Rafael Vega, sócio tributarista do Cascione Advogados, que também observa que mera “trava” não cumprirá sozinha seus objetivos. “Nossa impressão é negativa. Além da complexidade adicional que cria, de fato pode impactar em limitação do poder de tributar do ente estadual e municipal, o que não estava na emenda constitucional e pode ser contestado por estes entes”, diz.

“Ainda, obviamente uma limitação de alíquota ‘na canetada’ não reduz carga tributária. Se há mais isenções e há necessidade de recolher tributos, a demanda estoura em outro lugar, e pode gerar externalidades mais negativas como aumento de outros tributos, negativa de créditos, entre outros impactos”, prossegue.

Já a advogada Katia Gutierres, sócia do Barcellos Tucunduva Advogados, considera a iniciativa positiva por representar um mecanismo “expressamente previsto para evitar o aumento desenfreado da alíquota do IVA”.

Mas também reconhece potenciais riscos que exijam “ajustes” no meio do caminho. “A trava pode esbarrar em entraves burocráticos relacionados à necessidade de aprovação parlamentar para corte de benefícios, a fim de que seja viabilizada”, diz.

Os advogados Luis Wulff, CEO do Tax Group, especialista em Compliance, Tecnologia e Inteligência Tributária, e Rafael Vega, sócio tributarista do Cascione Advogados, também têm avaliação positiva sobre o dispositivo.

Para eles, a imposição de uma “trava” gera segurança jurídica e econômica para o País, uma vez que impede que o governo use de instrumentos de elevação de alíquota caso perceba uma queda no nível de arrecadação.

A dupla também rechaça a tese de eventual violação ao pacto federativo e argumenta que o movimento de levar a discussão de eventuais ajustes em benefícios ao Congresso Nacional para adequar a alíquota do IVA dual, na prática, permitiria uma “extensão de representatividade” dos parlamentares.

“O que tudo indica é que o Congresso Nacional, ao aprovar o texto de regulamentação da reforma, trouxe para si a competência de mudar potenciais isenções, que por ora está aprovando − o que faz total sentido e discernimento nesse tema”, pontua Wulff.

O ceticismo em relação à efetividade da “trava” de 26,5% não está restrito ao meio jurídico. Para o analista político Ricardo Ribeiro, da MCM Consultores, o desenho aprovado deve gerar um problema que precisará ser resolvido pelo próprio Congresso Nacional nas próximas legislaturas.
“A trava da alíquota máxima de 26,5% tem, por enquanto, pouco efeito prático. O novo sistema de tributação indireta somente começará a ser implementado em 2026 e as novas alíquotas serão contadas integralmente só em 2033. Até lá, o teto não será alcançado. É difícil saber como o Congresso é o governo eleitos no distante ano de 2030 lidarão com a obrigação de cumpri-lo”, avalia.

Considerando o texto aprovado pelos parlamentares, dois grupos de redução de alíquotas estariam sujeitos às revisões com vistas ao cumprimento da “alíquota teto” de 26,5% estabelecida. O primeiro trata de redução em 30% das alíquotas-padrão da CBS e do IBS incidentes sobre a prestação de serviços vinculados a profissões intelectuais de natureza científica, literária ou artística, submetidos à fiscalização por conselho profissional. Já o segundo se refere a uma redução de 60% sobre bens e serviços.

A lista específica de cada bem e serviço contemplado precisa ser consultada individualmente no próprio projeto de lei complementar, cuja redação final ainda não foi publicada (para acessar a última versão protocolada, clique aqui). Mas os grupos gerais já são conhecidos. Veja cada um a seguir:

Redução de CBS e IBS em 30%

  1. administradores;
  2. advogados;
  3. arquitetos e urbanistas;
  4. assistentes sociais;
  5. bibliotecários;
  6. biólogos;
  7. contabilistas;
  8. economistas;
  9. economistas domésticos;
  10. profissionais de educação física;
  11. engenheiros e agrônomos;
  12. estatísticos;
  13. médicos veterinários e zootecnistas;
  14. museólogos;
  15. químicos;
  16. profissionais de relações públicas;
  17. técnicos industriais; e
  18. técnicos agrícolas.

Redução de CBS e IBS em 60%

  1. serviços de educação;
  2. serviços de saúde;
  3. dispositivos médicos;
  4. dispositivos de acessibilidade próprios para pessoas com deficiência;
  5. medicamentos;
  6. alimentos destinados ao consumo humano;
  7. produtos de higiene pessoal e limpeza majoritariamente consumidos por famílias de baixa renda;
  8. produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura;
  9. insumos agropecuários e aquícolas;
  10. produções nacionais artísticas, culturais, de eventos, jornalísticas e audiovisuais;
  11. comunicação institucional;
  12. atividades desportivas; e
  13. bens e serviços relacionados a soberania e segurança nacional, segurança da informação e segurança cibernética.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.