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Em condições normais de temperatura e pressão, um líder político que tivesse sido um dos principais responsáveis pela chegada da vacina contra a Covid-19 ao Brasil e governasse o estado economicamente mais importante do país – dispondo da estrutura de um grande partido, que o escolheu candidato em prévias no fim do ano passado – naturalmente largaria como um dos nomes mais fortes da corrida pela Presidência da República. Não é o caso do ex-prefeito e ex-governador de São Paulo João Doria (PSDB), que vive hoje o momento mais difícil desde que decidiu se aventurar na política.
Rejeitado por uma parcela expressiva do eleitorado e alvo de desconfiança e boicote dentro do próprio ninho tucano, Doria amarga o posto de mero coadjuvante do processo eleitoral até aqui. Divulgada na sexta-feira (6), a pesquisa Ipespe mostrou que ele aparece com apenas 3% das intenções de voto, numericamente atrás de Ciro Gomes, do PDT (8%), e muito distante dos dois favoritos: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT (44%), e o presidente Jair Bolsonaro, do PL (31%). De acordo com o levantamento (veja a íntegra aqui), 55% dos entrevistados afirmam que não votariam em Doria em nenhuma hipótese – é o segundo maior índice de rejeição, inferior apenas aos 60% de Bolsonaro.
Na noite de quarta-feira (4), o pré-candidato do PSDB participou de um jantar com integrantes da bancada da legenda na Câmara. O encontro aconteceu na residência do deputado Adolfo Viana (BA), e Doria foi cobrado para que apresente percentuais mais robustos até o fim de maio. Se isso não acontecer, segundo parlamentares, a candidatura não se viabilizará. A esperança da campanha do ex-governador paulista é que as inserções partidárias veiculadas na TV, que tiveram o tucano como protagonista, sejam capazes de modificar o cenário atual.
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Overdose de marketing
“Não existe uma outra lógica para explicar a rejeição de alguém que entregou resultados tão positivos em sua gestão a não ser um forte trabalho de comunicação negativa promovido por seus adversários desde que se iniciou a pandemia”, justifica o publicitário Lula Guimarães, responsável pelo marketing da campanha de Doria. “O Brasil ficou dividido entre os que aceitavam as recomendações mundiais da ciência, a favor da vacina, apoiando medidas como o lockdown, uso de máscara e distanciamento social, e os que negaram a ciência, contrários à vacina, ao uso de máscaras e a favor das aglomerações”, afirma em entrevista ao InfoMoney. “A imprensa registrou o poder que o discurso bolsonarista tomou nas redes sociais. Um movimento que começou na eleição de Bolsonaro em 2018 e que cresceu com os anos.”
O enfrentamento à pandemia, de fato, foi a grande marca da gestão Doria em São Paulo – em contraponto à postura do presidente da República, que inúmeras vezes minimizou a doença e contestou a eficácia dos imunizantes. A primeira vacina contra a Covid-19 aplicada no Brasil, em 17 de janeiro de 2021, foi a CoronaVac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac, em parceria com o Instituto Butantan. A enfermeira Mônica Calazans foi a primeira brasileira vacinada, no Hospital das Clínicas, em cerimônia que contou com a presença do então governador.
“Essa imagem de ‘marqueteiro’ que ele acabou consolidando é muito antipática para o eleitorado, mesmo sendo o campeão da vacina e apesar do bom desempenho que teve à frente do governo do estado”, analisa o cientista político Cláudio Couto, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Mesmo no caso da vacina, não pegou bem a maneira como ele fez questão de divulgá-la o tempo inteiro. Entendo que ele repetidamente vai exagerando na dose. Certas jogadas de marketing são percebidas como jogadas oportunistas.”
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Para o professor, analista político e doutor em Comunicação Social Kleber Carrilho, o maior problema de Doria é a forma como se comunica com o eleitorado. “Ele tem algumas realizações e, se pensarmos em termos racionais, existem entregas importantes que poderiam aparecer na comunicação”, diz. “No entanto, embora haja uma construção racional na decisão pelo voto, essa é uma construção argumentativa que ocorre na comunicação. E ele não tem conseguido desenvolvê-la da maneira mais eficaz.”
O ex-senador e ex-presidente do PSDB José Aníbal afirma que o ex-governador “é muito ‘over’”. “Ele insiste muito naquilo que fez, mas as pessoas não reconhecem essa dimensão que ele atribui ao que fez”, diz. “A vacina foi uma iniciativa importante, mas ele politizou a tal ponto que a população acabou não reconhecendo tanto esse resultado”, critica.
Além do empenho na vacinação contra a Covid-19, o governo Doria ostenta dados econômicos positivos, a despeito das dificuldades impostas pela pandemia. De acordo com a Fundação Seade, a economia paulista cresceu cinco vezes mais do que a brasileira entre 2019 e o terceiro trimestre de 2021, com alta de 7,5%. No mesmo período, o Produto Interno Bruto (PIB) do país subiu 1,5%.
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Outro trunfo da administração tucana é o processo de despoluição do Rio Pinheiros, uma velha bandeira de governos anteriores do PSDB. Cerca de 85% das águas do rio já tem mais oxigênio do que poluição – um patamar que possibilita vida aquática e evita o mau cheiro. Mais de 62 mil toneladas de lixo jogado nas águas foram removidas.
Mesmo assim, segundo levantamento do Datafolha divulgado em abril, Doria deixou o governo do estado com apenas 23% de aprovação dos paulistas. Sua gestão foi avaliada como ruim ou péssima por 36% dos entrevistados – para 39%, ela foi regular. Mais de 60% do eleitorado de São Paulo entende que o tucano errou ao deixar o cargo para concorrer ao Planalto.
“Traidor”
Segundo Carrilho, contribuiu para a deterioração da imagem de Doria a percepção, por parte de muitos eleitores, de que o tucano não é leal ou confiável. “É claro que uma parte disso tem a ver com uma rejeição construída por aqueles que foram aliados do Doria em 2018. Quando ele rompe com o presidente Bolsonaro, automaticamente se torna esse ‘traidor’, uma figura tradicionalmente odiada na política brasileira”, aponta. “Doria é visto assim não só pelos bolsonaristas, mas também por parte do PSDB. Nos ambientes com os quais ele interage, é percebido como alguém que não consegue manter a palavra e os compromissos.”
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No segundo turno das eleições de 2018, quando Doria disputava o Palácio dos Bandeirantes contra Márcio França (PSB), o tucano encampou o slogan “BolsoDoria” e se associou ao então candidato à Presidência Jair Bolsonaro. Mentor político de Doria e derrotado no primeiro turno do pleito presidencial há quatro anos, o ex-governador Geraldo Alckmin subiu o tom, à época, contra o ex-pupilo e o chamou de “traidor” durante uma reunião do diretório nacional do PSDB, em Brasília. A relação entre os dois nunca mais foi a mesma. Em março deste ano, Alckmin se filiou ao PSB para ser candidato a vice na chapa de Lula ao Planalto.
“A lealdade é uma questão fundamental na política, tem um peso grande. E Doria certamente não é percebido como um político leal. É visto como alguém que trai quem lhe apoiou”, afirma Couto. “Ele se transmuta em ‘BolsoDoria’ e depois se torna um inimigo visceral do Bolsonaro. Aquela adesão ao Bolsonaro foi percebida por muita gente como oportunista”, completa. Para o cientista político, Doria atua politicamente “sob uma perspectiva autocentrada e individualista”. “Há uma antipatia por alguém que faz política sozinho e não se vincula a compromissos com seus colegas de partido”, aponta.
Lula Guimarães, por sua vez, minimiza o peso do “BolsoDoria” na rejeição atual. “Aquele movimento foi do eleitor, não do candidato. Começou na militância e ganhou peso no segundo turno das eleições, quando os candidatos à Presidência eram [Fernando] Haddad e Bolsonaro. João sempre fez oposição ao PT e segue fazendo”, garante.
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Recentemente, Doria ensaiou uma nova mudança de tom. Em um aceno a Lula, o tucano chegou a dizer que respeita o petista, mas não Bolsonaro. “Doria está testando discursos. Ele é muito ligado na opinião pública e tem feito esses movimentos para testar como as coisas podem funcionar”, opina Carrilho. “Embora isso lhe forneça dados importantes, acaba confundindo a cabeça do eleitor. É aquilo que chamamos nas teorias da comunicação de dissonância cognitiva. É algo que gera ruído e faz com que a compreensão seja dificultada.”
Guimarães diz que o elogio do pré-candidato a Lula foi pontual. “O respeito que ele declarou pelo ex-presidente foi específico em relação a quem tem apreço pela democracia, em contraponto a Bolsonaro, que a ataca frequentemente ao apoiar uma intervenção militar que suspenderia os direitos civis e a liberdade de imprensa”, afirma. “O eleitor só ficará confuso se a imprensa distorcer o que João disse ou tentar tirar de contexto.”
Fim da linha?
Diante da iminente derrocada da candidatura única da chamada “terceira via” – o União Brasil, partido que conta com o maior volume de recursos dos fundos eleitoral e partidário, abandonou o grupo e anunciou que partirá em voo solo com Luciano Bivar como candidato a presidente –, setores de MDB e PSDB ainda tentam, nos bastidores, viabilizar uma parceria entre a senadora Simone Tebet (MDB-MS) e Doria. O problema é que nenhum dos dois está disposto a abrir mão da cabeça de chapa para ser vice. O impasse continua.
“O que eu tenho constatado é que uma ampla maioria dos candidatos a deputado estadual, federal, senador e governador pelo PSDB no Brasil inteiro acha muito difícil progredir com a candidatura do Doria”, diz Aníbal. “Não só porque ele tem 2%, 3% ou 4% de intenção de voto, mas porque tem uma rejeição muito grande. É uma equação difícil.”
Para o ex-senador, “há uma ampla insatisfação, inclusive em São Paulo”. “O próprio candidato a governador [Rodrigo Garcia] procura se distanciar bastante do Doria”, ironiza. “Ele [Doria] não dá sinais de que vai levar em conta os fatos e fica alimentando uma expectativa. O mundo da política hoje tem muita dificuldade de se associar à candidatura dele. Essa associação é muito negativa.”
Marco Vinholi, ex-secretário de Desenvolvimento Regional de São Paulo e atual coordenador da campanha de Doria, minimiza as dissidências internas. “O PSDB, assim como todos os partidos grandes, tem suas vertentes. Mas está cada vez mais aglutinado em torno do nome de João Doria como melhor opção para combater a nefasta polarização”, diz.
Lula Guimarães aposta na queda da rejeição para que Doria se reposicione no jogo. “A situação da terceira via ficou difícil por causa da polarização, mas é a exaustão da polarização que criará espaço agora para a terceira via crescer”, afirma. “O maior desafio é combater as fake news, manchetes que tiram frases de contexto e a máquina de destruição de reputação. Agora, fora do governo, João pode se posicionar com mais desenvoltura. A comunicação nas redes e na imprensa é o que trará resultados positivos.”
Vinholi afirma que apenas nos últimos meses parte da “população brasileira começa a tomar conhecimento das realizações do governo Doria e do seu modo eficiente e correto de administrar”. Segundo ele, pesquisas internas apontam que a rejeição ao ex-governador “tem caído”. “O PSDB é um partido que sempre, desde a redemocratização do país, apresentou alternativas e defendeu o futuro do Brasil e dos brasileiros. Vamos construir isso em diálogo com Cidadania e MDB.”
Para os cientistas políticos ouvidos pelo InfoMoney, entretanto, as chances de êxito do ex-governador de São Paulo são pequenas – e o seu futuro político, incerto. “Com os dados que temos hoje, acho difícil a candidatura do Doria se viabilizar”, avalia Carrilho.
“Se ele ficar pelo caminho, seja perdendo a eleição ou nem sendo candidato, fica em uma situação muito ruim”, projeta Couto. “Sairia como um grande derrotado, abandonado pelo próprio partido, e teria muita dificuldade de retornar à vida pública como um ator político relevante. Na melhor das hipóteses, ficaria em uma condição periférica.”
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