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SÃO PAULO – A crise provocada pelo novo coronavírus exigiu uma mudança de rota do governo no campo econômico. Dos aportes na área da saúde e transferências a estados e municípios ao auxílio emergencial, o volume de recursos mobilizados no enfrentamento aos efeitos da pandemia já supera os R$ 500 bilhões, enquanto a arrecadação sofreu um tombo com a desaceleração do nível de atividade.
No rastro da calamidade da Covid-19, o governo teve que abandonar uma meta de déficit primário de R$ 124,1 bilhões (movimento autorizado pelo Congresso Nacional), e agora estima um rombo que se aproxima dos R$ 800 bilhões para o fim do ano. A dívida bruta deve sair de 75,8% e atingir a marca de 98,2% do PIB em um intervalo de apenas 12 meses.
Foi um duro golpe do imponderável sobre a agenda de ajuste das contas públicas – e que não atingiu apenas o Brasil, mas diversos países que também buscavam o caminho do equilíbrio fiscal no momento em que a crise sanitária exigiu estratégias de emergência.
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No Ministério da Economia, a posição é que as medidas tomadas atendem às necessidades de um momento excepcional, mas deverão se restringir ao orçamento de 2020. De olho na fotografia fiscal, membros da equipe econômica sustentam que os pilares da política da atual gestão se mantêm intactos e que a agenda de reformas está voltando à pauta.
“Estamos em uma conjuntura diferente de como era no ano passado, mas, do ponto de vista estrutural, nossa política é a mesma. Não mudou um centímetro”, garante Waldery Rodrigues, secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia. Ele concedeu entrevista ao InfoMoney na última quarta-feira (22). Assista à íntegra pelo vídeo acima.
“Voltamos tão logo possível ao que foi desenhado originalmente: equilíbrio das contas públicas, redução de despesa, maior efetividade nas políticas, elevada transparência, defesa do teto de gastos, cuidado com a dívida bruta em percentual do PIB”, afirma.
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Segundo o secretário, apesar da imprevisibilidade provocada pela pandemia, do ponto de vista econômico, o pior pode ter ficado para trás.
Cerca de quatro meses após a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarar pandemia de covid-19 e o Brasil registrar o primeiro óbito pela doença (hoje já são 84.207), ele chama atenção para indicadores que apontam para uma recuperação em ritmo ainda a ser observado e diz que o mergulho da economia, apesar de expressivo, pode ser muito menor do que alguns chegaram a prever.
A combinação dos sinais de recuperação e o quadro de fragilidade fiscal têm levado a equipe econômica a aos poucos retomar a pauta de reformas, que vinha sofrendo dificuldades políticas antes mesmo da pandemia, desde que a reforma previdenciária foi promulgada, em novembro de 2019.
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A reforma administrativa chegou a ganhar musculatura no governo antes da crise sanitária, mas teve na onda de protestos em países vizinhos o pretexto para repousar em uma gaveta do Palácio do Planalto antes que fosse encaminhada à Câmara dos Deputados. Já as PECs da Agenda Mais Brasil pouco conseguiram avançar em tramitação no Senado Federal – agora, passarão por reformulação após a crise.
A reforma tributária, prometida e cobrada há mais de um ano, por sua vez, só teve uma primeira fase entregue pessoalmente pelo ministro Paulo Guedes ao Congresso Nacional nesta semana. O texto é apontado pelo ministro como passo fundamental na melhoria do ambiente de negócios e no processo de recuperação da economia, mas ainda tem um longo caminho pela frente no parlamento.
Do lado fiscal, a sustentabilidade do teto de gastos tem sido preocupação constante dos agentes econômicos. A avaliação no mercado é de que o quadro composto por uma margem de manobra orçamentária reduzida, pela baixa inflação e por pressões políticas pela ampliação das despesas em diversos campos pode ampliar o nível de pressão sobre a equipe econômica.
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Waldery Rodrigues, no entanto, é categórico na defesa do instrumento fiscal, que, na sua avaliação, tornou-se uma “super âncora” durante a crise da Covid-19. “Nesta equipe econômica, a possibilidade de fragilizar o teto de gastos é zero. Absolutamente zero”, assegura. “O teto de gastos não é mais uma âncora, é uma super âncora. Fragilizá-lo de qualquer forma é algo que esse governo não fará”.
Eis os principais temas discutidos na entrevista:
Esgotamento das medidas?
As iniciativas do governo federal com impactos sobre o resultado primário para o enfrentamento à pandemia do novo coronavírus chegam a R$ 525 bilhões, sendo as de maior custo o auxílio emergencial (as cinco parcelas de R$ 600 aos beneficiários têm impacto fiscal estimado em cerca de R$ 254,4 bilhões), o auxílio financeiro a estados e municípios (com três medidas provisórias somando R$ 79,2 bilhões) e o Benefício Emergencial de Manutenção de emprego e Renda (R$ 51,6 bilhões).
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Também houve medidas de crédito, como Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), Fundo Garantidor para Investimentos (FGI), Programa Emergencial de Suporte ao Emprego (Pese) e a isenção da alíquota de IOF sobre operações de crédito.
Neste campo, porém, o próprio ministro Paulo Guedes reconhece as dificuldades de se fazer os recursos chegarem aos demandantes, sobretudo no caso de micro e pequenas empresas que reclamam do baixo acesso aos benefícios e são as que mais têm registrado pedidos de recuperação judicial e falência. Segundo Waldery, muitas iniciativas de crédito ainda estão em fase de execução.
Para o secretário, em que pesem as incertezas com relação à pandemia, o momento é “mais de entregar o que foi desenhado e menos de pensar em novas medidas”. Ele argumenta que há indicadores econômicos, como de emissões de notas fiscais eletrônicas, dados dos setores de serviços e construção civil e recuperação na arrecadação de ICMS, que indicam uma retomada da economia brasileira a partir de maio. O pior, diz, pode já ter ficado para trás.
“O limite, satisfeitas as diretrizes de proteger os mais vulneráveis e, ao mesmo tempo, manutenção do emprego, é dado pelo equilíbrio fiscal que vislumbramos no curto e médio prazos. Mas é fato que o fundo do poço, a partir das nossas modelagens e usando a cesta de indicadores, aparentemente foi abril. Então, já passou. O que é muito bom, mas não nos deixa relaxados. [Precisamos estar] Atentos e diligentes. É fato que não precisamos ter um esforço, do ponto de vista de auxílio emergencial, na mesma magnitude que tivemos”, disse.
Durante a entrevista, o secretário ressaltou que a crise vai fazer com que o déficit primário supere a marca de R$ 800 bilhões, próximo a 12% do PIB (Produto Interno Bruto). A dívida bruta, por sua vez, deverá saltar de 75,8% do PIB em 2019 para 98,2% do PIB ao final deste ano.
“Voltarmos tão logo possível ao que foi desenhado originalmente: equilíbrio das contas públicas, redução de despesa, maior efetividade nas políticas, elevada transparência, defesa do teto de gastos, o cuidado com a dívida bruta em percentual do PIB. Lembrando que estamos em uma conjuntura diferente de como era no ano passado, mas, do ponto de vista estrutural, nossa política é a mesma. Não mudou um centímetro”, argumentou.
Teto de gastos
A despeito de dificuldades impostas pela pela conjuntura, Waldery é categórico ao defender o teto de gastos, que restringe a evolução de despesas orçamentárias à inflação do ano anterior, e diz que não há risco de a regra fiscal ser flexibilizada nos próximos anos. “Nesta equipe econômica, a possibilidade de fragilizar o teto de gastos é zero. Absolutamente zero”, afirmou.
“É irracional fragilizar o teto de gastos, pelo simples fato de que temos três regras fiscais a cumprir: meta de primário, regra de ouro e o próprio teto de gastos. A primeira foi dispensada pelo decreto de calamidade pública. A segunda foi dispensada pela PEC do Orçamento de guerra. Então, estamos com a terceira. É a âncora, que já era importante desde 2016”, pontuou.
O secretário sustenta que o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2021 foi construído de modo que a própria definição da meta de resultado primário se baseia no que estabelece a regra do teto de gastos. “O teto de gastos não é mais uma âncora, é uma super âncora. Fragilizá-lo de qualquer forma é algo que esse governo não fará”, disse.
Economistas têm apresentado preocupação com as condições para o cumprimento do teto de gastos já em 2021. A inflação de apenas 2,13% acumulada em 12 meses até junho permite uma ampliação somente de R$ 31 bilhões nas despesas do ano, atingindo a marca de R$ 1,485 trilhão.
Caso as despesas obrigatórias cresçam acima do índice, seria necessário mais um sacrifício sobre as já comprimidas despesas discricionárias, que incluem recursos para investimentos públicos. Isso ocorre em um momento em que áreas do próprio governo manifestam desejo em destravar aportes no setor de infraestrutura para a retomada do crescimento, além de uma demanda maior por programas sociais diante dos efeitos da crise provocada pela covid-19.
Durante a entrevista, Waldery ressaltou a necessidade de avaliações técnicas e discussões sobre a viabilização de medidas que forem entendidas como necessárias e corretas. “Há pressões políticas, ao mesmo tempo se coloca na mesa o debate, de forma transparente e direta”, pontuou.
Questionado sobre os riscos de o parlamento derrubar vetos com impactos relevantes sobre os cofres públicos, como o da prorrogação em um ano da desoneração a 17 setores da economia (R$ 9,3 bilhões), ele respondeu: “Se tem uma ação no Congresso Nacional que leva a uma fragilidade do teto de gastos, da nossa parte ela vai ser qualificada no sentido de que atenderemos ao teto de gastos”.
Emprego e renda
Na entrevista, Waldery disse que o governo quer reavaliar programas sociais para dar maior efetividade ao que é entregue à população na forma do novo Renda Brasil. Como exemplo, o secretário apontou o programa Bolsa Família como modelo de eficiência no cumprimento dos objetivos de distribuição de renda. Por outro lado, disse que o abono salarial e o salário mínimo não apresentam tal desempenho.
“[O objetivo] É analisar essas políticas, tomar o que as evidências empíricas nos dão. Não são poucos os trabalhos que temos analisado. Toma esse conjunto de medidas e aloca um recurso que é escasso da melhor maneira. É livro-texto. A concepção do ministro Paulo Guedes é que precisa pensar em uma forma de recuperar o segmento mais vulnerável. Que é bem [Milton] Friedman, quando ele pensou no imposto de renda negativo, em uma renda básica”, explicou.
“É a ideia de um liberalismo fraterno: vamos ser liberais, vamos cuidar da parte fiscal, zelo fiscal. Ao mesmo tempo, há milhões de brasileiros que precisam de um olhar mais atento e de alocação de recursos”, complementou.
Nos bastidores, o abono salarial é apontado como um dos caminhos para financiar parcialmente o Renda Brasil, já que o governo federal não pretende usar novos recursos na construção do problema. Especialistas, no entanto, alertam para o fato de boa parte dos recursos previstos para o abono neste ano já terem sido alocados.
Um levantamento da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que, no trimestre encerrado em maio, o contingente de pessoas ocupadas no mercado informal foi reduzido em 5,8 milhões em comparação com o mesmo período do ano anterior (queda de 15,3%). Na mesma comparação, o número de pessoas ocupadas no setor privado com carteira assinada passou de 33,2 para 31,1 milhões (queda de 6,4%). O movimento dos informais corresponde a 83% de toda a diminuição da população ocupada em maio.
Os números podem indicar efetividade de iniciativas do governo para a manutenção do emprego formal (como a que permite redução proporcional de salários e jornadas ou a própria suspensão dos contratos de trabalho com reposição parcial pela União), mas também sinalizam a importância que o auxílio emergencial têm tido para parcela expressiva da população sem emprego durante a pandemia.
Dados divulgados pela Caixa Econômica Federal mostram que o auxílio emergencial já alcançou 65,3 milhões de pessoas. O programa foi prorrogado em mais duas parcelas, e deverá ser sucedido pelo Renda Brasil. Um desenho preliminar do programa prevê 57,3 milhões de pessoas beneficiadas. Caso os números sejam mantidos, seriam cerca de 16 milhões de pessoas a mais do que o Bolsa Família, mas 8 milhões de beneficiários do auxílio emergencial ficariam de fora.
Questionado sobre o contingente de potenciais excluídos, caso o desenho preliminar seja mantido, e sobre o que está sendo discutido para o novo programa, o secretário preferiu não entrar em detalhes.
Agenda de reformas
A equipe econômica elenca como pautas prioritárias para o segundo semestre a reforma tributária, cuja primeira fase foi apresentada nesta semana pelo governo, o chamado “novo marco legal do trabalho”, voltado a uma redução dos custos para contratações, o pacto federativo, privatizações e concessões, marcos legais setoriais (petróleo e gás, ferrovias, cabotagem e energia), uma reformulação na legislação sobre falências e recuperação judicial e a independência do Banco Central.
No campo tributário, Waldery descarta a possibilidade de elevação de carga tributária. “Zero probabilidade. Não trabalhamos com aumento de carga tributária. Essa é uma diretriz clara do ministro Guedes e é consequência natural do seguinte diagnóstico: reforma o Estado para dar protagonismo ao setor privado. Nessa equação, aumento de carga tributária não entra. Não há como reformar o Estado querendo torná-lo mais eficiente e com mais forte entrega ao cidadão e dar protagonismo ao setor privado com aumento de carga tributária”, afirmou.
Para ele, a proposta de simplificação de impostos federais a partir da união de PIS e Cofins na Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) tem grande potencial de reduzir distorções setoriais, ampliação da transparência e até mesmo de se combater a evasão.
“É uma reforma neutra, tem elementos de progressividade, tem redução de distorções na tomada de decisão dos agentes econômicos, tem simplificação muito forte. Vai implicar na redução dos custos de compliance. É um capítulo à parte”, disse.
O secretário esteve à frente das três Propostas de Emenda à Constituição (PECs) da Agenda Mais Brasil – Emergencial, Pacto Federativo e dos Fundos –, apresentada pelo governo federal em novembro do ano passado para tramitar no Senado Federal. A ideia do governo era que os textos tramitassem simultaneamente a uma reforma administrativa (que não chegou a ser encaminhada) na Câmara dos Deputados.
Antes mesmo da pandemia, as pautas enfrentaram dificuldades para avançar. Para Waldery, contudo, não houve erro estratégico envolvendo as iniciativas. “Efetivamente, as três PECs precisam ser reformatadas porque foram concebidas em uma situação em que ninguém pensava em coronavírus. Então, agora [a situação] nos leva a repensar cada uma dessas partes”, afirmou.