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A Polícia Federal encaminhou ao Supremo Tribunal Federal o relatório final dos trabalhos no âmbito do inquérito aberto que apura a conduta do presidente Jair Bolsonaro (PL) na disseminação de informações falsas sobre a pandemia de Covid-19, que relacionavam a vacina contra a doença ao risco de se contrair Aids, e estimular a população a não utilizar máscaras de proteção contra a disseminação do vírus.
O documento, protocolado na tarde de sexta-feira (23), apareceu nos registros do sistema do tribunal nesta quarta-feira (28), a quatro dias do fim do governo Bolsonaro. O mandatário, derrotado nas eleições de outubro, não deve participar da cerimônia de posse do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 1º de janeiro, e deve viajar aos Estados Unidos.
O inquérito, aberto a pedido da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia do Senado Federal, já havia concluído que Bolsonaro cometeu incitação ao crime ao divulgar informações falsas acerca da crise sanitária. A própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e outras autoridades de saúde já haviam desmentido as falas do mandatário.
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Críticos e mesmo especialistas na área alegam que a conduta do presidente durante a crise, seja com a disseminação de informações falsas ou mesmo no atraso da vacinação da população e o estímulo a aglomerações, contribuiu para um maior número de mortes pela doença no Brasil.
Na avaliação da delegada Lorena Lima Nascimento, da PF, Bolsonaro teria atentado contra a paz pública ao associar as vacinas contra a Covid-19 à Aids.
Ela também destaca que o presidente teria disseminado, sem qualquer embasamento, a informação de que vítimas de gripe espanhola teriam morrido em decorrência de pneumonia bacteriana, causada pelo uso de máscara. Não há dados que comprovem tal afirmação.
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As infrações atribuídas a Bolsonaro estão previstas na Lei de Contravenções Penais (atentar contra a paz pública) e no Código Penal (incitar a prática de crime).
Além do mandatário, os investigadores citam Mauro Cid, tenente-coronel do Exército e ajudante de ordens do presidente, que também teria sido responsável pela disseminação de informações falsas utilizadas pelo mandatário em transmissão pelas redes sociais. Ele é apontado como o responsável por organizar o discurso da live investigada.
Os investigadores falam sobre a “ocorrência de manipulações e distorções dos conteúdos das publicações que serviram de base para os temas propagados” por Bolsonaro na transmissão pelas redes sociais.
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Eles também destacam que “não se pode passar ao largo que a presente investigação se dá em um contexto de outras investigações encerradas ou em curso em que os mesmos protagonistas e demais pessoas identificadas se utilizam ações de desinformação, promovidas em formato de live presidencial, com vistas a fortalecer opiniões isoladas”.
“O Presidente da República, JAIR MESSIAS BOLSONARO, na data de 21 de outubro de 2021, por meio de transmissão ao vivo em suas redes sociais, teria supostamente disseminado desinformações na Pandemia (fake news), ao afirmar que ‘relatórios oficiais do Governo do Reino Unido sugerem que os totalmente vacinados [..] estão desenvolvendo a síndrome de imonudeficiência adquirida muito mais rápido do que o previsto.’ (.) e também, ao firmar que, com base em estudo do médico imunologista norte americano AN77101VY FAUCI, chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas – NIAID, dos Estados Unidos, “a maioria das vítimas da gripe espanhola não morreu de gripe de espanhola, mas de pneumonia bacteriana causada pelo uso de máscara”, diz o documento.
“As desinformações foram elaboradas pelo Ajudante de Ordens do Gabinete Pessoal do Presidente da República – Tenente Coronel do Exército Brasileiro MAURO CESAR BARBOSA CID, responsável pela produção do material divulgado. MAURO CID, de forma livre, voluntária e consciente, acrescentou dados e informações inverídicas ao conteúdo das publicações utilizadas como fontes para a produção do material da live presidencial. JAIR MESSIAS BOLSONARO, por sua vez, de forma livre, voluntária e consciente, propagou as informações inverídicas produzidas por MAURO CESAR BARBOSA CID, disseminando discurso capaz de provocar alarma aos seus expectadores, além de promover o desestímulo ao uso obrigatório de máscaras, o que, por conseguinte, incentivaria terceiros ao descumprimento de normas que tornaram o seu uso obrigatório, à época dos fatos, contrariando, por conseguinte, as orientações mundiais no combate à pandemia da COVID-19, promovidas pela Organização Mundial de Saúde, à utilização de vacinas no enfretamento da COVID-19, ao uso obrigatório de máscaras e às normas legislativas vigentes à época”, continua.
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As falas de Bolsonaro ocorreram durante sua tradicional live com seguidores nas redes sociais. A transmissão, realizada em 21 de outubro de 2021, acabou retirada do ar por YouTube, Facebook e Instagram. Segundo o Google, apenas a primeira plataforma registrou 220.785 visualizações, das quais 97.894 ocorreram durante a transmissão ao vivo.
Segundo a delegada, Bolsonaro causou “verdadeiro potencial de provocar alarma junto aos espectadores, ao propagar a desinformação de que os ‘totalmente vacinados contra a Covid-19’ estariam ‘desenvolvendo a síndrome de imunodeficiência adquirida muito mais rápido que o previsto’ e que essa informação teria sido extraída de ‘relatórios do governo do Reino Unido’.”
Já em relação às declarações sobre o uso de máscara ter provocado pneumonia durante o surto de gripe espanhola na primeira metade do século XIX, os investigadores argumentam que “, incutiu-se na mente dos expectadores de que o uso de máscaras seria prejudicial à saúde, promovendo-se, por conseguinte, um verdadeiro incentivo ao não cumprimento do uso de máscaras, cujo uso era compulsório, conforme legislação vigente à época dos fatos”.
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Os investigadores pedem o indiciamento de Mauro Cid pela prática das seguintes infrações criminais:
1) Provocar alarma, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto (art. 41 da Lei de Contravenções Penais);
2) Incitar, publicamente, a prática de crime (art. 286 do Código Penal);
3) Provocar o desabamento de construção ou, por erro no projeto ou na execução, dar-lhe causa.
A PF, por outro lado, não enquadrou formalmente Bolsonaro pelos delitos, em respeito ao entendimento do Supremo de que pessoas com prerrogativa de função (conhecido como “foro privilegiado”) somente podem ser indiciados mediante prévia autorização dos magistrados.
Mas ressaltou suposto desrespeito aos mesmos itens da legislação de seu ajudante de ordens e destacou o fato de o mandatário não ter atendido a pedido de depoimento, o que na prática culminou no uso do direito constitucional de permanecer em silêncio.
“Os elementos apontam também para a atuação direta, voluntária e consciente de JAIR MESSIAS BOLSONARO para a prática infrações criminais previstas no art. 41 da Lei de Contravenções Penais e no art. 286 do Código Penal c/c art. 29 do Código Penal”, diz o documento.
“Deixo, entretanto, de promover o seu indiciamento em respeito posicionamento de parte dos Excelentíssimos Ministros do Supremo Tribunal Federal, que preconiza que pessoas com foro por prerrogativa de função na Egrégia Corte só poderão ser indiciadas mediante prévia autorização, cuja solicitação foi, inclusive, formalizada nos autos, não havendo, até o presente momento, decisão do Exmo. Ministro Relator acerca do mencionado requerimento”, complementa.
“Pelas razões acima expostas, finalizamos a presente investigação criminal concluindo-se pela existência de elementos probatórios concretos suficientes de autoria e materialidade para se atestar que JAIR MESSIAS BOLSONARO e MAURO CESAR BARBOSA CID, em concurso de pessoas, cometeram os delitos de ‘provocar alarma, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto’, previsto do art. 41 da Lei de Contravenções Penais, bem como de ‘incitação ao crime’, previsto no art. 286 do Código Penal Brasileiro”, conclui a delegada Lorena Lima Nascimento na peça.
Procurada pela reportagem, a assessoria de comunicação da Polícia Federal disse que “não fornece informações acerca de relatórios policiais, tampouco o acesso aos documentos, considerados restritos”.
Com a conclusão das investigações, o material segue para análise do Supremo Tribunal Federal. O relator do caso é o ministro Alexandre de Moraes, visto por bolsonaristas como um dos principais adversários do mandatário na Corte.
Modus operandi
Na conclusão do inquérito, a Polícia Federal verifica a adoção de expediente similar adotado por Bolsonaro e aliados ao que se verificou em inquérito que apura ataques ao sistema eleitoral brasileiro e ao modelo de votação eletrônica, caso também sob a relatoria de Alexandre de Moraes.
“Observa-se que a maneira de agir debatida no INQ 4888 encontra bastante similitude com a ocorrida no INQ 4878, exigindo-se para a validação do discurso (falso ou com fragmentos da verdade) que seja realizada por um influenciador em posição de autoridade perante sua “audiência”. Dizendo-se de outro modo, referida prática só repercute nas mídias sociais e, consequentemente, no mundo físico se referendadas por um ator responsável por originar as ideias ou irradiá-las junto a seus seguidores”, diz o documento remetido ao Supremo.
“Como forma de demonstração do descaso na produção das desinformações que serviram de base para realização da live presidencial do dia 21 de outubro de 2021, MAURO CID, em petição juntada aos autos (fls. 192/199), praticamente defendeu a propagação de “falsas noticias”, ao pugnar pela inexistência de crime a ser apurado nos autos sob o argumento de que “…até o momento, não há tipificação de “fake news” no ordenamento jurídico brasileiro. Portanto, se o legislador não prevê determinada conduta como crime, não cabe aos atores investidos de competência no Sistema de Investigação e Persecução Penal a qualificação negativa de manifestações, sob o ponto de vista penal — sejam elas de quaisquer pessoas -, sob pena de grave ofensa aos princípios da legalidade, fragmentariedade e subsidiariedade, todos próprios do Direito Penal.”, continua o texto.
Os investigadores também atacam a alegação de que o pedido atentaria contra o princípio da liberdade de expressão e opinião, consagrado pela Constituição Federal, ao alegar que não se trata de ponto de vista, mas de “opinião de um Chefe de Estado, propagada com base em manipulação falsa de publicações existentes nas redes sociais” e que “por ter a convicção de que atingiria um número expressivo de expectadores, intencionalmente, potencialmente promoveu alarma”.
“Consoante registrado nos autos do INQ 4878 ‘os estudos constatam que tentativas das instituições públicas de anularem a rede de mentiras com uma rede de verdades não são eficazes, diante da aderência da primeira impressão na mente dos receptores, fortalecida pelos mecanismos citados (variedade e quantidade de canais, rapidez, continuidade etc.). Resta às instituições a adoção de condutas que desestimulem a prática e que foquem nos objetivos buscados pelos promotores da desinformação, não na desinformação em si.’, pontua.