PEC da Transição é protocolada no Senado, com Bolsa Família fora do teto de gastos por 4 anos e R$ 198 bilhões de espaço fiscal

Texto não encontra consenso entre os parlamentares e terá de ser negociado durante tramitação nas duas casas legislativas

Marcos Mortari

O senador Marcelo Castro (MDB-PI) em coletiva de imprensa (Foto: Pedro França/Agência Senado)
O senador Marcelo Castro (MDB-PI) em coletiva de imprensa (Foto: Pedro França/Agência Senado)

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Cerca de duas semanas após a apresentação de uma minuta pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), a PEC da Transição foi finalmente protocolada, nesta segunda-feira (28), no Senado Federal. O movimento ocorre após o aval do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que está em Brasília, após uma semana de recuperação de uma cirurgia na garganta.

Apesar de negociações intensas, a versão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) registrada não encontra consenso entre os parlamentares e precisará ser negociada durante sua tramitação. O texto é praticamente o mesmo que vinha sendo discutido nos últimos 12 dias.

O autor formal do texto é o senador Marcelo Castro (MDB-PI), que também é o relator-geral do Orçamento de 2023. Ele espera que a proposta seja aprovada pelo Congresso Nacional até 16 de dezembro, para que seja aberto espaço fiscal para a sanção da Lei Orçamentária Anual de 2023.

A versão protocolada carrega pontos muito questionados por deputados e senadores, como a garantia de espaço fiscal de R$ 198 bilhões fora do teto de gastos para cobrir promessas de campanha do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2023 e a retirada do Bolsa Família por quatro anos da regra fiscal, que poderão ser modificados pelos parlamentares.

A PEC também prevê a utilização de eventuais “receitas extraordinárias” para investimentos por parte do governo federal, com limite máximo de R$ 23 bilhões. Como parâmetro, o texto estabelece que os valores não poderão superar 6,5% da arrecadação superou as previsões da lei orçamentária em 2021.

“Tudo isso vai ser fruto de intensas negociações. Quem cobre o Congresso Nacional sabe que dificilmente uma matéria entra e sai da mesma maneira. Claro que estamos esperando que essa PEC sofra modificações até chegarmos a um consenso. Chegando ao consenso, submetemos a votação”, disse Castro em entrevista a jornalistas.

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Segundo o senador, houve uma mudança de estratégia por parte do governo eleito, para que a busca por um “denominador comum” aconteça durante a tramitação da PEC no Congresso, diante do prazo apertado. Lula tem menos de quatro semanas para concluir a tramitação do texto caso queira iniciar seu governo com fôlego fiscal para cumprir promessas de campanha.

Seria a segunda tramitação mais rápida para uma peça desta natureza no parlamento desde a redemocratização − perdendo apenas para a chamada PEC dos Precatórios (PEC 23).

A ideia é que a chamada PEC da Transição abra espaço para garantir o pagamento do Bolsa Família (programa que será retomado no lugar do Auxílio Brasil) em parcelas de R$ 600,00 mensais e um adicional de R$ 150,00 a famílias com crianças de até seis anos.

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O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023, encaminhado pelo governo Jair Bolsonaro (PL) ao Congresso reserva recursos para um programa de transferência de renda de apenas R$ 400,00 mensais (o equivalente a R$ 105 bilhões). Seriam necessários mais R$ 70 bilhões para viabilizar o tamanho desejado pelo novo governo ao programa.

Mas a equipe de Lula deseja retirar todo o Bolsa Família “turbinado” do teto de gastos − o que abriria espaço dentro do teto de gastos de R$ 105 bilhões para novas despesas. O presidente eleito tem defendido que o espaço seria fundamental para garantir a recomposição de programas como o Farmácia Popular, a merenda escolar e políticas públicas na área da Saúde.

Na prática, esse volume somado aos investimentos públicos de até R$ 23 bilhões poderia gerar R$ 198 bilhões em despesas fora da regra fiscal − como já era sinalizado na minuta apresentada por Alckmin aos congressistas duas semanas atrás.

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Congressistas entendem que este seria um “cheque em branco” para o futuro governo (que sequer apresentou seus ministros) e que superaria as necessidades de políticas públicas mais urgentes, além de reduzir o poder de barganha do parlamento logo no início da próxima legislatura.

Apesar da pressão do mercado e do mundo político, o texto não incluiu dispositivo forçando o novo governo a apresentar uma proposta de novo arcabouço fiscal em 2023.

A PEC, por outro lado, manteve dois dispositivos previstos na minuta de Alckmin. Um deles prevê que despesas das instituições federais de ensino custeadas por receitas próprias, de doações ou de convênios celebrados com demais entes da federação ou entidades privadas, também sejam excluídas da base de cálculo para os limites impostos pelo teto de gastos.

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Desta forma, universidades poderiam ser incentivadas a buscar receitas incrementais aos repasses recebidos dos governos. Hoje, o teto de gastos impede que tais instituições, mesmo que recebam doações, possam utilizar os recursos, que iriam diretamente ao caixa da União e só poderiam ser utilizados no abatimento da dívida pública.

O segundo prevê que despesas com projetos socioambientais ou relativos às mudanças climáticas, no âmbito do Poder Executivo, custeadas por recursos de doações, também possam ficar de fora das regras fiscais. O raciocínio é semelhante ao caso das universidades. Em ambos é difícil fazer estimativas precisas de impacto fiscal.

Para que comece a tramitar no Senado Federal, a proposta ainda precisa da assinatura de 27 integrantes da casa legislativa. Segundo Castro, este processo não foi iniciado, mas o parlamentar diz que “o ideal” é já contar com todas as assinaturas necessárias na terça-feira (29).

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Conforme informou a assessoria do parlamentar, a PEC foi protocolada na Secretaria Geral da Mesa sob o número SEDOL n. SF/22501.56247-20. As assinaturas estão sendo incluídas pelo sistema, de forma online e, somente após as 27 assinaturas, a proposta receberá uma numeração.

Mesa de negociação

Lula conta com o elevado capital político que a recente vitória nas urnas garante a presidentes eleitos para cumprir a difícil missão. Mas o incômodo dos parlamentares com a proposta apresentada indica que o governo eleito terá que fazer concessões.

Por se tratar do instrumento mais alto na hierarquia do processo legislativo, uma PEC tem tramitação complexa – exigências que contrastam com a janela estreita que o governo eleito tem para aprovar a medida antes da posse.

Além de uma série de formalidades (como a passagem por comissões específicas), o texto dependeria do apoio de 3/5 em dois turnos de votação tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal – o que significa apoio mínimo de 308 deputados e 49 senadores em cada deliberação no plenário.

Considerando o fato de que os 513 deputados e os 27 senadores eleitos em outubro de 2022 tomarão posse apenas em fevereiro do ano que vem, Lula precisará abrir negociação com as atuais composições das casas legislativas.

Hoje, um contingente de 244 congressistas está no exercício de suas funções, mas não exercerá mandato na próxima legislatura – o que pode tornar negociações mais custosas.

Conforme estabelece a Constituição Federal, as atividades legislativas vão até 22 de dezembro − quando está previsto o início do recesso parlamentar −, o que indica um horizonte de 5 semanas entre a apresentação do texto e a promulgação pelo parlamento.

Uma vez coletadas as 27 assinaturas necessárias, a PEC precisa tramitar na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal − colegiado hoje presidido por Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), aliado do atual presidente da casa legislativa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Ao receber de Alckmin a minuta da proposta, Alcolumbre deu sinalizações de boa vontade com a matéria, demonstrou atenção com o tempo curto e prometeu dar a celeridade possível à matéria na CCJ.

Uma vez superado o debate na comissão e feita a votação entre os integrantes do colegiado, o texto poderá seguir para o plenário − onde precisa ser votado em dois turnos, com maioria de 3/5 (ou seja, 49 dos 81 senadores) favoráveis para avançar. A expectativa inicial de aliados de Lula era que esta etapa fosse vencida ainda em novembro, o que não deve se cumprir.

Uma vez aprovado no Senado Federal, o texto segue para a Câmara dos Deputados, onde as regras de tramitação são mais restritivas. O regimento interno da casa legislativa estabelece que PECs sejam submetidas a exame de admissibilidade na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) em um prazo de cinco sessões.

Depois de aprovado por maioria simples dos membros do colegiado, é instalada uma comissão especial para avaliar o mérito da matéria, que terá prazo de 40 sessões para proferir parecer. O prazo para a apresentação de emendas é de dez sessões.

O substitutivo só seguiria a plenário após avaliação do colegiado e aprovação dos integrantes. No plenário, após interstício de duas sessões, a proposta pode ser incluída na Ordem do Dia, submetida a discussão e votação em dois turnos, com intervalo de cinco sessões. Em ambas, é necessário apoio de pelo menos 3/5 (ou seja, 308 dos 513 deputados).

Caso o rito fosse cumprido à risca, seria impossível aprovar a PEC da Transição ainda em 2022. Mas há manobras possíveis, que se tornam mais simples à proporção do consenso gerado entre as bancadas da casa legislativa.

Um expediente normalmente usado pelos parlamentares para acelerar a tramitação de PECs na Câmara dos Deputados é “pegar carona” em outra proposta já em estágio avançado de discussão na casa. Desta forma, seria possível queimar etapas, como algumas exigências regimentais a nível de comissão.

No caso da PEC da Transição, a ideia em discussão seria apensar o texto à PEC 24 ou à PEC 200, que já estão prontas para análise do plenário. O movimento, no entanto, deverá ser objeto de contestação e precisará contar com negociações e acordos.

Cabo de guerra

Agentes econômicos têm manifestado preocupação com o impacto das medidas sobre as contas públicas. A retirada completa e permanente do Bolsa Família do teto de gastos gerou incertezas fiscais, que foram aprofundadas pelo pedido de uma licença para gastar na casa de R$ 200 bilhões.

Nos últimos dias, senadores apresentaram propostas alternativas, de menor impacto fiscal para 2023. O senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) protocolou uma PEC com previsão de estouro do teto de R$ 70 bilhões − exatamente o custo adicional para garantir o Bolsa Família em R$ 600,00 e os R$ 150,00 a famílias com crianças de até seis anos. Já o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) encaminhou uma proposta com impacto de R$ 80 bilhões.

No “centrão”, as sinalizações também são de pouca disposição a entregar tanto para Lula num momento em que sequer a base do governo eleito no Congresso Nacional foi definida. Seria um cheque robusto demais para o pontapé inicial do governo e que reduziria o poder de negociação dos parlamentares nos próximos meses.

Há uma avaliação hoje nos bastidores de que a PEC da Transição, no atual desenho, não teria votos para prosperar nas duas casas legislativas. Tal percepção somada aos prazos absolutamente apertados fatalmente levarão Lula à mesa de negociações – e possivelmente a um resultado mais equilibrado.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.