“O Brasil não vai mais precisar ficar falando mal dos EUA”, diz especialista

Entrevistado pelo podcast Rio Bravo, o professor José Augusto Guilhon vislumbra uma valorização da pauta comercial e melhores relações com o norte global em meio à troca de comando no país e as novas escolhas de política externa

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – O impeachment de Dilma Rousseff e a subsequente efetivação de Michel Temer na presidência da República trouxeram uma nova direção para a política externa brasileira, com uma maior disposição em manter relações mais amistosas com o norte global. Essa é a avaliação que faz José Augusto Guilhon, professor-titular de Relações Internacionais da USP. Em entrevista ao podcast Rio Bravo, o especialista diz vislumbrar uma valorização da pauta comercial em detrimento a questões ideológicas com essa mudança de comando no país.

“Acho até que essa ambiguidade em relação aos EUA tende a desaparecer a médio prazo. O Brasil não vai precisar mais ficar falando mal dos EUA, se recusando a se integrar na economia americana por razões ideológicas e tomar medidas apenas simbólicas quanto a isso”, disse Guilhon. Abaixo, os principais trechos da entrevista. Para ouvir à íntegra, clique aqui.

Já é possível falar de mudança de estratégia na política externa brasileira com a troca de governo?
Uma mudança de estratégia requer mais reflexão sobre os acontecimentos. É uma mudança de direção, que existe claramente desde que algumas questões mais ou menos simbólicas na política externa do lulismo nos últimos 13 anos já foram objeto de algum tipo de ação do governo. Estou me referindo à questão da Venezuela, tanto do ponto de vista da relação política entre os dois países — que era muito próxima e se tornou bastante distante nesse momento, e até certo ponto é conflituosa –, quanto no que diz respeito à sua participação no Mercosul. São sinais. Algumas declarações já feitas no âmbito da chancelaria mostram que há uma intenção de reverter a importância das grandes relações mais estreitas do Brasil com os países mais desenvolvidos, de um lado, e com os países emergentes, de outro lado. E também entre países que estão mais alinhados com a tradição ocidental, o tipo de democracia e o capitalismo do que com países que se afastam desse modelo. Isso está mais ou menos claro. Há uma mudança de orientação, de direção. Para falar em uma estratégia, eu acho que isso ainda precisaria ser observado melhor nas intenções, declarações e movimentos concretos.

Nos últimos anos, os Brics eram citados como exemplo de alternativa ao relacionamento especial comercial que o Brasil mantinha com os Estados Unidos. No discurso de posse, o ministro José Serra afirmou que o Brasil não repele parcerias. É possível manter interesses nessas duas frentes? A mudança de direção representa a escolha por um desses caminhos?
Aí é uma questão de linguagem. Muita gente acha que o governo Temer — especialmente a nível da chancelaria — está retomando a chamada política externa independente. Eu não acho que seja assim. As palavras ditas e propostas feitas em determinada conjuntura histórica, quando feitas em outro momento, têm sentidos completamente diferentes. O mundo mudou, a economia mundial mudou completamente, assim como o comércio mundial. O Brasil perdeu quase metade de sua participação no comércio internacional dos anos 50 para cá. Então, não é possível manter a mesma política externa.

Houve um afastamento da tendência brasileira da política externa ambígua em relação aos Estados Unidos, procurando contrabalançar o poder americano, muito durante o governo Lula. Não houve ambiguidade, era uma hostilidade muito clara em relação aos Estados Unidos, uma denegação das tradições ocidentais e uma prioridade dada a países, senão não-democráticos, que se afastaram bastante da tradição de economia privada contra economia estatizada, democracia representativa contra a chamada democracia popular etc.

Houve um afastamento. Quando ele é afastado, por sua vez, parece que você voltou atrás. Não creio que seja possível voltar atrás, acho até que essa ambiguidade em relação aos EUA tende a desaparecer a médio prazo. O Brasil não vai precisar mais ficar falando mal dos EUA, se recusando a integrar-se à economia americana por razões ideológicas e tomar medidas apenas simbólicas quanto a isso. O Brasil tem interesses de exportação muito grandes e hoje, mais do que nunca, depende não só de exportações, integração em todos os mercados globais, como depende muito de investimentos. Isso vai levar o Brasil a procurar negócios, sem essa ambiguidade.

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Também no discurso de posse, o ministro José Serra falou em renovar o Mercosul, além de construir pontes de aliança com o Pacífico. Do ponto de vista da articulação política e comercial, é viável estabelecer esse diálogo? Há algumas semanas, o presidente da Argentina, Mauricio Macri, reforçou a ideia de uma integração econômica maior na América Latina. Como esses movimentos podem redundar em algo positivo para o Brasil?
Há um sinal que já vem sendo retomado de maneira geral — não só no discurso do ministro, mas no próprio movimento da chancelaria — em direção ao diálogo com a Aliança do Pacífico, que não quer dizer integração. 
A Aliança do Pacífico não é exatamente um acordo comercial, não é uma integração desse ponto de vista, é uma integração do ponto de vista de convergir em políticas comerciais, em normas comerciais que não estão sendo feitas na base de acordos escritos. Lembra um pouco o estilo do leste asiático, que, em vez de fazer acordos comerciais, discute econômica e politicamente como convergir. Não vai ser necessário um acordo, e sim tentar fazer uma coisa que antes não se fazia.

O que se pode falar em integração latino-americana? Hoje, em um sentido mais amplo, integrar todos os países comercialmente está muito difícil. No momento, é impossível, porque há uma divisão muito forte comercial, econômica e política — esta entre os bolivarianos e os demais. Na América do Sul, isso está mais equilibrado, porque a Argentina e o Brasil pularam fora dessa perspectiva. Mas a integração, se vier, será muito lenta. Outra questão é a do Mercosul. Antes de haver inovação, é preciso que ele seja reconstituído de certa forma. Ele está paralisado, não por causa dessa crise, mas porque ele não funciona e essa crise se dá justamente porque ele não funciona.

E quais seriam as reformas necessárias para que o Mercosul pudesse funcionar adequadamente?
Acho que tem que rever tudo. Há três eixos: um é a área de livre comércio, que nunca foi completada integralmente e tem que ser levada a sério; outra é a questão da união aduaneira, da tarifa externa comum, que faz com que todas as importações tenham o mesmo tratamento. Nunca ocorreu e ficou ainda mais atrasado que o livre comércio; e o terceiro [eixo] seria o mercado comum, que incluiria a unificação não só do mercado, mas também dos fatores econômicos: do capital, do trânsito de pessoas e do comércio.

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Em contrapartida, os países que eram parceiros do Brasil nas administrações anteriores tendem agora a ser negligenciados? Pode haver um racha maior entre as chancelarias a partir de iniciativas como a da Venezuela?
Houve posições que eu chamo de intervenções de algumas chancelarias. Do ponto de vista do Mercosul, a oposição da Venezuela. 
No caso do Uruguai, existe claramente a sucessão muito precoce do recém-eleito presidente, que acho que é o que está provocando isso. Você tem um Uruguai, com o secretário geral da OEA [Luis Almagro] que está se projetando como uma pessoa duríssima e que não escolhe inimigo. Antes era o Brasil, agora voltou a atacar a Venezuela. É uma posição muito pouco condizente com o seu cargo de secretário geral da OEA. Ele não está lá para punir ninguém, mas para manter a integração. Isso é um problema que o Uruguai está exportando para lá.

Ninguém citou até agora o Tabaré Vázquez como tendo tomado qualquer posição hostil. É sempre o chanceler. Me parece que ele também está nessa divisão interna. A situação deles é difícil e difícil para os demais, Paraguai, Brasil e Argentina, porque não se pode resolver um problema interno do Uruguai. Essa posição resulta de uma questão interna, então não há muito como mudar. Grandes interesses nós temos com esses países que eram de grande interesse nos governos anteriores.

A China não tem o menor interesse de se incluir nos problemas internos do Brasil. Eles não se metem nas questões internas da Venezuela, de Cuba, embora sejam partidos irmãos e não vai fazer isso em relação ao Brasil. Eles têm, do ponto de vista comercial e estratégia política, uma definição pragmática. Se os países são corruptos, eles não vão cobrar nada. Se esses países são politicamente ditatoriais, também não. Então, não vão se meter aqui de jeito nenhum. No Oriente Médio, pode ser que aconteça algum problema com a autoridade palestina, que é a preferida, mas a autoridade palestina sabe que o Brasil sempre apoiou a Palestina. Só que não hostilizava Israel. Mas também não ganharam comercialmente com isso. E outro exemplo foi em relação ao Irã. O Irã tem muito o que fazer para adequar e ajustar e normalizar sua relação com os Estados Unidos. Não está nem pensando nisso. A Turquia tem outros, como dizem os franceses, cachorros para chutar ou gatos para chicotear. Então, não vai mudar absolutamente nada a meu ver.

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Nos últimos anos, nos governos dos presidentes Lula e Dilma Rousseff, houve uma exuberância ou uma tentativa de buscar protagonismo por parte da diplomacia brasileira. Na sua avaliação, quais foram as consequências dessa iniciativa?
A reforma previdenciária parcial feita pelo governo foi muito mal recebida. E então, quando no exterior ele foi muito bem recebido, muito além do que se poderia esperar e se tornou uma personalidade internacional rapidamente, isso repercutiu aqui. Esqueceu-se todo aquele problema. Ninguém mais lembrou que ele fez uma reforma previdenciária que era odiada pelo PT e toda a esquerda. Ninguém lembrou mais de todas as questões internas que isso projetou. Ficou a imagem de um homem e um país que foram capazes de juntar crescimento, liderança, integração, superação das diferenças sociais, grande abertura para diversidade. Tudo que é bastante falso, mas que foi visto como verdadeiro.

Essa foi uma parte do legado. Teve outra parte nessa tentativa de protagonismo do Brasil em termos de buscar mais alianças ideológicas e também de querer liderar um conjunto de nações.
Isso aí deu uma expectativa de que haveria essa liderança, mas ela não ocorreu. No caso da América do Sul, em vez de uma convergência, houve uma grande divergência. Criaram-se dois blocos incompatíveis. A tentativa do Brasil de exercer alguma liderança no Oriente Médio foi um desastre total. A questão do Irã também foi um desastre, porque foi mal vista pela Rússia, China e outros países interessados naquilo.

Essa expectativa de que o Brasil iria mudar a geografia do comércio internacional é impossível com 1% do comércio internacional. Com 10%, você continua sendo irrelevante. É verdade que o Brasil foi um dos países que mais influenciou a formalização dos Brics. Inclusive, o Brasil teve um papel na constituição do G20, que trouxe o mundo rico com os emergentes. Só que, assim que isso se tornou realmente importante, assim que os Brics se tornaram uma plataforma que convinha, sobretudo com a China e em parte a Rússia, o Brasil perdeu qualquer possibilidade de influenciar.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.