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SÃO PAULO – O plenário da Câmara dos Deputados aprovou, por 276 votos a 124, na quarta-feira (11), o texto-base do novo marco legal do saneamento básico. A proposta cria novas regras para o setor e abre caminho para uma participação mais efetiva da iniciativa privada na exploração dos serviços.
A sessão marcou uma “manobra” dos deputados para que o Senado Federal, embora precise analisar novamente o tema, não tenha a palavra final do texto. O movimento amplia o controle dos deputados sobre a proposta e pode blindá-la de futuras desidratações, mas tende a atrasar a tramitação no parlamento.
No mercado, embora o texto tenha agradado investidores, o risco de novos reveses refletiu no comportamento das ações do setor negociadas na B3, nesta quinta-feira (12). Os papéis da Sabesp (SBSP3) recuaram 3,35%, precificadas em R$ 59,44. Tombo ainda maior foi observado nas ações da Copasa (CSMG3), que encerraram o dia em baixa de 4,99%, cotadas a R$ 66,12.
Para que o texto avance, ainda é necessária a conclusão da votação dos destaques no plenário da Câmara. Depois, ele ainda precisa passar por análise dos senadores, que haviam discutido o tema por outro projeto de lei. Se for modificado, o texto volta para as mãos dos deputados.
Enquanto ainda se esperam os movimentos dos congressistas, analistas políticos já desenham possíveis cenários para a proposta. Entram nos cálculos as expectativas para a reação dos senadores e como seria a tramitação, na casa, de um texto mais duro do que o escolhido alguns meses atrás.
Durante a sessão de ontem, o relator do projeto de lei, deputado Geninho Zuliani (DEM-SP), e líderes partidários do DEM e do PP costuraram um movimento para não votar o texto advindo do Senado.
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No lugar disso, os deputados aprovaram um projeto de autoria do próprio governo, com modificações que o aproximaram muito do relatório que era discutido para o PL dos senadores. Mas com uma significativa mudança: a Câmara deixa de ser casa revisora neste caso para ter a palavra final.
Por ser de autoria do Poder Executivo, o projeto é primeiro analisado pelos deputados, depois pelos senadores. Caso sofra modificação na segunda casa, o texto volta para deliberação dos deputados. Se fosse aprovado o texto advindo do Senado, os deputados poderiam ver suas modificações caírem ao longo do processo legislativo. O relatório de Zuliani é considerado mais “privatista” do que o encaminhado pelos senadores.
A movimentação dos deputados foi interpretada por alguns analistas como uma forma de blindar o texto de significativas desidratações, como ocorreu no Senado com a votação do relatório de Tasso Jereissati (PSDB-CE) em plenário.
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Por outro lado, há quem chame atenção para uma maior demora na conclusão da tramitação do projeto, que teria de ser deliberado pelos senadores e possivelmente retornar à Câmara.
“O tempo de tramitação pode ser ampliado de maneira significativa. Além disso, há que ser levado em consideração o retorno tardio do recesso no próximo ano e as eleições municipais”, pontuam os analistas da XP Investimentos.
Além disso, novas modificações são esperadas no Senado Federal, casa mais sensível à pressão dos governadores e com maior participação das bancadas do Norte e Nordeste (tidas como principais focos de resistência) sobre o plenário. Vale lembrar que o texto originalmente apresentado pelo relator Tasso Jereissati (PSDB-CE) era muito mais robusto do que a versão aprovada pelos senadores.
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Analistas políticos também chamam atenção para o risco de um novo capítulo de desencontros entre as duas casas legislativas, em meio à tentativa dos deputados de assumir maior protagonismo sobre o tema — o que já foi observado em pautas como a reforma tributária e a prisão após condenação em segunda instância.
Para Ricardo Ribeiro, analista político da MCM Consultores, “os deputados puxaram o tapete do Senado” e as consequências disso ainda terão de ser monitoradas. “A relação entre Câmara e Senado tem sido conturbada neste ano. As duas Casas têm disputado a primazia em assuntos como a reforma tributária e o pacote fiscal pós previdência”, afirma.
“Tendo em vista esse ambiente já meio crispado, é provável que a manobra feita pela Câmara contamine a passagem do novo marco regulatório pelo Senado. Na pior das hipóteses, os senadores colocarão o projeto na gaveta por tempo indefinido. Na melhor, o engavetamento durará pouco. E não é despropositado pensar que o Senado pode replicar a manobra feita na Câmara. Isto é, pode deixar de lado o projeto da Câmara e recomeçar o processo a partir de uma proposta que tenha origem no Senado. Seja qual for a reação, é possível dizer a aprovação final do projeto tende demorar mais”, complementa.
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O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), disse a casa tentará conciliar a versão do marco legal do saneamento com o texto a ser recebido da Câmara, mas ponderou: “O Senado tem legitimidade para alterar qualquer matéria”.
Nos bastidores, senadores dizem que não foram ouvidos ou informados do caminho optado pelos deputados. Os líderes ainda evitam assumir posição sobre as possíveis reações da casa antes da chegada do texto.
“A natureza do Senado é ser uma casa revisora. Saneamento é agenda de Estado e já está sendo entendida como tal, muito mais até que de governo ou do senador X ou deputado Y. Pensar que questões regimentais sobre a ‘última palavra’ terão potencial para travar o assunto é polemismo desproporcional”, avalia Michel Neil, cientista político e sócio-diretor da Patri Políticas Públicas.
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A aposta do analista é que as diferenças serão contornadas pelas lideranças das duas casas e que o assunto deve ser prioridade na pauta do Senado Federal logo na volta do recesso parlamentar, em fevereiro.
Somente neste ano, a Patri levantou 162 discursos e 263 manifestações em redes sociais de 42 senadores sobre o assunto. Quase a totalidade delas apontou para a necessidade do aprimoramento do marco regulatório.
“O consenso é tamanho que nem teve votação nominal em Plenário na época do texto do senador Jereissati e com apenas sete senadores manifestando posicionamento contrário em um quórum de 63 no dia da votação”, ressalta Neil.
Novas regras
O novo marco legal busca apresentar alternativas para que a meta de universalização do acesso a água potável e de ao menos 90% da população a serviços de coleta e tratamento de esgoto seja alcançada até o final de 2033, conforme prevê o Plano Nacional do Saneamento Básico.
Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Regional, 16,4% dos brasileiros não tinham acesso à rede de abastecimento de água até o ano passado. Do lado do tratamento do esgoto, os números são ainda mais alarmantes: apenas 53,2% tinham acesso ao serviço em 2018.
O levantamento, que é parte dos Diagnósticos da Prestação dos Serviços de Saneamento Básico 2018, elaborados pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), mostra que 46,3% de todo o esgoto gerado no país é efetivamente tratado.
Um estudo feito pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostra que o Brasil acumulou em 2018 três anos consecutivos de redução nos investimentos do setor de água e esgoto. Segundo dados do SNIS, o Brasil investe em média R$ 10,9 bilhões por ano, quase metade dos R$ 21,6 bilhões calculados como necessários para o cumprimento das metas estabelecidas.
O debate sobre o novo marco legal para o saneamento básico se insere em um contexto de crise fiscal e restrições do orçamento público, o que limita a capacidade de os governos atacarem o problema urgente da falta de acesso a tais serviços básicos por metade da população brasileira.
O governo federal estima que a universalização dos serviços de saneamento deve envolver investimentos de R$ 600 bilhões a R$ 700 bilhões. Para isso, a atual administração considera o ingresso da iniciativa privada fundamental.
As mudanças trazidas pelo novo marco são aguardadas pelo setor privado, que hoje está em apenas 6% das cidades e vê boas oportunidades de expansão.
“A ideia é que se crie um ambiente que favoreça participação do setor privado”, explica o advogado Fernando Vernalha, especialista em infraestrutura e sócio-fundador do VGP Advogados.
Ele vislumbra três eixos principais na proposta: 1) Regulação: com o estabelecimento de diretrizes gerais pela ANA (Agência Nacional de Águas), uma maior participação do governo federal nas políticas de saneamento e a delimitação de metas claras vinculados a cobertura e investimentos; 2) Abertura ao setor privado: com o fim dos contratos de programa após um período de transição e as exigências de investimentos; 3) Privatização de empresas estaduais: o novo texto permite que a venda de estatais de saneamento não precisará mais contar com a concordância dos municípios atendidos.
Esta é uma nova tentativa do governo de mudar as regras para serviços de saneamento básico. Duas medidas provisórias sobre o tema (844/18 e 868/18) já perderam a vigência sem serem votadas pelo Congresso. Um texto foi aprovado sobre o assunto no Senado Federal, sob a relatoria de Tasso Jereissati (PSDB-CE), mas em versão desidratada.
Os deputados iniciaram a discussão sobre o assunto a partir deste texto, mas depois optaram por abraçar proposta de autoria do governo, com modificações.
A principal polêmica no debate é a viabilidade de abastecimento de locais com pouca atratividade para a iniciativa privada.
Críticos da proposta dizem que ela acaba com o chamado financiamento cruzado, pelo qual áreas com maior renda atendidas pela mesma empresa financiam parcialmente a expansão do serviço para cidades menores e periferias.
Já defensores dizem que o texto permite a organização de municípios em aglomerações, o que poderia trazer atratividade comercial para os projetos e garantir a presença da iniciativa privada.
“Temos algumas possibilidades previstas no projeto. A agência reguladora poderá e deverá ter um olhar regional para o saneamento. Na vida real, o saneamento não é um negócio de interesse estritamente local, ele tem que ter uma abordagem regional”, observa Vernalha.
O advogado acredita que a ANA deverá oferecer um olhar regional e possibilitar a realização de subsídios cruzados quando necessário. A influência federal poderá ser intensificada com o instrumento do apoio financeiro. Já os estados poderão auxiliar os municípios nas operações, eventualmente lançando as chamadas “aglomerações”, o que tende a tornar determinadas regiões mais atraentes para o investimento privado.
Para ele, o projeto representa um avanço necessário para o setor, mas ainda haveria espaço para aprimoramento, sobretudo se fosse possível diminuir o período de transição para renovação de contratos de programa, ainda que já esteja prevista a inclusão de metas nos novos processos.
“Poderia ter uma agenda mais urgente, antecipando o ingresso do setor privado. Jogar isso para frente não é bom, em virtude da nossa necessidade urgente de investimentos”, argumenta. Para ele, com as informações hoje disponíveis sobre a situação das empresas estaduais, é muito difícil prever eventuais riscos de incapacidade de cumprimento de compromissos de investimentos eventualmente assinados em novos contratos.
“Mas, pelos vários indicadores que existem, eu diria que as companhias estaduais terão que se reinventar para que possam seguir com a participação relevante no mercado a partir do novo modelo”, diz.
Apesar dos riscos ainda em aberto, a avaliação geral no mercado é favorável sobre o texto aprovado pelos deputados. “Algumas companhias poderiam escolher estender as concessões. No entanto, com novos targets de operação, qualidade e investimentos, muitas não serão capazes de manter os contratos. Acreditamos que deve haver maior regionalização e agrupamento de concessões segundo interesses em comum”, observam os analistas do Credit Suisse.
(com Agência Estado e Agência Câmara)
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