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A decisão da equipe do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de protocolar no Senado Federal praticamente o mesmo texto da minuta apresentada pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), a líderes do Congresso Nacional indicou uma mudança na estratégia do novo governo para a PEC da Transição, mas também dificuldades para se chegar a um consenso a menos de 1 mês para o fim das atividades legislativas de 2022.
O texto é considerado fundamental pelo governo eleito para garantir o pagamento do Bolsa Família (programa que será retomado no lugar do Auxílio Brasil) em R$ 600,00, um adicional de R$ 150,00 a famílias com crianças de até 6 anos e outras promessas de campanha de Lula. Mas tem encontrado resistências de parlamentares, que buscam maior clareza sobre a futura gestão, negociam espaços no governo e evitam dar um conforto orçamentário excessivo para o presidente eleito em seus primeiros meses de mandato.
A peça é praticamente uma cópia da versão apresentada por Alckmin em 16 de novembro. A principal exceção fica para a delimitação de quatro anos para a retirada integral das despesas com o Bolsa Família (programa que será retomado no lugar do Auxílio Brasil) do teto de gastos – regra fiscal que limita a evolução de despesas públicas à inflação no ano anterior.
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Outra exceção foi que a versão da PEC protocolada pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI) – que também é relator-geral do Orçamento de 2023 – traz referências mais claras para as excepcionalidades valerem apenas no próximo exercício.
O dispositivo fecha a porta inicialmente para flexibilização de despesas ainda neste ano, o que pode ser ponto de negociação adicional ao longo da tramitação. Aliados de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados, têm defendido a autorização de uso de receitas extraordinárias já neste ano, abrindo espaço para despesas com emendas de relator (as RP9, que ficaram conhecidas como “orçamento secreto”).
Questões polêmicas, como o espaço fiscal de R$ 198 bilhões às margens da regra fiscal, incluindo a garantia de até R$ 23 bilhões em investimentos públicos caso haja “excesso de arrecadação” em comparação com o previsto na lei orçamentária, foram mantidas no texto e certamente serão objeto de negociações durante a tramitação da proposta no parlamento.
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“Resolveram enviar um texto ainda não negociado. Claramente por uma dificuldade de se alcançar consenso de algo a priori. É um sinal ruim para a aprovação”, avalia um analista político. “Depois de uma semana favorável após o segundo turno das eleições, a articulação de Lula por uma base parece ter travado nas últimas semanas”.
“Agora, a estratégia de deixar o Bolsa Família fora do teto de gastos por quatro anos é boa. Quem quiser derrubar ficará com o ônus. Lula poderá usar a mesma fala de Bolsonaro [com a PEC Emergencial], de que quem for contra está prejudicando os pobres”, disse outro analista.
Mas há uma percepção cristalizada no mundo político de que aquela não será a versão que sairá do Congresso Nacional e que ajustes serão inevitáveis. Os relatos são de que as tratativas avançaram nos últimos dias, mas não na velocidade necessária para que o texto já pudesse entrar formalmente nas discussões do Senado Federal. O texto conseguiu, em poucas horas, superar as 27 assinaturas para tramitar, mas não há clareza de quando será pautado.
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A avaliação de atores políticos é que a ausência de Lula em Brasília na semana passada, em razão da recuperação de uma cirurgia na garganta, atrasou as negociações da PEC. Na capital desde a noite de domingo (27), o presidente eleito agora tenta correr contra o relógio para vencer as resistências à proposta e, paralelamente, construir uma base sólida para seu governo no Congresso Nacional. Uma aproximação tem sido feita com MDB, PSD e União Brasil.
De fato, há uma percepção de melhora de ambiente. Ontem (29), após reunião com Lula, parlamentares do PSD − sigla que manteve a neutralidade na disputa presidencial, mas agora se aproxima do governo eleito − declararam apoio total dos à PEC. A expectativa é que entreguem mais de 60% de votos favoráveis ao texto.
Por se tratar do instrumento mais alto na hierarquia do processo legislativo, uma PEC tem tramitação complexa – exigências que contrastam com a janela estreita que o governo eleito tem para aprovar a medida antes da posse.
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Além de uma série de formalidades (como a passagem por comissões específicas), o texto dependeria do apoio de 3/5 em dois turnos de votação tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal – o que significa apoio mínimo de 308 deputados e 49 senadores em cada deliberação no plenário.
Considerando o fato de que os 513 deputados e os 27 senadores eleitos em outubro de 2022 tomarão posse apenas em fevereiro do ano que vem, Lula precisará abrir negociação com as atuais composições das casas legislativas.
Hoje, um contingente de 244 congressistas está no exercício de suas funções, mas não exercerá mandato na próxima legislatura – o que pode tornar negociações mais custosas.
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Conforme estabelece a Constituição Federal, as atividades legislativas vão até 22 de dezembro − quando está previsto o início do recesso parlamentar −, o que indica um horizonte de três semanas entre a apresentação do texto e a promulgação pelo parlamento. Por isso, acordos amplos teriam que ser costurados nas duas casas legislativas para superar os obstáculos dos prazos previstos nos regimentos para esse tipo de matéria.
O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), descartou iniciar as discussões sobre a PEC da Transição nesta semana e disse que ainda é preciso alinhar o texto com a Câmara dos Deputados. A comissão é a primeira etapa de tramitação da proposta, que precisa ser aprovada na mesma versão pelas duas casas legislativas, em dois turnos de votação em plenário, com apoio de 3/5.
Já o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse que a PEC pode ser analisada com “urgência e prioridade” pelos senadores na próxima semana. “Não necessariamente o texto final será idêntico ao início. Então, poderá haver alterações que serão amadurecidas na CCJ e no plenário, especialmente em relação ao prazo de excepcionalização do programa social em relação ao teto de gastos. Então, acredito que nós possamos sim, com esse senso de urgência, ter na semana que vem essa apreciação”, disse.
Demandas para modificar o texto não faltam. A bancada do Progressistas no Senado Federal, que conta com 7 dos 81 integrantes da casa legislativa, emitiu nota, na manhã desta quarta-feira (30), manifestando apoio parcial à proposta, como já havia sido sinalizado pelo ministro Ciro Nogueira (Casa Civil).
No texto, o partido defende a aprovação de um texto que conceda os R$ 200,00 extras para o Bolsa Família – garantindo, assim, a manutenção do pagamento em R$ 600,00 no ano que vem, já que o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) encaminhado pelo governo Jair Bolsonaro (PL) reserva recursos suficientes apenas para parcelas de R$ 400,00 – e o adicional de R$ 150,00 a famílias com crianças de até seis anos. Além disso, a sigla apoia a reserva de recursos para um aumento real do salário mínimo, mas advoga para que as medidas valham por um ano.
Já do lado das frentes parlamentares, a bancada ruralista (uma das mais fortes do Congresso Nacional) quer que a PEC também deixe de fora das limitações do teto de gastos os recursos do seguro rural, estimados pelo grupo em R$ 2 bilhões.
Durante a discussão da matéria, Lula também tem sido cobrado da apresentação dos nomes de sua equipe ministerial. Para muitos, incluindo o senador Jaques Wagner (PT-BA), figura da mais absoluta confiança do presidente eleito e que foi escalado para auxiliar nas negociações, a confirmação do futuro ministro da Fazenda poderia ajudar a destravar a PEC.
Hoje, o favorito para a posição é Fernando Haddad (PT), ex-prefeito de São Paulo e o mais longevo ministro da Educação da Nova República, mas figuras próximas de Lula dizem que o martelo ainda não foi batido e outras figuras correm por fora na disputa.
Quanto mais o tempo passa, cresce a percepção de que serão necessárias concessões por parte do governo eleito para avançar com a proposta. Para ter êxito, a equipe de Lula precisará garantir a segunda tramitação mais rápida de uma PEC no Poder Legislativo desde a redemocratização.
Plano B
Diante da percepção de dificuldades crescentes, crescem especulações sobre planos alternativos. “Com um calendário apertado para passar uma emenda constitucional com um “waiver” (licença para gastar) para 2023, cresceram as conversas sobre recorrer a uma medida provisória de crédito extraordinário para custear o plano”, observam os analistas da Eurasia Group, consultoria internacional especializada em risco político.
Como Lula ainda não tem a caneta da mão e a medida certamente não seria tomada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), o presidente eleito só poderia fazer isso em janeiro de 2023. Mas aliados veem a iniciativa como arriscada juridicamente, já que seria difícil cumprir os requisitos constitucionais exigidos para o uso de tal dispositivo.
Pela Carta Magna, a abertura de crédito extraordinário somente é admitida “para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública”. Como a ampliação de programas sociais a partir da excepcionalização do teto de gastos vem sendo discutida desde antes da campanha eleitoral, seria difícil enquadrar juridicamente a demanda do novo governo no critério de imprevisibilidade, expondo a gestão logo no início a riscos junto ao Tribunal de Contas da União (TCU).
“Uma emenda constitucional continua o desfecho mais provável, mas um plano B por meio de medida provisória parece ganhar espaço na medida em que as negociações no Congresso continuam emperradas”, avaliam os especialistas da Eurasia.
Visão similar têm os analistas da consultoria Arko Advice. Em relatório recente, eles disseram que esta semana seria “crucial” para a PEC da Transição e que, se o governo eleito não conseguisse construir um entendimento nos próximos dias, o plano B poderia ganhar força.
Outro ponto destacado pelos especialistas da Eurasia Group é que, embora uma Medida Provisória possa garantir os recursos para o programa de transferência de renda robusto, ela dificilmente teria condições de acomodar um aumento de recursos orçamentários em investimentos públicos e no financiamento de outras políticas públicas defendidas por Lula.
Na avaliação de um político petista que acompanha as movimentações de perto, as dificuldades com a PEC da Transição pressionam Lula a anunciar os nomes da equipe econômica de seu governo. Mas um caminho alternativo poderia ser postergar a votação do Orçamento e a própria discussão da PEC para o ano que vem.
Como o Orçamento encaminhado por Bolsonaro prevê pagamento do Auxílio Brasil em parcelas de R$ 400,00 durante todo o ano de 2023, seria possível redistribuir os recursos para garantir a manutenção dos R$ 600,00 nos primeiros meses – tempo, em tese, suficiente para resolver o imbróglio. Mas além do risco político, o novo governo estaria submetido a restrições impostas pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) até resolver o impasse da PLOA.
Um terceiro caminho observado pelos analistas da Eurasia Group seria acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) na tentativa de obter o aval para a retirada do Bolsa Família do teto de gastos. Mas o timing para o julgamento seria incerto, assim como o desfecho.
“Os juízes poderiam optar por autorizar que apenas parte do benefício permanecesse fora do teto de gastos. Eles também poderiam estabelecer um prazo para que o Executivo e o Congresso aprovassem uma nova legislação fiscal para tratar da questão, em de eles mesmos decidirem se o programa de bem-estar social deveria estar sujeito ao teto”, especulam os analistas da Eurasia.
Diante de todas as incertezas e riscos políticos e jurídicos associados, a avaliação de especialistas é que a PEC da Transição permanece como prioridade do governo eleito para abrir espaço orçamentário adicional em 2023.
A avaliação é que a equipe de Lula apostará alto para aprovar a proposta, mesmo que isso signifique um texto mais modesto ao final da tramitação no Congresso Nacional. Prova disso pode ser a manifestação de apoio de PT e PSB à recondução de Arthur Lira no comando da Câmara dos Deputados no biênio 2023-2024.