Gravações sobre “rachadinhas”, manifestações populares e CPI da Pandemia: as consequências de um Bolsonaro sob pressão

Fatos novos chegam em momento especialmente negativo para o governo. Impeachment é considerado distante, mas analistas veem desgaste acumulado

Marcos Mortari

O presidente Jair Bolsonaro durante embarque no aeroporto de Brasília (Foto: Alan Santos/PR)
O presidente Jair Bolsonaro durante embarque no aeroporto de Brasília (Foto: Alan Santos/PR)

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SÃO PAULO – A revelação de gravações inéditas indicando envolvimento direto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em esquema ilegal de coação de assessores para a entrega de parte dos salários recebidos amplifica o desgaste sofrido pelo mandatário em um momento delicado para o governo federal.

Três reportagens publicadas pelo site UOL, na última segunda-feira (5), reforçam indícios de atuação de Bolsonaro, quando exercia mandato de deputado federal, em prática de “rachadinha” ‒ mesma irregularidade que um de seus filhos, o agora senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), é investigado no Rio de Janeiro.

O veículo mostra mensagens enviadas pela fisiculturista Andrea Siqueira Valle, ex-cunhada de Bolsonaro, em que ela afirma que o mandatário demitiu seu irmão porque ele se recusou a devolver parcela maior do salário como assessor.

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Em conversa por aplicativo, a mulher e a filha de Fabrício Queiroz chamam Bolsonaro de “01” e dizem que o presidente “não vai deixar” Queiroz voltar a atuar como antes.

Na terceira reportagem, é apresentado um coronel da reserva do Exército, que teria atuado no recolhimento de salários da ex-cunhada de Bolsonaro no período em que ela constava como assessora do antigo gabinete de Flávio na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio).

Para os analistas da XP Política, os fatos novos chegam em momento especialmente negativo para o governo, com perda de apoio popular, avanços das investigações pela CPI da Pandemia, denúncias de irregularidades envolvendo a compra de vacinas e manifestações populares, e tem “forte potencial de desgaste político”.

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“Ainda que [Bolsonaro] não possa ser responsabilizado por atos estranhos ao mandato [enquanto for presidente], o fato leva, pela primeira vez, a uma investigação pela possível existência de um crime envolvendo diretamente o presidente”, pontuam.

Mesmo que o caso não traga efeitos jurídicos no curto prazo, os especialistas afirmam que o potencial de corrosão sobre a imagem de Bolsonaro não pode ser desconsiderado. Para eles, os elementos podem favorecer a “desconstrução do discurso de um governo que sempre fez questão de se diferenciar dos demais, não pela eficiência na gestão, mas pela distância das práticas que foram sonoramente rejeitadas pelas urnas em 2018”.

Uma das consequências imediatas da notícia, pontuam os analistas, é a perda de condições do governo em conduzir uma agenda de interesse próprio no Poder Legislativo ‒ caso das reformas econômicas, que já enfrentam os obstáculos impostos por um calendário cada vez mais curto e com a antecipação da disputa eleitoral de 2022.

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“Por enquanto, Arthur Lira (PP-AL) continua como goleiro de pedidos de impeachment e eventuais denúncias que possam ser apresentadas ‒ e vai tentando imprimir ritmo de normalidade ao dia a dia da Câmara. Mas, a cada pancada que o governo recebe, o custo para manter o apoio no Congresso aumenta, assim como o poder do Legislativo para ditar os caminhos da agenda”, avaliam.

“E segue valendo a máxima: aliados políticos carregam caixões até o cemitério, mas não se jogam no túmulo em solidariedade ‒ ainda mais se essa aliança estiver assentada apenas em termos pragmáticos, como é o caso”, complementam.

Os especialistas lembram que foi a prisão de Fabrício Queiroz o evento que provocou mudança completa de rumos na estratégia política de Bolsonaro, que, desde então, trabalhou por uma aliança com partidos do “centrão” em busca de sustentação parlamentar.

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“É preciso observar para onde irá caminhar essa nova revelação e quais as consequências terá sobre o apoio da base bolsonarista raiz, que ainda se apega ao discurso anticorrupção. Difícil imaginar que, neste momento, o grupo abandone o presidente, mas uma eventual erosão desse alicerce exigirá movimentos do governo, no sentido de uma radicalização ou de entrega ainda maior ao ‘centrão’ ‒ que, por ora, tem dado mais sinais de que quer usar a fragilidade do governo para se promover do que para se distanciar dele”, concluem.

Para o cientista político Thiago Vidal, gerente de análise política da Prospectiva Consultoria, as suspeitas envolvendo a compra de doses da vacina indiana Covaxin, reforçado pelos depoimentos do deputado Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, o servidor Luis Ricardo Miranda, representam o maior risco para o presidente Jair Bolsonaro nesse aspecto.

“Estamos vendo uma nova crescente de pressão contra o presidente, desta vez com justificativas mais substanciais. O caso da Covaxin está muito mal explicado ainda, e também por isso permite aos opositores do presidente a dúvida: não há nada, por enquanto, que seja muito incriminatório (áudios, mensagens do próprio Bolsonaro etc.), mas tampouco houve defesa ou explicação razoável. Enquanto essa história ficar mal explicada, haverá ônus ao presidente”, observa.

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O especialista ressalta que o episódio pode ajudar a mudar a percepção que parte do eleitorado tem sobre a conduta de Bolsonaro, sobretudo na questão do combate à corrupção, uma de suas principais bandeiras na corrida presidencial de 2018.

“Já as denúncias da UOL nos parecem mais do mesmo em relação à questão das ‘rachadinhas’, e padecem do mesmo mal que boa parte das denúncias contra Bolsonaro: muita citação de terceiros e pouca evidência que envolva inquestionavelmente o presidente. Não digo que não há ou que não tenha havido envolvimento em escândalos de corrupção, mas, desde um ponto de vista político, a oposição vai precisar de muito mais para inviabilizá-lo”, pontua.

Para Vidal, o impeachment é hoje cenário improvável, que não parece conveniente nem a determinados setores da esquerda, mas os episódios certamente promovem um desgaste ao bolsonarismo em alguns de seus principais pilares.

Visão similar tem o analista político Carlos Eduardo Borenstein, da consultoria Arko Advice, que também chama atenção para o fato de as gravações se referirem a fatos anteriores ao mandato de presidente ‒ o que inviabiliza investigações durante a gestão.

[O episódio] Dá munição para a oposição questionar o grande diferencial de Bolsonaro, que era quem supostamente não utiliza métodos da política tradicional. Pode arranhar essa imagem”, diz. Para isso, salienta, será importante monitorar as próximas pesquisas de opinião pública. Mas, do ponto de vista de estratégia política, o analista é cético sobre mudanças substanciais.

O cientista político Carlos Melo, professor do Insper, não observa significativos impactos sobre o eleitorado que acompanhou Bolsonaro até o momento, mas vê nos novos episódios potenciais justificativas para um descolamento maior de uma fatia relevante de eleitores menos conectados ao chamado “bolsonarismo raiz”.

“Isso reforça uma argumentação crítica em relação a Bolsonaro. A partir do depoimento de Luis Miranda, você sai do campo em que se discutem erros de política pública para discutir a questão moral, da corrupção. Quem estava buscando um motivo para pular fora agora tem”, observa.

“Não há efeitos legais [das revelações]. Efeitos para a CPI também não, porque estão fora do fato determinado. Mas é claro que tem um efeito entre aqueles que estão contra Bolsonaro ou que se descolaram do voto a ele. Isso afeta seu patrimônio eleitoral. Com esses desgastes, ele fica cada vez mais reduzido à seita, ao bolsonarismo hardcore”, complementa.

Sobre o potencial de um possível processo de impeachment contra Bolsonaro, o especialista evita fazer previsões, mas ressalta um ambiente de desgaste acumulado, que ao menos expõe um presidente desprovido de iniciativa política.

“É um elemento a mais no processo, que reforça o discurso de quem é a favor do impeachment e pega aqueles que estão em dúvida e dá elementos para eles aderirem também”, diz.

“Impeachment é um processo político. Ninguém acorda de repente e diz ‘vamos para o impeachment’. É um processo. O desgaste vai em um crescente. Esse processo tem ocorrido e Bolsonaro não tem conseguido reagir. Qual foi o fato positivo gerado por ele nos últimos seis meses?”, destaca.

Para Melo, as ruas hoje falam em impeachment com uma naturalidade maior do que antes. No último sábado (3), milhares de brasileiros em todas as capitais do país e em Brasília saíram para protestar contra o atual governo. Foi o terceiro ato organizado pela oposição, mas desta vez com adesão de militantes de direita e partidos como o PSDB.

O especialista enumera cinco condições fundamentais para o avanço de um processo de impeachment: insatisfação econômica, fato determinado, forte mobilização popular, fragilidade parlamentar, e amplo acordo político envolvendo, inclusive, a própria figura do vice-presidente ‒ que é quem assume o poder em caso de afastamento do titular.

Cada condicionante encontra-se em um estágio distinto e seria difícil prever se um processo desta natureza poderia ocorrer a 15 meses das próximas eleições. De qualquer forma, o professor vê inequívocos sinais de perda de capacidade política de Bolsonaro na reta final de seu mandato ‒ tendência difícil de ser revertida.

“Ao mesmo tempo que vai sofrendo desgastes consecutivos, ele não consegue ter uma agenda positiva. Não dá para dizer que Bolsonaro tem iniciativa política, e não vejo por onde ele possa retomá-la”, afirma.

“Sem Covaxin, sem CPI da Pandemia, as reportagens significariam pouco. Vistas isoladamente, as revelações são chatas, desagradáveis, mas não teriam efeito. Mas, no conjunto, são mais um elemento de desgaste para o presidente com uma parte do eleitorado que tem se descolado e que tende a se descolar do bolsonarismo. É mais um tijolinho no muro”, conclui.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.