Governo monitora CRIs e CRAs após tributação de fundos fechados; mercado teme mudanças

Discussão sobre lastro de produtos isentos ganha força em meio a novas operações no mercado e consultas na CVM

Marcos Mortari Bruna Furlani Wellington Carvalho

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Depois de concluir a primeira etapa de uma agenda voltada ao sistema tributário, com a sanção da nova lei para aplicações financeiras no exterior e fundos exclusivos, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) passou a monitorar mais de perto a situação de duas modalidades de investimentos isentas de Imposto de Renda: os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) e os Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs).

Os papéis lastreados em operações de crédito têm crescido nos últimos anos como alternativas de financiamento de longo prazo a taxas mais baratas para empresas vinculadas a atividades do mercado imobiliário ou do agronegócio. Segundo dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), as emissões de CRIs e CRAs saíram de R$ 8,04 bilhões e R$ 15,29 bilhões, respectivamente, em 2017, para R$ 48,10 bilhões e R$ 42,22 bilhões em 2022. No ano passado, após um primeiro semestre fraco por conta de fatores externos, houve uma disparada nas captações pelas empresas.

Do lado do investidor, CRIs e CRAs representam opções mais sofisticadas de investimento para os interessados em renda fixa, com o benefício da alíquota zero de IR e retornos mais atrativos, mas a contrapartida da ausência de cobertura pelo Fundo Garantidor de Crédito (FGC). Neste caso, há duas formas de exposição aos papéis: como pessoa física (normalmente com acesso restrito a investidores qualificados ou profissionais) ou via Fundos Imobiliários (FIIs) e Fundos de Investimentos em Cadeias Agroindustriais (Fiagros), que também são isentos de tributação.

Tanto os CRIs quanto os CRAs ganharam ainda mais atratividade durante a discussão do que agora virou lei sobre a tributação periódica (o chamado “come-cotas”) dos fundos exclusivos − o que deve gerar novas movimentações no mercado em busca de alternativas de investimentos. Ao menos é o que esperam parte do mercado e integrantes da própria equipe econômica do governo, que já avaliam a capacidade de tais produtos isentos absorverem uma possível demanda adicional sem maiores riscos.

“Dentro de um fundo exclusivo, era possível carregar uma debênture e estar beneficiado pelo imposto diferido que só seria cobrado quando a cota fosse vendida ou recebesse o recurso de volta. Como isso não vai mais acontecer desta forma, o produto isento vira um instrumento bastante interessante para fazer essa eficiência tributária do alocador”, explica Idalicio Silva, sócio e gestor do núcleo agro da AZ Quest.

Conforme o InfoMoney apurou com fontes com conhecimento no assunto no Ministério da Fazenda e no mercado, há dois níveis de discussão em curso no poder público e instâncias reguladoras sobre os lastros dos CRIs e CRAs que têm sido emitidos no mercado recentemente. A leitura é que a legislação que trata desses produtos, por ser muito aberta, incentiva a criatividade do mercado para lançar cada vez mais formas para garantir financiamento às companhias. Em alguns casos, autoridades entendem que outros segmentos têm se aproveitado de um “uso disseminado” dos instrumentos.

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De um lado, quem participa deste mercado argumenta que os produtos acompanham o dinamismo e a complexidade das cadeias desses dois setores e que restrições poderiam trazer impactos relevantes sobre o crédito e a atividade econômica. De outro lado, há uma preocupação com possíveis distorções e um distanciamento em relação ao espírito das leis que introduziram os novos produtos. Além das dúvidas sobre a eficiência do volume de receitas renunciadas pela isenção tributária de CRIs e CRAs.

Segundo o Demonstrativo de Gastos Tributários (DGT), elaborado pela Receita Federal, o governo deve deixar de arrecadar R$ 51 bilhões em Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) com rendimentos isentos e não tributáveis em 2024. Títulos de crédito do setor imobiliário e do agronegócio respondem por R$ 6 bilhões das renúncias de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), incluindo Letras de Crédito Imobiliário (LCIs) e Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs). Não há dados específicos sobre CRIs e CRAs.

Não é a primeira vez que produtos isentos entram no radar de Brasília. Em 2021, o governo de Jair Bolsonaro (PL) chegou a propor o fim da isenção de FIIs e Fiagros no bojo de um projeto de lei de reforma tributária. “A ideia durou um dia”, lembra uma fonte que na época trabalhava no Ministério da Economia. O dispositivo foi abandonado logo no início de sua tramitação na Câmara dos Deputados − em uma demonstração de força dos lobbies dos dois setores − e o texto sofreu profundas modificações até passar naquela casa legislativa e parar na gaveta do Senado Federal.

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Desta vez, no entanto, a tendência é que, caso uma discussão sobre investimentos isentos saia do papel, o encaminhamento se dê pela via infralegal − ou seja, sem necessidade do aval do Congresso Nacional. Neste caso, duas alternativas são monitoradas pelos agentes econômicos. A primeira delas envolveria uma decisão pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que é formado pelos ministros da Fazenda, Fernando Haddad (PT), e do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet (MDB), e pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto − hipótese que daria maior controle ao governo sobre o processo. Uma reunião do colegiado está marcada para 25 de janeiro e há quem acredite que uma indicação mais clara para os produtos isentos saia de lá.

Já a segunda alternativa passaria por uma resolução da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Cinco fontes consultadas pelo InfoMoney indicaram algum nível de conversas no âmbito do órgão regulador sobre o lastro dos certificados de recebíveis. Embora nenhum grupo de discussão tenha sido criado, as fontes afirmam ter percebido uma intenção em reavaliar determinados modalidades desses produtos financeiros. Elas também observaram que as atenções no momento são maiores sobre CRIs do que CRAs.

Dada a sensibilidade política do assunto, o Ministério da Fazenda tem adotado postura cautelosa: aguarda que o debate amadureça no mercado antes de decidir o que fazer. Mexer na isenção fiscal prevista em lei, contudo, parece um movimento pouco provável. No momento, a pasta monitora o comportamento dos ativos e os relatos que tem recebido de preocupação de gestores em encontrar bons ativos no cenário que se desenha desde que os projetos das offshores e fundos exclusivos ainda tramitavam.

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Operações mais expostas

“O mercado é criativo o suficiente para navegar no que a regulamentação permite ou no que ela é silente”, diz Renato Otranto, head de estruturação do Banco Daycoval, sobre a profusão de novas modalidades de CRIs e CRAs no mercado. Para ele, é natural que as autoridades competentes promovam discussões sobre os lastros dos produtos e até revejam decisões já tomadas − desde que as regras não afetem o passado.

“É sempre um ponto de discussão a banalização dos instrumentos para obter a vantagem tributária. Pensando em linhas gerais, empresas que não estão envolvidas diretamente nas cadeias do agro e do mercado imobiliário seriam os primeiros alvos”, avalia Frederico Nobre, líder da área de análise da Warren Investimentos. Ele ressalta, porém, não ter conhecimento em conversas sobre mudanças regulatórias em curso.

Fontes que atuam neste mercado ouvidas pelo InfoMoney citam como lastos expostos a possíveis mudanças os CRIs de aluguéis (referentes a despesas futuras de locação devidamente especificadas), reembolso (em que podem entrar no pacote gastos de até 24 meses antes da emissão) e geração distribuída (GD) de energia.

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“Desde que permitiu que fosse feito o CRI para reembolsar os aluguéis e captar recursos para fazer frente a aluguéis que ainda vão vencer, a CVM permitiu uma hiperalavancagem em cima de determinado imóvel”, diz uma fonte do mercado sob condição de anonimato.

“Do mesmo jeito que quem é proprietário do imóvel e tem um contrato de aluguel com outra pessoa pode ir ao mercado e antecipá-lo, a outra pessoa pode captar dinheiro no mercado para colocar no caixa para pagar aluguel futuro. No fim, poderia ser criada uma situação em que estaríamos alavancando o mesmo contrato de aluguel nas duas pontas dele: uma que deve e outra que tem a receber”, complementa.

No mercado, os CRIs de geração distribuída também não são unanimidade. “Não vejo sentido nenhum nisso, mas é a forma como o mercado conseguiu se adequar para entregar os financiamentos de longo prazo e os projetos conseguirem ter seus retornos e pagamentos do investimento feito”, diz uma fonte.

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“O governo federal está sentado em uma deliberação para transformar os projetos de GD em elegíveis às debêntures incentivadas há dois ou três anos. O projeto de lei não sai do lugar. O dinheiro está lá, a demanda pelos projetos existe. Então, o mercado foi atrás do instrumento e resolveu. A CVM nunca falou que estava errado. E sendo ela o regulador maior, todo mundo seguiu em frente, os projetos estão feitos”, pontua.

Papéis vinculados a emissores que não atuem diretamente em um dos dois segmentos também são vistos com maior risco pelas fontes consultadas. Seriam os casos de CRIs que têm como devedores bancos − modelo que tem respondido por altos volumes de emissões, dada a percepção de segurança que as instituições financeiras podem agregar aos produtos − e CRAs vinculados a redes de supermercados e restaurantes. Nestes modelos, um risco poderia ser a revisão da janela de observação distinta ao do prazo das operações envolvidas ou a criação de condicionantes que aumentem a exigência de comprovação de alocação de recursos no agro e no mercado imobiliário.

Idalicio Silva, da AZ Quest, é cético quanto às condições de tal discussão avançar, mas pontua que eventuais mudanças que restrinjam o acesso das empresas ao mercado de capitais via produtos incentivados podem afetar negativamente não apenas os setores envolvidos, mas a atividade econômica em geral. “Toda a vez que o governo imagina mudar algo que está funcionando e operando bem, as pessoas se questionam muito se vai afetar estoque ou só o futuro. É uma discussão que pode paralisar o mercado, já que quem está alocando talvez pare para avaliar o efeito”, diz.

“Esses produtos têm a função de fomentar mercados específicos. Seria um prejuízo para a indústria tirar o benefício, porque o investidor acaba tendo uma boa alternativa de diversificação da carteira”, concorda Odilon Teixeira, head de renda fixa e estruturação do Banco Genial.

Procurada pela reportagem, a CVM disse que “analisa informações e movimentações no âmbito do mercado de valores mobiliários brasileiro, tomando as medidas cabíveis, sempre que necessário”. “Ressaltamos que a Autarquia está permanentemente modernizando a regulamentação e supervisão, em função de fatores diversos, tais como estruturas inovadoras, experiência da supervisão, demandas de agentes de mercado, adaptações às mudanças de legislação, entre outros”, diz em nota.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.