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Os decretos editados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na semana passada para modificar o Novo Marco Legal do Saneamento Básico enfrentam resistências no setor e entre grupos políticos – e têm elevado potencial de gerarem disputas jurídicas, segundo especialistas.
Os decretos suspendem o limite de 25% para subdelegações em processos de concessão – o que deve ampliar as operações via PPPs (Parcerias Público-Privadas), ampliando a possibilidade de investimentos no setor. Eles também prorrogam para 31 de dezembro de 2025 o prazo de estruturação da operação regionalizada (ou seja, o agrupamento de município em regiões com estrutura de governança própria).
Um dos pontos mis polêmicos, no entanto, é que os dispositivos permitem a atuação de companhias estatais de saneamento prestem serviços em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões sem licitação. A alegação é que, nestes casos, o estado, assim como o município, poderia ser considerado titular do serviço. Para críticos, o dispositivo desvirtua os princípios estabelecidos pelo Marco Legal do Saneamento, aprovado pelo Congresso em 2020.
Hoje, o saneamento é prestado em sua maioria por empresas públicas estaduais (muitas delas em dificuldades financeiras para realizar o nível necessário de investimentos para expandir a prestação de serviços). A nova regulamentação do setor veio justamente com o intuito de aumentar a concorrência a partir de um ingresso mais expressivo do setor privado e permitir uma melhora na qualidade da infraestrutura.
Antes da edição dos decretos por Lula, 1.113 municípios, com população de 29,8 milhões, tiveram os contratos considerados irregulares com as companhias de água e esgoto após análise da capacidade delas de cumprir os objetivos do novo marco: universalizar os serviços de água e esgoto até 2033, com fornecimento de água para 99% da população e coleta e tratamento de esgoto para 90%.
Da forma como estava previsto na lei, esses municípios não poderiam receber verba federal para cumprir as exigências, já que os contratos foram considerados irregulares. O Palácio do Planalto, porém, justificou a mudança com o argumento de que é preciso evitar que serviços e investimentos sejam suspensos e que haverá “rigorosa fiscalização”.
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Atualmente, 100 milhões de pessoas não têm rede de esgoto e falta água potável para 35 milhões, segundo ranking divulgado este ano pelo Instituto Trata Brasil, com base nos indicadores de 2021 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento.
Outra mudança introduzida pelos decretos é a priorização dos critérios de modicidade tarifária e de antecipação da universalização dos serviços para a definição de alocação de recursos federais e nos financiamentos com recursos da União. Com isso, o foco deixa de ser na outorga.
No mercado, algumas passagens dos textos também deixaram uma clara percepção de objetivo implícito do governo em garantir maior segurança jurídica a contratos de programa e de concessão anteriores aos dispositivos. Enquanto especialistas do Direito se dividem entre aspectos positivos e flexibilizações que podem pôr em risco metas de universalização previamente estabelecidas.
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Para Luiz Felipe Pinto Lima Graziano, sócio de Giamundo Neto Advogados, membro dos Comitês de Saneamento e de Ética e Compliance da ABCE (Associação Brasileira de Consultores de Engenharia), os novos decretos contrariam os objetivos essenciais do novo marco regulatório do saneamento básico.
“A lógica que foi criada distorce o entendimento sobre a titularidade, sustentando que, a partir da regionalização, o Estado seria cotitular dos serviços – e, portanto, seria possível a contratação da respectiva companhia estadual sem licitação”, observa.
“Em outras palavras, as regras do decreto distorcem a essência do Novo Marco Regulatório do Saneamento, que é a de licitar os contratos, a fim de se assegurar que o contratado, seja ele público ou privado, tenha capacidade de cumprir as metas estabelecidas”, complementa.
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“Trata-se de clara distorção da diretriz de regionalização, que tem como único objetivo viabilizar o planejamento integrado dos serviços e a prestação nos locais que poderiam não ser economicamente sustentáveis de forma isolada”, avalia.
Ele destaca, ainda, a flexibilização das regras para a comprovação de capacidade econômico-financeira das empresas prestadoras dos serviços, com extensão de prazo e revisão dos índices.
“Estamos a 10 anos do prazo estabelecido para a universalização dos serviços. A pergunta que não foi respondida é: como companhias que há décadas não universalizaram os serviços serão capazes de fazê-lo agora?”, questiona.
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“O Novo Marco Regulatório do Saneamento não excluiu a possibilidade de prestação dos serviços estaduais. Apenas estabeleceu requisitos objetivos vinculados à comprovação de capacidade para execução dos investimentos requeridos e a necessidade de competição para assegurar sempre a obtenção da melhor proposta pelos titulares e usuários”, sustenta o especialista.
Já o advogado Igor Luna, sócio do escritório Almeida Advogados, especialista em direito administrativo, avalia que os decretos do governo têm elementos que caminham na direção de retirar “travas” do processo de PPPs (Parcerias Público-Privadas) e ampliar a atratividade do setor de saneamento básico para investimentos privados.
Ele ressalta a retirada do limite de 25% para subconcessões de contratos, a prorrogação do prazo para regionalização, a definição mais específica do papel da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) no setor e a alteração de critérios para licitação, priorizando o menor valor de tarifa e a redução da meta para universalização como elementos favoráveis nos novos dispositivos.
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Por outro lado, ele aponta que a prorrogação para 2025 do prazo para que as companhias municipais se reorganizem em operações regionais, embora viabilize o recebimento de recursos federais por cerca de 1.113 municípios impedidos, atrasa processos previstos no novo marco legal e abre margem para novas concessões, dando menos credibilidade à norma.
A Abcon, entidade que reúne as empresas privadas de água e esgoto, afirmou que os decretos contêm mecanismos que “muito provavelmente” podem retardar o alcance da universalização dos serviços de saneamento no País.
Apesar de enxergar avanço em parte das normas – como a que retira o limite para PPPs – a associação critica a possibilidade de manutenção de contratos com estatais sem licitação. A entidade já havia apresentado suas preocupações ao Poder Executivo, enquanto as novas regras eram discutidas pela Casa Civil e pelo Ministério das Cidades com os operadores.
A Abcon segue defendendo que a concorrência por meio de processos licitatórios é instrumento crucial para que a população tenha acesso a serviços de qualidade e operadores com capacidade efetiva de investimento”, diz a associação.
Em sentido oposto, a Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe) celebrou os decretos editados pelo governo Lula. A entidade argumenta que eles incentivarão cerca de R$ 120 bilhões em investimentos e assistirão mais de 30 milhões de pessoas que ficariam desassistidas por um veto a novos investimentos públicos sem readequações ao marco.
A posição da entidade provocou pedidos de desfiliação por parte das companhias estaduais Sabesp (paulista) e Copasa (mineira). A gaúcha Corsan também indicou que seguirá o mesmo caminho.
Obstáculos na política
O Partido Novo ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a suspensão dos decretos. A legenda vê nos dispositivos “o maior retrocesso proposto pelo governo Lula até agora”.
Na ação, o partido alega que o governo está violando os preceitos fundamentais da separação de Poderes, da dignidade da pessoa humana, da redução das desigualdades regionais, da prevalência dos direitos humanos, da vida, da saúde, do meio ambiente, do pacto federativo e da licitação.
O Novo sustenta que os instrumentos “não visaram dar fiel execução a qualquer dispositivo” da legislação estabelecida, “mas sim inovar a lógica por detrás do Novo Marco Legal do Saneamento Básico, assim como ir de encontro a expressos dispositivos legais”.
A legenda avalia que os decretos editados por Lula podem gerar “grave atraso” no objetivo de universalização do saneamento básico no país, “desestimulando a concorrência no setor de infraestrutura e perpetuando os modelos de compactuo político das companhias estaduais de saneamento básico sem capacidade técnico-econômica de levar água potável e esgoto sanitário à população mais carente”.
No Congresso Nacional, também houve críticas aos decretos e parlamentares já articulam mudanças a partir de projetos de decreto legislativo. Esse tipo de dispositivo tem potencial de revogar decretos editados pela Presidência da República.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), disse, em rede social, que o parlamento não admitirá recuos em relação ao que aprovou três anos atrás com o novo marco legal. “Defendo a revisão do Marco Legal do Saneamento com o propósito de aperfeiçoar a legislação vigente. Porém, alerto que o parlamento irá analisar criteriosamente as sugestões, mas não vai admitir retrocessos”, afirmou.
O deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP) apresentou projeto de decreto legislativo para suspender as mudanças no marco do saneamento anunciadas pelo governo federal. Ele argumenta que as peças extrapolaram seus poderes regulamentares para “invadir a seara do Poder Legislativo”.
Outra iniciativa no mesmo sentido foi protocolada pela bancada do Cidadania na Câmara dos Deputados. Na peça, os parlamentares que se declaram independentes alegam que o dispositivo editado por Lula entra em “evidente conflito” o que foi estabelecido em lei.
“O decreto, pois, exorbita do poder regulamentar ao instituir novos critérios de renovação de contratos das estatais sem licitação, permitindo que estatais ineficientes continuem operando por mais tempo, e altera competências da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), esvaziando sua competência técnica”, criticam.
“Além disso, o decreto permite que as estatais operem em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões sem a necessidade de licitação, e cria novos critérios e prazos para as estatais comprovarem sua capacidade financeira”, prosseguem.
Para eles, o decreto tem por objetivo “proteger aliados do atual governo e defender as estatais, ainda que sejam ineficazes”. Eles também afirmam que o dispositivo gera insegurança jurídica ao setor privado e representa um “severo ataque” à meta de universalização de serviços de saneamento básico no país.
“Postergar a exigência de licitações impede que empresas mais capacitadas prestem serviços a preços mais baixos, conferindo sobrevida a um sistema legal que perdura há mais de seis décadas e que o tempo comprovou como incapaz de superar as demandas por saneamento em nosso país”, afirmam.
(com Agência Estado)