Decreto dá vitória a Haddad, mas trégua entre governo e mercado segue distante

Texto recebeu aplausos de economistas e agentes do mercado financeiro após atritos entre governo e Banco Central, mas ceticismo fiscal ainda dá o tom dos preços

Marcos Mortari

Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, durante sessão de debates temáticos para discutir juros, inflação e crescimento (Lula Marques/ Agência Brasil)
Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, durante sessão de debates temáticos para discutir juros, inflação e crescimento (Lula Marques/ Agência Brasil)

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Não teve foto, nem pronunciamento conjunto à imprensa. Mas a reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN), após a edição do decreto que definiu a adoção de um sistema de “meta contínua” de inflação para o País, na última quarta-feira (26), foi marcada por um tom cordial entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto – que até chegaram a trocar elogio, segundo relatos.

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O decreto rendeu aplausos de economistas e agentes do mercado financeiro por respeitar pontos considerados fundamentais para a garantia da credibilidade na condução da política monetária, sobretudo em um momento de ânimos à flor da pele com a desconfiança fiscal e a retomada dos atritos entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o comando do BC. Foram 4 os pontos mais comentados nesse sentido:

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1) A determinação de que qualquer mudança na meta (hoje de 3%) ou no intervalo de tolerância (de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo) decidida pelo colegiado precisa observar antecedência mínima de 36 meses;

2) A ausência na definição de horizonte de convergência, que fica sob responsabilidade do Banco Central (o que na prática confere autonomia para a autoridade monetária executar seu trabalho sem riscos ou percepção de riscos de interferências);

3) A definição de descumprimento da meta somente quando a inflação, medida pela variação acumulada de 12 meses do índice de preços definido pelo CMN, desviar-se por 6 meses consecutivos da faixa do intervalo de tolerância definido previamente;

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4) Maior prestação de contas por parte do Banco Central, que precisará divulgar trimestralmente o Relatório de Política Monetária e, sempre que ocorrer descumprimento da meta (conforme os novos critérios estabelecidos), encaminhar nota ao Ministério da Fazenda explicando os motivos que levaram ao resultado.

A publicação no Diário Oficial da União (DOU) ocorre um ano após o CMN decidir mudar o regime de meta para inflação de ano-calendário para um sistema contínuo. O timing era considerado improvável, pelo momento de escalada nas tensões entre Lula e o Banco Central e de ceticismo do mercado financeiro em relação à agenda fiscal.

Soma-se a isso a preocupação dos agentes econômicos com o futuro da política monetária ao final da gestão de Roberto Campos Neto, em dezembro deste ano, quando Lula indicará o novo comandante da autarquia e passará a ter uma maioria de indicados.

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Permanece na memória dos investidores a decisão dividida do Comitê de Política Monetária (Copom) em maio, que iniciou um processo de desaceleração no afrouxamento monetário – apesar de a decisão unânime dos diretores do BC por interromper o ciclo de cortes na última reunião.

Olhares atentos sobre a redação do decreto capturam algumas pistas de pontos remanescentes da tensão entre governo e BC no texto. Uma delas é o fato de que, em caso de descumprimento da meta de inflação, o dispositivo estabelece que o presidente da autarquia submeta ao Ministério da Fazenda relatório com esclarecimentos.

Como observa uma fonte com conhecimento no assunto, o texto poderia direcionar o envio ao Congresso Nacional ou mesmo à presidência do CMN – que é exercida pela Fazenda. O efeito prático, no segundo caso é o mesmo do texto final, mas a redação, alega a fonte, afastaria qualquer olhar de submissão do BC à pasta.

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Visão que num futuro poderia buscar reforço em outro trecho do decreto, pelos termos escolhidos e tom vago: “O Conselho Monetário Nacional poderá estabelecer mecanismos adicionais de prestação de contas pelo Banco Central do Brasil sobre a condução da política monetária na nova sistemática de meta para a inflação.”

Desconfiança persiste

Do lado de Haddad, o episódio pode ser tratado como uma vitória, na avaliação de integrantes da equipe econômica. Principalmente depois de episódios sensíveis, que tiveram seu ápice na forte reação à medida provisória (MPV 1227/2024) que tratava das compensações para as desonerações a 17 setores econômicos e municípios, devolvida pelo presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), com o aval do próprio presidente Lula.

O processo de recuperação do tombo também envolveu o “abraço” à agenda de revisão de despesas defendida pela ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet (MDB), e muito aguardada pelo mercado.

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Mas a vitória de Haddad com o decreto da meta de inflação é relativa, como sugerem as declarações recentes de Lula críticas ao mercado e questionando a necessidade de reduzir despesas: “O problema é saber se precisa efetivamente cortar ou se a gente precisa aumentar a arrecadação”, disse ele em entrevista ao UOL. Falas que provocaram nova alta do dólar.

[A edição do decreto do novo sistema de meta de inflação] É uma vitória de Haddad, sem dúvida, mas é uma vitória já dada”, pontua Mario Sergio Lima, estrategista macro para a consultoria independente de risco político Medley Advisors. Para ele, a mudança, apesar de representar um avanço institucional para o país, já estava precificada pelos agentes econômicos e somente provocaria reações (e, nesta hipótese, negativas) caso não se confirmasse. “Não entregar, seria péssimo, mas entregar é: ‘ok, tiramos um risco’”, diz.

No mercado, as taxas longas de juros dão o tom da desconfiança fiscal que persiste. Os títulos do Tesouro Nacional atrelados à inflação (NTN-B) com vencimento em 2024, por exemplo, fecharam ontem com um prêmio de 6,38%, descontado o IPCA – patamar considerado proibitivo pelo setor produtivo para a captação de recursos para investimentos em projetos de infraestrutura. A taxa remonta ao período anterior à aprovação do novo arcabouço fiscal, momento de grande sensibilidade nos mercados.

A chave para a reversão, como pontuam abertamente economistas e gestores, está na sinalização de que o novo marco fiscal será respeitado e que o governo será capaz de avançar nos cortes de gastos. Na equipe econômica, há uma série de ideias em construção, mas ainda não há estratégia nem cronograma acertados. O que se sabe é que medidas mais sensíveis devem aguardar o fim das eleições para avançar. Convencer o presidente Lula também parece um processo em construção.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.