Publicidade
A decisão do ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de negar ação do Partido Liberal que visava invalidar votos depositados em parte das urnas eletrônicas usadas no segundo turno das eleições e aplicar uma multa de R$ 22.991.544,60 à coligação Pelo Bem do Brasil (formada por PL, Republicanos e Progressistas) teve repercussões para além do mundo político e gerou reações entre especialistas em direito eleitoral.
O PL, sigla pela qual o presidente Jair Bolsonaro disputou a reeleição, solicitou, na terça-feira (22), uma avaliação por parte da Justiça Eleitoral sobre possível “mau funcionamento” de urnas eletrônicas fabricadas antes de 2020 e pediu a invalidação dos votos registrados em 279 mil equipamentos utilizados que se enquadram neste critério (cerca de 60% do total).
A legenda diz que representantes da empresa Instituto Voto Legal, contratada por ela para a realização da auditoria, teriam identificado falha na “individualização” de arquivos Log de urna, usados na identificação de equipamentos no pleito eleitoral e atividades das urnas, como o momento em que foram ligadas, checagens de autenticidade de software, testagem de teclado, carga dos dados de votação, emissão da zerésima, início e finalização de votação, registro de votos e a emissão do Boletim de Urna, com os resultados.
Como consequência, o partido falou em “ausência de certeza quanto à autenticidade do resultado da votação” e impossibilidade de realização de auditoria dos resultados reportados pelas urnas eletrônicas – informação contestada por especialistas no assunto, que apontaram outros caminhos para se chegar à identificação de cada urna utilizada no pleito.
No mesmo dia, Moraes determinou que, em 24 horas, a coligação de Bolsonaro apresentasse um relatório completo sobre as eleições – incluindo o primeiro turno em sua contestação, já que as mesmas urnas foram utilizadas naquela votação.
No primeiro turno, realizado em 2 de outubro, o PL elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, com 99 representantes, e garantiu a maior quantidade de assentos entre os partidos no Senado Federal (14), mesmo após a saída de Jorginho Mello (SC), que venceu a disputa para o governo de Santa Catarina.
Continua depois da publicidade
Ontem (23), o ex-deputado Valdemar Costa Neto, presidente do PL, disse que insistiria na contestação restrita ao segundo turno – contrariando, na prática, a determinação de Alexandre de Moraes. Condenado no escândalo do mensalão, o político citou diversas vezes resolução da Justiça Eleitoral que possibilita às entidades fiscalizadoras (dentre elas, partidos políticos) apresentar pedidos de “fiscalização extraordinária”, desde que “relatados os fatos e apresentados indícios”. Ele alegou que o objetivo de seu partido é “evitar fantasmas” sobre as eleições de 2022.
O PL argumenta que estender os questionamentos feitos ao primeiro turno das eleições poderia causar “grave tumulto processual”, considerando o número de candidatos envolvidos nas disputas por cargos eletivos – da Presidência da República às assembleias legislativas.
“Estender a verificação extraordinária pretendida também para o primeiro turno parece ser medida açodada, especialmente porque, como efeito prático, traria a própria inviabilidade da medida ora pretendida, em razão da necessidade de fazer incluir no polo passivo da ação todos os milhares de candidatos que disputaram algum cargo político nessas eleições, bem como seus partidos, coligações e federações”, alegou o partido.
Continua depois da publicidade
Diante da insistência, Moraes decidiu negar o pedido e multar a coligação de Bolsonaro em R$ 22.991.544,60 por litigância de má-fé. O magistrado também determinou o bloqueio dos fundos partidários de PL, Republicanos e Progressistas até o pagamento da penalidade.
O PL acionou sua assessoria jurídica, que vai analisar a decisão do TSE. Por meio de assessoria de imprensa, o partido reiterou “que apenas seguiu o que prevê a Lei Eleitoral que obriga as legendas a realizar uma fiscalização do processo eleitoral”.
Especialistas em direito eleitoral concordaram com a posição do magistrado, em meio à fragilidade dos elementos apresentados pela coligação e o pedido extremo feito de anulação de milhões de votos no segundo turno das eleições.
Continua depois da publicidade
“Correta a decisão do ministro Alexandre [de Moraes] ao extinguir a representação e reconhecer a má fé de seus autores”, avalia o advogado Fernando Neisser, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP) e da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP).
“As informações fornecidas pela Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE dão conta da falta de elementos mínimos da acusação formulada, bem como do fato de que seus autores têm plena ciência desse fato. As urnas, mesmo anteriores a 2020, são plenamente identificadas, não havendo qualquer fundamento para que se despreze mais de metade dos votos dados pelo eleitorado”, complementa.
“O bloqueio temporário do fundo partidário serve para forçar os partidos a pagarem a multa, o que parece bastante razoável. Além disso, o valor arbitrado, ainda que alto, reflete a gravidade do ataque à democracia que representa uma ação puramente destinada a insuflar as massas que pedem um golpe nas instituições”, conclui o especialista.
Continua depois da publicidade
Para o advogado Belisário dos Santos Júnior, membro da Comissão Internacional de Juristas, o pedido de anulação de milhões de votos “afronta a lógica e o Direito” e exigia resposta pela Justiça Eleitoral. “Há um dever de lealdade de quem pede em direção ao juiz a quem se pede. O pedido deve guardar coerência com o arcabouço legal”, diz.
“Pedir anulação de mais de 60 milhões de votos por um capricho e pela necessidade de manter acesas manifestações ilegais de paralisação de estradas é um disparate e como tal deve ser tratado. Ainda bem que temos Justiça Eleitoral. Não há direito para quem ataca a democracia”, conclui.
“Uma vez sendo esta a compreensão do juízo, é plenamente cabido ao juiz da causa a aplicação de penalidade por litigância de má-fé, por se tratar de uma petição extraordinária, isto é, a destempo do rito convencional para questionamento das urnas e sem embasamento mínimo capaz de justificar uma apreciação racional do alegado”, observa o advogado Cristiano Vilela, membro da Confederação Americana dos Organismos Eleitorais Subnacionais (CAOESTE/Transparencia Electoral, em espanhol).
Continua depois da publicidade
Já o advogado Alexandre Rollo, especialista em direito eleitoral e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP), diz que a posição do magistrado tem caráter pedagógico. “O direito de petição é garantido pela Constituição Federal, mas ele deve ser exercido com responsabilidade – como qualquer outro direito”, sustenta.
“Partidos políticos são instrumentos da democracia, sendo financiados, majoritariamente, com recursos públicos. O dinheiro público não pode servir para financiar – ainda que indiretamente – ações judiciais temerárias que colocam em xeque o próprio sistema eleitoral brasileiro. A decisão do ministro Alexandre de Moraes serve de lição para futuras eleições, para que se pense duas vezes antes de apresentar uma ação temerária e coberta de má-fé”, complementa.
O especialista é taxativo sobre a tentativa de invalidar o resultado do segundo turno. “Não se pode, a pretexto de se buscar a lisura das eleições, colocar em xeque o próprio sistema eleitoral”, conclui.
Avaliação similar tem o advogado Antonio Carlos Freitas Junior, especialista em Direito Constitucional e Eleitoral pela Universidade de São Paulo (USP). ““Apesar de destoar da tradição do TSE, a decisão do ministro foi bem fundamentada na legislação vigente e abre discussão sobre a democracia defensiva, militante e observa”, diz.
“O melhor momento para questionamentos sobre os equipamentos do processo eleitoral é antes das eleições, nas diversas oportunidades dadas pelo TSE aos partidos e outros órgãos fiscalizadores”, lembra. “Qualquer questionamento posterior ao resultado sempre soará como mera insurgência eleitoral e não democrática”.