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Para conter a prática de crimes na internet sem que isso represente um risco à liberdade de expressão dos outros usuários, a discussão sobre o PL das Fake News deveria contemplar todos os setores da sociedade que serão impactados pela regulamentação.
Na avaliação de especialistas ouvidos pelo InfoMoney, a aprovação do regime de urgência pela Câmara dos Deputados, que ocorreu na semana passada, pode atropelar o processo de construção de consenso sobre pontos como a criação de uma agência reguladora para garantir a fiscalização das plataformas.
Nos últimos dias, plataformas digitais e governo têm erguido suas bases em lados opostos. De um lado, as big techs se baseiam no argumento que a nova proposta é uma forma de censura às redes sociais e um cerceamento ao direito à liberdade de expressão para tentar arregimentar o apoio de deputados e barrar o projeto. Do outro, o Executivo defende que a regulamentação deve cumprir o papel de evitar que se repitam cenas ocorridas em 8 de janeiro, quando vândalos invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, ou mesmo episódios de violência nas escolas, como o ataque em Blumenau (SC), sob alegação de que as redes sociais são ambiente fértil para a disseminação de discurso de ódio.
Nas últimas semanas, casos de ataque dentro de escolas fizeram com que o debate alcançasse maior proporção, com investigações recentes apontando que grupos de criminosos têm se articulado em comunidades e fóruns online. De acordo com o projeto que deverá ser votado nesta semana, as plataformas digitais terão que atuar de forma ativa na busca e bloqueio de conteúdos que envolvam discriminação de gênero, idade e raça e que preguem crimes contra o Estado e as eleições.
“O PL das Fake News tem alguns objetivos muito válidos e que justificariam alterações no Marco Civil da Internet, inclusive no tocante à responsabilização dos provedores. No entanto, apesar da relevância dos temas intrínsecos ao PL 2630/20, seja quanto à cautela com os conteúdos postados, aos atores sujeitos à lei e aqueles excluídos de sua aplicação, à responsabilização das plataformas e ao próprio papel da autoridade independente para regulação e fiscalização, para citar algumas frentes temática da discussão, o projeto de lei deveria ter um tempo maior de maturação e discussão”, enumerou a advogada Gabriella de Salvio, sócia das áreas de Telecom e de Mídia e Entretenimento do Souto Correa Advogados.
Entre os pontos que deveriam ter maior tempo dedicado à reflexão, na recomendação de especialistas, está a diferença no tratamento concedido a agentes públicos, já que o projeto estende ao ambiente virtual a imunidade parlamentar prevista no artigo 53 da Constituição Federal, que diz que “deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
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“A mais recente redação legal do PL omite-se ao efetivo combate à desinformação em larga escala no ambiente virtual. E mais: posicionou-se como uma ferramenta de regulamentação dos provedores abarcados pela norma que dos discursos pulverizados por meio destas plataformas e de seus respectivos responsáveis. É o que se depreende de suas disposições, que impõem aos provedores parâmetros de transparência excessivos, a eles delegam todo o exercício moderativo sobre conteúdo, acolhem a inimputabilidade de figuras políticas – partes tão inerentes ao debate das fake news – e, ao final, a despeito da larga gama de obrigações repassadas a essas plataformas, as responsabilizam pelo exercício irresponsável da liberdade de expressão de seus usuários”, opina o advogado Daniel Becker, sócio do BBL Advogados e diretor de novas tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA).
O texto considera que contas de representantes dos poderes Executivo e Legislativo, em todos os níveis, são de interesse público e seus titulares não poderão restringir a visualizações das publicações. Ao alçar os agentes públicos a uma categoria “acima”, o trecho traz questionamentos sobre a parcela de responsabilidade da classe política para a não disseminação de desinformação no ambiente virtual.
Para a advogada Emanuela de Araújo, mestre em Direito Penal e ciências criminais (Universidade Sevilha/Espanha), trata-se de uma concessão compreensível por garantir às figuras políticas um canal de comunicação aberto com os cidadãos.
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“As redes sociais se tornaram espaço de atendimento e forma de prestação de atividades dos agentes públicos perante a população, ou seja, uma espécie de gabinete virtual proporcionado pelo avanço da tecnologia. Portanto, a interpretação da imunidade material do referido artigo constitucional deve ser interpretada ao contexto atual”, defende.
Regras para publicidade digital
De relatoria do deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), o texto também define regras de publicidade e mais transparência em relação a mecanismos de recomendação de conteúdo (algoritmo). No caso de empresas e pessoas físicas que investem em anúncios nas redes, é exigida identificação por meio de documento válido em todo território nacional, de financiadores e de responsáveis pelo conteúdo.
Segundo dados do NetLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), somente em 2022 a publicidade digital movimentou mais de R$ 30 bilhões no Brasil, dos quais aproximadamente 80% correspondem à compra de espaço publicitário diretamente pelos anunciantes junto às plataformas.
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“A falta de regulação cria uma assimetria regulatória na qual 2/3 do total do mercado publicitário (referente a publicidade digital) não obedecem a nenhuma regra, restrição ou obrigação de transparência, deixando anunciantes e consumidores vulneráveis aos interesses econômicos das plataformas. Anúncios promovendo compra de armas, golpes de estado e fraudes financeiras podem facilmente ser veiculados nas plataformas, que ganham dinheiro também com esse tipo de publicidade tóxica”, diz trecho do relatório divulgado pelo NetLab.
Sob pena de pagamento de multa que pode chegar a R$ 50 milhões, as redes sociais ficam obrigadas a remover conteúdos ilícitos relacionados à prática de crimes no prazo de até 24 horas. As empresas também precisarão indicar aos usuários a existência de contas automatizadas, e produzir relatórios semestrais indicando o número total de pessoas cadastradas que acessam os serviços a partir de conexões localizadas no Brasil.
O projeto de lei também pede a criação de uma nova tipificação penal para quem promover ou financiar a divulgação em massa de mensagens produzidas sabidamente mentirosas, e que possam comprometer o processo eleitoral. A pena sugerida é de um a três anos de prisão.
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As normas apresentadas pelo projeto de lei são direcionadas a redes sociais, ferramentas de busca e aplicativos de mensagem instantânea com sede no Brasil ou em outros países, e que tenham mais de 10 milhões de usuários registrados por aqui. A lei não se aplica a sites que funcionam como repositório de conteúdo acadêmico ou enciclopédias online.
No caso dos aplicativos de conversas online, o texto do projeto determina que as plataformas deverão criar um mecanismo para que o usuário dê seu consentimento para participar de grupos de mensagem e listas de transmissão.
“Tais medidas são necessárias para enfrentar a pandemia de desinformação e discurso de ódio que tem crescido nas redes sociais, algo que se tornou um desafio para democracias de todo o mundo. Em grande medida, isso ocorre pelo modelo de negócios das plataformas, que promove extremismos para gerar engajamento”, defendeu Orlando Silva em artigo assinado no jornal O Globo, no último domingo (30).
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A proposta ainda prevê que as plataformas terão de remunerar empresas jornalísticas por uso de conteúdos, deixando os detalhes a serem debatidos em uma regulamentação posterior.
Quem fiscaliza?
Retirada de última hora do texto pelo relator, a criação de um órgão regulador para a aplicação de sanções e penalidades, apelidado pela oposição como “Ministério da Verdade”, foi um dos focos de polêmica nos últimos dias. As críticas à ideia se concentravam entre os parlamentares que a viam como esforço do governo para promover a censura.
Para o advogado Ricardo Botelho, sócio do Marchini Botelho Caselta Advogados, a indefinição sobre quem será o responsável por garantir a fiscalização das plataformas dificulta o debate, ainda que possa ser resolvida em um segundo momento, com a tramitação de um projeto paralelo que trate deste tema de maneira específica.
“No texto, a falta de uma entidade autônoma para fiscalizar pode ser interpretada como uma busca por consenso político pelo relator, mas quem terá competência para indicar que houve um erro? No projeto constam muitos deveres, que precisam de uma entidade responsável para aplicá-los”, apontou.
Contrariando a recomendação do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que durante a sessão que aprovou o regime de urgência da matéria pediu que os parlamentares não alimentassem um clima de polarização, o tema tem inflamado deputados bolsonaristas que apontam riscos à liberdade de expressão. Por outro lado, a base governista encara a votação como primeiro grande teste no Congresso.
Deputados evangélicos têm se movimentado de maneira contrária à proposta, que na visão deles atentaria contra a liberdade religiosa. Por isso, não está descartada a hipótese de adiar o debate no plenário caso não haja acordo para aprovação.
Para ser aprovado, o texto precisa de presença mínima de 257 parlamentares no plenário, e maioria simples de votos. Se passar pelo crivo dos deputados, a matéria deverá ser encaminhada ao Senado, uma vez que apresenta alterações no projeto aprovado anteriormente, fazendo com que a Casa Revisora tenha palavra final sobre o texto.