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A percepção de esgotamento da agenda de ajuste das contas públicas pelo lado das despesas, tanto no mercado financeiro quanto em Brasília, aumentou a pressão sobre o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para que fossem tomadas medidas de corte de despesas em busca do cumprimento das metas fiscais.
Desde a derrota sofrida com a devolução da medida provisória que tratava da compensação para as desonerações a 17 setores econômicos e milhares de municípios pelo Congresso Nacional, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), abraçou o discurso de que é hora de avançar com a revisão de gastos − movimento que já vinha sendo defendido pela ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet (MDB).
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De lá para cá, Lula deu sinais ambíguos, ora sinalizando para um “pente-fino” de programas sociais e apontando não haver nada descartado nas discussões, ora salientando que nenhum ajuste recairá sobre as camadas mais pobres da população e rechaçando ações como a desvinculação de benefícios previdenciários do salário mínimo e mudanças nos pisos constitucionais da Saúde e da Educação.
Em manifestações públicas recentes, Lula até questionou a necessidade do ajuste fiscal e sugeriu que o equilíbrio poderia vir inteiramente de aumento de arrecadação − declarações que se somaram a um contexto de hostilidade com o atual comando do Banco Central e o próprio mercado financeiro, que geraram maior percepção de risco entre agentes econômicos.
Agenda inevitável
Integrantes da equipe econômica sustentam que apenas a recomposição da base fiscal (como se convencionou chamar a agenda de incremento de receitas) não será suficiente para garantir a higidez das contas públicas no longo prazo sob o novo marco fiscal.
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Isso porque o aumento de arrecadação só ajuda no cumprimento da meta de resultado primário − atualmente em déficit de 0% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2024 e 2025, com banda de tolerância de 0,25 ponto percentual para cima ou para baixo.
No caso do limite de despesas, esse raciocínio atrapalha, já que os gastos obrigatórios normalmente crescem em proporção superior à média geral das despesas − o que na prática deverá estrangular ainda mais as despesas discricionárias no longo prazo.
“O governo ganha mais recursos paga gastar [de um ano para outro], mas as despesas obrigatórias comem isso. Quando aumenta a receita, o mix de obrigatórias e discricionárias piora. É como se estivéssemos colocando mais água e menos leite. Vai ficando aguada”, pontua um secretário da equipe econômica do governo.
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“Vamos precisar de algo estrutural para isso não contaminar a relação [entre receitas e despesas]“, argumenta a fonte sob condição de anonimato. Ele reconhece que as condições de mercado não melhoram justamente pela ausência de medidas de ajuste fiscal do lado das despesas e diz acreditar que o presidente entenderá a importância de um movimento nessa direção.
“Ele vai entender e alguma coisa vai sair. O ponto é qual. Nós vamos levar um leque grande de opções que façam essa contaminação [de despesas obrigatórias sobre o total dos gastos] não ser tão forte. Há espaço para fazer isso”, sustenta.
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Cardápio indigesto
As medidas pelo lado das despesas que devem ser apresentadas a Lula são consideradas, em grande medida, politicamente sensíveis, com potencial de contrariar parte da base de apoio do mandatário em um momento delicado para sua administração.
É por isso que aliados indicavam que boa parte delas deveria ficar para depois das eleições municipais. Mas os recentes episódios de estresse no mercado financeiro podem forçar uma antecipação do calendário.
Enquanto antes se acreditava que o combate a fraudes e a revisão de cadastros na Previdência Social e em outras políticas públicas bastariam no curto prazo, a pressão pode exigir que algumas iniciativas venham à luz logo no início do segundo semestre. Tal cenário ganha força em meio à necessidade de o Palácio do Planalto entregar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2025 ao Congresso Nacional até o fim de agosto.
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Veja as principais medidas de redução de despesas em discussão pela equipe econômica (e que podem ser levadas à avaliação de Lula em breve):
1) Pisos constitucionais
Orçamento executado em 2023: R$ 185 bilhões (Saúde) e R$ 94 bilhões (Educação)
Algumas alternativas são ventiladas pela equipe econômica para reduzir duas das maiores rubricas das despesas obrigatórias.
Um caminho menos provável seria reduzir os percentuais que definem o valor mínimo a ser repassado para Saúde − hoje equivalente a 15% da receita corrente líquida (RCL) − e Educação − correspondente a 18% da receita líquida de impostos.
Outro envolveria a unificação dos dois pisos − o que garantiria maior margem de manobra para o gestor público alocar recursos de acordo com as necessidades. Como o governo federal tem alocado recursos acima do mínimo exigido pela Constituição Federal para a manutenção e o desenvolvimento do ensino, o desenho poderia implicar em redução de despesas na prática.
As duas opções mencionadas exigiriam aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) − proposição legislativa com regime de tramitação mais complexo e maior exigência de quórum (3/5 das duas casas, com dois turnos de votação em cada).
Uma alternativa politicamente menos custosa envolveria um desenho que exigisse apenas aprovação de projeto de lei complementar (PLP) − que demanda quórum de maioria absoluta (ou seja, 257 deputados e 41 senadores).
Neste caso, circula entre a equipe econômica a ideia de modificar o conceito de receita corrente líquida na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000), reduzindo a base de cálculo do mínimo constitucional da Saúde a partir da exclusão de receitas oriundas de royalties de petróleo e ganhos com dividendos de empresas estatais, como a Petrobras (PETR3; PETR4), por exemplo.
2) Abono salarial
Orçamento executado em 2023: R$ 25 bilhões (abono salarial)
Do ponto de vista técnico, existe uma visão clara na equipe econômica de que há ineficiências em programas como o abono salarial, que consiste no pagamento de um salário mínimo anual a trabalhadores que recebem em média até dois salários mínimos de remuneração mensal de empregadores que contribuem para o Programa de Integração Social (PIS) ou para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP).
A leitura é que o abono salarial, além de ter alto impacto sobre as contas públicas, seria regressiva − ou seja, não contribuiria para reduzir a desigualdade social no país, deixando de atender as camadas mais pobres da população. Isso porque o programa só contempla empregados formais e se estende até 2 salários mínimos − o que faz com que uma família de duas pessoas com essa renda (que não representa a base da pirâmide) tenha direito a 2 pagamentos anuais.
No caso do abono salarial, a despeito da regressividade, há um entendimento de que acabar com o programa é politicamente muito sensível. Uma alternativa, neste caso, seria estudar uma espécie de meio termo, como foi feito nas mudanças recentes introduzidas pelo saque-aniversário do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). A ideia seria oferecer um pagamento antecipado referente ao benefício ao trabalhador, mas com algum desconto sobre o valor total.
3) Desvinculações
Orçamento executado em 2023: R$ 40 bilhões (BPC-Idoso), R$ 50 bilhões (BPC-pessoa com deficiência), R$ 48 bilhões (seguro desemprego)
A nova regra de reajuste real do salário mínimo (inflação acumulada pelo INPC somada ao PIB do ano anterior) também tem pressionado o Orçamento Público nas rubricas da Previdência Social e políticas públicas cujos valores de repasse estão atrelados a ele.
Uma mudança na norma geral do mínimo está fora de cogitação, mas integrantes da equipe econômica defendem algum nível de desvinculação em relação a aposentadorias, pensões ou pelo menos alguns benefícios previdenciários.
Neste caso, uma das ideias seria que os benefícios da Previdência Social ficassem atrelados apenas à inflação ou a alguma regra alternativa de reajuste − desde que com menos impacto sobre as contas públicas. O raciocínio é que, por mais que sejam benefícios de subsistência, seria injusto que eles garantissem o mesmo pagamento de aposentados e pensionistas que contaram com contribuição ao INSS. Poderiam entrar nessa lista de políticas atingidas o seguro-desemprego, o abono salarial, o auxílio doença (benefício por incapacidade temporária) e o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
4) Fundeb
Orçamento executado em 2023: R$ 39 bilhões (complementação da União)
Outro caminho relacionado a uma redução de despesas com os pisos constitucionais com Saúde e Educação envolve a possibilidade de inclusão das despesas com os repasses da União a título do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) nos cálculos para cumprimento do mínimo constitucional de 18% da receita líquida de impostos.
5) Previdência dos militares
Orçamento executado em 2023: R$ 27 bilhões (pensões), R$ 32 bilhões (inativos)
Integrantes da equipe econômica também apontam distorções presentes em despesas com aposentadorias e pensões ligadas a carreiras militares, que ficaram de fora da reforma aprovada pelo Congresso Nacional durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
Fontes ouvidas pela reportagem se dividem sobre a viabilidade política de se avançar com a medida, mas indicam que a introdução da discussão pode abrir caminho para a redução de outras rubricas de despesas ligadas à categoria.