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O cientista político Ian Bremmer, que preside o Eurasia Group, consultoria de risco político que faz análises aprofundadas sobre o cenário geopolítico mundial, é taxativo: as eleições de outubro representam um risco para a nossa democracia, que fica mais vulnerável diante da provável alegação do presidente Jair Bolsonaro (PL) de que terá ganhado a eleição, independente do que dirão as urnas. “Isso prejudica a legitimidade das eleições e a credibilidade de instituições que defendem o Estado de Direito”, sustenta.
Para ele, embora seja raro um presidente em exercício perder a reeleição, “Bolsonaro parece determinado a fazer exatamente isso”. Segundo o analista, o presidente, ainda sem partido para concorrer à reeleição a menos de um ano do pleito, embora em negociações com diferentes legendas, “sem dúvida contestará um resultado em que perca”, assim como Trump fez em 2020. Bolsonaro “segue a cartilha de Trump”.
Mas o risco, diz ele, é ainda maior. Em última análise, pode descambar para a violência. Bremmer lembra as cenas vistas na capital dos EUA, que completaram um ano nesta semana, quando apoiadores de Trump invadiram e depredaram o Capitólio. Na visão do analista, cenas parecidas poderão ocorrer por aqui, embora com mais violência.
“(Bolsonaro) tem apoio entre soldados rasos e dentro das polícias estaduais, e isso pode aumentar o risco de violência durante e após as eleições”, prevê. Ele pontua a principal diferença entre os EUA e o Brasil nesse cenário cataclísmico: lá, os agentes apoiavam a lei. O desfecho, diz ele, será afinal o mesmo que teve Trump.
Os alertas de Bremmer sobre o Brasil não se restringem à questão eleitoral. Ele lembra que o país terá um importante papel a desempenhar nas negociações sobre o clima, “mesmo com o desmatamento ainda sem solução”.
Leia a seguir a íntegra da entrevista com Ian Bremmer, concedida ao InfoMoney por email a partir do escritório da consultoria em Nova York. Nela, o analista apresenta sua visão sobre os principais riscos geopolíticos para o mundo a partir de 2022.
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InfoMoney: Quais são, na sua opinião, os eventos atuais e futuros que apresentam os maiores riscos geopolíticos com impactos econômicos para 2022?
Ian Bremmer: Eu destacaria três grandes riscos geopolíticos. Em primeiro lugar, [o fato de] as tensões EUA-China estarem se tornando mais agudas, o que aumenta o risco de erros de cálculo, mas ainda de forma restrita, em função da ampla, profunda e imutável interdependência econômica dos dois países, o que praticamente exclui cenários mais extremos. Em segundo lugar, a crescente disfunção causada pela polarização política dentro dos EUA, que ainda é, de longe, o país mais poderoso do mundo, embora cada vez mais incapaz e relutante em liderar no cenário global.
Finalmente, e em relação a este último risco e também ao crescente foco em si mesma da China, [vejo] uma ampla incapacidade da comunidade internacional de responder a desafios globais que exigem respostas globais, como a pandemia e os danos econômicos relacionados, as mudanças climáticas e a proliferação de tecnologias destrutivas. Tudo isso ligado ao que eu chamo de “ordem mundial G-Zero”.
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[Em seu livro “Every Nation for Itself: Winners and Losers in a G-Zero World” (“Cada nação por si mesma: vencedores e perdedores em um mundo G-Zero”, em tradução livre), ainda não publicado no Brasil, Bremmer defende a ideia de que existe um “vácuo de poder” crescente na política internacional, uma vez que nenhum país ou grupo de países tem a capacidade política e econômica para impulsionar uma agenda global. A esse fenômeno, o autor dá o nome de G-Zero.]
IM: Quando olhamos para a América Latina, quais são, na sua opinião, os fatores que mais devem preocupar os mercados a partir de 2022?
IB: O [fator] número um deve ser a eleição [presidencial] brasileira, a mais significativa de 2022 – não apenas na América Latina, mas no mundo (as eleições na França vêm em um distante segundo lugar). É raro que um presidente em exercício em primeiro mandato perca a reeleição, mas Bolsonaro parece determinado a fazer exatamente isso. Ele alega que tal cenário seria inconcebível e, sem dúvida contestará um resultado em que perca, da mesma forma como (o ex-presidente dos EUA Donald) Trump fez em 2020.
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Não vejo risco significativo de um colapso democrático porque (Bolsonaro) não tem um partido que o apoie no Congresso e porque ele conseguiu alienar todo o Judiciário e grande parte da liderança das Forças Armadas. Mas ele tem apoiadores entre soldados rasos e dentro de polícias estaduais. Embora isso aumente o risco de violência durante e após as eleições, ele não tem capacidade de realmente fraudar o resultado. Mas uma parcela não desprezível de brasileiros vai acreditar quando ele alegar que a eleição foi roubada, o que poderá minar a legitimidade da democracia brasileira.
Fora do Brasil, a deterioração das perspectivas de crescimento, o aumento da inflação e a piora das dinâmicas de dívidas causadas pela (pandemia de) Covid-19 e seus efeitos econômicos posteriores alimentarão sentimentos anti-establishment em toda a região, enfraquecendo governos e abrindo espaço para políticas e candidatos mais populistas. Alguns dos países mais pobres e mais frágeis da região, como a Venezuela, o Haiti e o Triângulo Norte [da América Central, formado por Guatemala, Honduras e El Salvador], continuarão a gerar uma crescente instabilidade por meio de violência, colapso econômico e fluxos de refugiados.
IM: Você disse, em uma entrevista recente, que os eventos de 6 de janeiro em Washington D.C., nos EUA, quando apoiadores de Trump invadiram o Capitólio, poderiam se repetir no Brasil se Bolsonaro não fosse reeleito, mas “com muito mais violência”. Como o senhor vê essa possibilidade?
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IB: Certamente é possível. Bolsonaro está seguindo a cartilha de Trump. A diferença entre os EUA e o Brasil, quando se trata de um cenário como o de 6 de janeiro, é que Bolsonaro tem um enorme apoio nas polícias estaduais e entre militares de baixa patente, enquanto, nos EUA, esses agentes apoiavam de forma esmagadora a lei.
É por isso que considero que o resultado de uma eleição contestada [por Bolsonaro] pode ser mais violento no Brasil. Entretanto, no final das contas, assim como ocorreu nos EUA, as instituições se manterão firmes e Bolsonaro terá o mesmo resultado que Trump: sua derrubada.
IM: O senhor disse, naquela entrevista, que as eleições presidenciais no Brasil serão, entre as principais, as mais disfuncionais de 2022. O que o faz acreditar nisso?
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IB: Acredito nisso porque Bolsonaro tem repetidamente sinalizado que pretende alegar que venceu, independente da contagem real de votos, e porque ele tem muitos apoiadores que acreditarão [nessa versão].
IM: Em que sentido o senhor acredita que esse pleito seria “disfuncional”, em um contexto em que ainda há certo equilíbrio democrático no Brasil?
IB: [A alegação, por parte de Bolsonaro, de que ganhou independente do resultado real] prejudica a legitimidade das eleições e a credibilidade das instituições que defendem o Estado de Direito. Isso não significa que a democracia brasileira esteja em perigo no próximo ano – não está. Mas ficará mais vulnerável.
IM: Ao nos voltarmos para a Ásia, há dois principais focos de tensão: o Afeganistão, com a recente retomada do poder pelo Talibã e a radicalização do país, e, mais a leste, com o recente lançamento norte-coreano de mísseis sobre o mar do Japão, além de exercícios militares conjuntos da China e da Rússia, dois grandes inimigos dos EUA. Você acredita que esses eventos podem ter consequências menos regionais a partir do próximo ano?
IB: Os acontecimentos no Afeganistão e na Coreia do Norte provavelmente terão consequências mais regionais. O Afeganistão será um problema muito maior para seus vizinhos Paquistão e Irã e, em menor escala, para a Turquia, o Oriente Médio e a Europa no que se refere a tráfico de drogas, migração forçada e terrorismo. As [consequências das] ameaças militares da Coreia do Norte serão quase exclusivamente regionais. Embora a ameaça cibernética seja sistêmica, ela ainda não atinge o nível dos riscos globais que mencionei anteriormente.
IM: A recente adoção do Bitcoin como moeda nacional em El Salvador está sendo vista como uma medida “inteligente” para desafiar o padrão-dólar e restrições impostas à sua economia, mas há críticas principalmente quanto ao fato de que isso exclui quem não tem acesso a tecnologias que permitem as transações na criptomoeda. Como o senhor vê isso?
IB: O Bitcoin é um ativo extremamente volátil. Sua adoção como moeda nacional expõe o país (e quem tem a moeda) a muito risco. A medida é essencialmente uma aposta arriscada e unilateral do presidente [salvadorenho Nayib] Bukele de que o Bitcoin se valorizará, o que permitiria que ele eventualmente des-dolarizasse a economia de El Salvador. Mas e se a aposta estiver errada? Líderes soberanos não deveriam arriscar as economias de seu país.
IM: A pandemia da Covid-19 deixou um rastro de inflação, desemprego e crise econômica em muitos países e atingiu diferentes nações e regiões de diferentes maneiras, acentuando a desigualdade em todo o mundo. O senhor acredita que seremos capazes de enfrentar esses desafios em um futuro próximo?
IB: [As consequências da pandemia] vão gerar muito mais desigualdade entre os países. A maioria das nações mais pobres não tem orçamento para proteger de forma adequada seus cidadãos e as empresas das piores consequências econômicas da covid.
Isso significa que a crise será mais profunda e que o período de estagnação será mais longo em países em desenvolvimento do que nos EUA, na Europa ou no Japão. Até o momento, as nações ricas pouco fizeram para acelerar a recuperação nos países em desenvolvimento, mesmo em um cenário em que, ao fazer isso, teriam benefícios muito maiores do que custos.
IM: Na COP-26, que aconteceu ano passado, em Glasgow, a agenda climática se revelou como um grande desafio para governos em todo o mundo. Como o senhor acredita que as questões climáticas poderão representar riscos reais para diferentes países?
IB: Cada país enfrentará seus próprios riscos oriundos das mudanças climáticas, tanto em termos de riscos físicos (aumento das temperaturas, escassez de água, condições climáticas severas) quanto no que se refere aos riscos da transição energética (mudanças nas indústrias, ativos encalhados). Esses riscos refletem a localização e características geográficas, a base de recursos, o nível de desenvolvimento e a composição econômica [de cada país] e estão, cada vez mais, ligados a mudanças na política econômica, industrial e comercial, tanto doméstica quanto internacionalmente.
Líderes têm usado uma série ampla de ferramentas para punir quem está atrasado e para tentar incentivar uma ação mais profunda. Uma das principais preocupações neste tema é que os defensores do clima – como a União Europeia – usem seu poder de mercado para influenciar políticas comerciais e conseguirem o que desejam. A imposição de mecanismos de ajustamento de carbono nas fronteiras e a introdução da sustentabilidade em negociações comerciais (como entre a UE e o Mercosul) representarão um risco para todos os países – especialmente o Brasil – que não planejam atuar no clima da mesma forma.
IM: Falando então especificamente sobre o caso do Brasil, como o senhor acredita que o país poderia ter um papel mais central, principalmente no cenário atual, em que o governo Bolsonaro atua claramente contra a preservação do meio ambiente, por exemplo?
IB: Políticas climáticas também estão se tornando determinante da qualidade do ambiente de investimentos, introduzindo um novo risco de falta de ação na descarbonização doméstica. O Brasil está sob uma forte e crescente pressão internacional para implementar políticas de mudança climática alinhadas ao Acordo de Paris. A ação climática não é mais vista sob lente única, e coloca-se pressão adicional sobre o Brasil e sobre outros países para que façam mais para proteger e preservar o meio ambiente.
Existem limites que a coalizão internacional do clima traçou sobre credibilidade ambiental e o desmatamento está entre eles. O Brasil tem um papel importante a desempenhar nas negociações sobre o clima – mesmo com o desmatamento ainda sem solução: encorajando lideranças climáticas na América Latina e reduzindo suas objeções a certos objetivos da COP26, como o Artigo 6.
[O Artigo 6 do Acordo de Paris reconhece que algumas partes optam por buscar cooperação voluntária na implementação de suas contribuições nacionalmente determinadas para permitir maior ambição em suas ações de mitigação e adaptação e para promover desenvolvimento sustentável e integridade ambiental.]
IM: Nos últimos meses, temos assistido a uma corrida no que me permito chamar “exploração do turismo espacial”, com empresas financiando viagens curtas à órbita da Terra e cobrando taxas estratosféricas. O senhor acredita que isso poderia se desenvolver ainda mais em 2022?
IB: Acho que o turismo espacial é, como diria Douglas Adams [autor do livro “O Guia do Mochileiro das Galáxias”], em grande parte inofensivo, embora possa alimentar alguma reação populista. O risco reside no desenvolvimento privado do espaço se tornar um problema de segurança nacional, por exemplo, se o domínio da SpaceX [uma das empresas envolvidas na “corrida pelo turismo espacial”, fundada em 2002 por Elon Musk] das regras e padrões de orbitar a Terra ameaçarem a soberania de governos no que se refere a vigilância, comunicações por satélite, armamento etc.
Ainda não estamos tão perto disso e há riscos maiores com os quais deveremos nos preocupar em 2022. Mas essa é uma possibilidade que deve ser considerada em uma época em que atores não-estatais – especialmente as grandes empresas de tecnologia – estão desafiando cada vez mais os Estados-nação por influência geopolítica.