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Após mais da metade do mandato, não há um programa de impacto nacional que tenha sido criado pelo presidente Jair Bolsonaro, seja na área econômica ou social. Ao contrário dos seus antecessores que deixaram legados como Bolsa Família (Lula), Minha Casa, Minha Vida (Dilma), Bolsa Escola e combate à inflação (FHC) e Plano Real (Itamar), Bolsonaro não tem nenhuma marca que carregue o carimbo de sua gestão. E tudo indica que nada mudará até o fim de seu governo.
O Estadão ouviu diversos cientistas políticos para analisarem o cenário de paralisia do governo. De saída, todos rejeitam a tese de que as limitações impostas pela pandemia do coronavírus justificam o engessamento generalizado. Pelo contrário. A tragédia sanitária, avaliam os especialistas, poderia ter sido uma “chance” de o governo carimbar a sua gestão. No lugar disso, porém, o que se viu foi a completa falta de planejamento. Até mesmo o auxílio emergencial, que Bolsonaro hoje chama para si, só saiu do papel como saiu após forte pressão do Congresso para ampliar seu valor, dos R$ 200 propostos pelo governo para os R$ 500 e finalmente os R$ 600, que foram pagos em sua primeira etapa.
“Esse cenário que vivemos é resultado do caráter acidental deste governo. A ausência dessa agenda presidencial e de planejamento já era muito visível desde o início. Não é por acaso que víamos Bolsonaro recorrer à figura de um Posto Ipiranga para se referir ao ministro Paulo Guedes, tomando emprestada essa imagem de boa reputação. Fez isso com Sergio Moro na Justiça também, ao apresentar seus superministérios. Essa exploração de imagem e reputação cumpria, naquele momento, a função de ocupar o vácuo da sua agenda eleitoral, que nunca existiu”, diz a cientista política Magna Inácio, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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Bolsonaro tentou tomar para si o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, criando uma releitura da iniciativa petista com o lançamento do Casa Verde Amarela. A realidade é que a proposta ainda não funciona efetivamente e enfrenta resistências do setor de construção. O aumento no custo dos materiais também tem levado empresas a suspenderem o lançamento de novos projetos. Como há um teto para o preço dos imóveis, as construtoras não conseguem repassar esse aumento e acabam desistindo do projeto. Isso prejudicou a classe mais pobre, que busca os imóveis mais baratos.
Na esfera trabalhista, Bolsonaro decidiu incentivar as contratações de jovens, por meio do programa Carteira Verde Amarela. A proposta chegou a ser enviada ao Congresso, mas caducou, porque o governo não trabalhou para a aprovação nem fez os ajustes em um plano que previa até mesmo a taxação do seguro-desemprego.
Dentro da agenda liberal encampada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, privatizações de grandes estatais como o Grupo Eletrobrás e Correios enfrentam forte resistência no Congresso Nacional e têm dificuldades em avançar. Até mesmo em temas onde o governo consegue avançar – como ocorre na área de infraestrutura com as concessões de portos, aeroportos, rodovias e ferrovias – não dá para estampar a cara de Bolsonaro. Todas as concessões são, basicamente, projetos que já estavam em andamento por governo anteriores, inclusive tocados pelas mesmas mãos de Tarcísio de Freitas, hoje ministro da Infraestrutura de Bolsonaro.
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“Na verdade, tudo o que Bolsonaro tem a oferecer é passar boiadas, isso é, desmontar o Estado e suas políticas. Essa é a sua essência”, afirma Fernando Limongi, professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCHUSP). “Esse não foi um governo eleito para oferecer novos programas ou ações. Ele foi eleito com a bandeira da inversão de sinais. É o liberalismo selvagem, cada um que cuide de sua saúde e renda, só pelo trabalho. É isso o que Bolsonaro não para de falar, quer proteger o trabalho, os pobres não precisam ser protegidos. O que precisam é ter o incentivo para ir atrás do ganha-pão. Se recebem de graça, como disse Guedes, não vão querer se esforçar.”
Sem expectativa
O fato de Bolsonaro ter se desvinculado de seus superministros e ter dado uma guinada no jogo político com o Centrão não significa que passou a ter um plano efetivo de governo, já que a mudança é, antes de qualquer coisa, busca de sobrevivência. “Em que pese todos os fatores, você pensa em Fernando Henrique e não tem como dissociá-lo do Plano Real. Lula traz a marca dos programas de inclusão social. Dilma foi marcada por programas educacionais como Prouni (Programa Universidade Para Todos) e Fies (Fundo de Financiamento Estudantil).
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Qual é a marca do presidente Bolsonaro? Nenhuma”, diz Adriano Oliveira, doutor e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Falta essa marca, mas não há perspectiva de que ele vá criá-la. Essa marca será cobrada, porque a identidade dele está atrelada apenas ao viés ideológico.”
Para analistas políticos, a marca do governo é a desconstrução
Se faltam exemplos de programas de governo para marcar a gestão de Bolsonaro na presidência, sobram as medidas de desconstrução de medidas, regimentos e programas em vigor.
Na avaliação de Magna Inácio, professora com pós-doutorado pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, e professora visitante em Stanford, nos Estados Unidos, a atuação de Bolsonaro é marcada pelo “particularismo presidencial”, com avanço em assuntos de interesse próprio, longe da coordenação de uma agenda legislativa. É dessa forma que o governo tem desconstruído muitas medidas e regras, nem que às vezes tenha essas determinações levadas às raias da legalidade, com suspensões de decisões pelo Supremo Tribunal Federal.
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“Nessa esfera administrativa, o governo tem sido ativo para conduzir sua agenda de desconstrução. Vemos isso na área ambiental, com a passagem da boiada que pretende mudar todo regimento do setor, fragilizando seu conselho e sua fiscalização”, comenta Magna Inácio. “Esse unilateralismo presidencial é o que também se percebe na área de direitos humanos, na política externa. Não se trata da quantidade de decretos que o presidente assina, mas da natureza dessas decisões. Ele usa esse recurso para conduzir e implementar medidas de seu interesse.”
Para o cientista político Fernando Limongi, professor do Departamento de Ciência política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da (FFLCH-USP), o desmonte está diretamente associado à ideia de ver, muitas vezes, o Estado de direito como um problema. Um exemplo disso é a insistência de Bolsonaro em retirar radares da estrada, comenta ele. “Ninguém, argumenta o governo, tem o direito de limitar o sacrossanto direito dos caminhões de ir na banguela na descida”, diz Limongi. “Quem vai limitar o direito do proprietário de cortar árvores e fazer o que quer com sua fazenda? Tudo quanto é limitação é abusiva.”
Sobre a pauta de costumes, o especialista lembra ainda o plano voltado à educação em casa, em vez de enviar os alunos à escola. “Estão preparando o mesmo desmonte na educação com o tal do direito a ensino familiar, em casa. Até mandar crianças para a escola é infringir o direito das famílias de darem a educação que querem a seus rebentos. Se querem ensinar que a Terra é plana, é direito deles. Dizer o contrário é ser totalitário. O que vemos é que o Brasil vai retroceder em quatro anos o que levou 30 anos para construir. A política do governo Bolsonaro é fazer a boiada passar, desmontar tudo.”
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