Atuante na campanha e na transição, Janja promete protagonismo em novo governo Lula

Paranaense com passagem por grandes estatais, ela não esconde opiniões sobre direitos das mulheres, antirracismo e sustentabilidade

Luís Filipe Pereira Anderson Figo

Janja vota no Colégio Rainha da Paz, no bairro de Pinheiros, em São Paulo (Foto: Ricardo Stuckert)
Janja vota no Colégio Rainha da Paz, no bairro de Pinheiros, em São Paulo (Foto: Ricardo Stuckert)

Filiada ao Partido dos Trabalhadores desde 1983, Rosângela da Silva, a Janja, será a primeira-dama do Brasil a partir de 1º janeiro de 2023. Com formação acadêmica na área das Ciências Sociais, a paranaense de 56 anos construiu carreira profissional com passagens por Itaipu e Eletrobras (ELET3).

Janja teve alto engajamento durante a campanha presidencial do marido, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e participação ativa nos trabalhos de transição de governo nos últimos meses. Chegou a ser citada pelo coordenador técnico dos grupos de transição e futuro presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Aloizio Mercadante (PT), que a definiu como “uma militante fundamental em nosso processo”. Segundo ele, “pela 1ª vez na história, tivemos uma primeira-dama tão participativa”.

Existe grande expectativa para um possível protagonismo nos próximos quatro anos, principalmente nas áreas de combate à violência contra a mulher, antirracismo, sustentabilidade e meio ambiente, pautas consideradas prioritárias pela nova primeira-dama em suas declarações à imprensa.

Um caso que corrobora esta tese é o recente episódio do deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), que teve o nome barrado por Janja entre as opções de Lula para assumir um ministério no próximo governo. Ele foi indicado pela bancada do PSD na Câmara e era cotado para a pasta do Turismo, mas a primeira-dama o teria descartado por causa de denúncias de agressões cometidas pelo deputado contra sua ex-mulher entre 2008 e 2010. Em 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) e arquivou o caso.

“Se por um lado alimenta-se esta possibilidade de protagonismo, por outro precisamos lembrar que primeiras-damas costumam ter um papel muito engessado no imaginário popular, refletindo um aprisionamento da figura social ancorado nas relações de gênero”, analisa a professora Dayanny Rodrigues, que há dez anos tem como objeto de estudo o que ela mesma define como o primeiro-damismo no Brasil.

Pela trajetória profissional de Janja e o histórico de militância no PT, um possível embate de ideias com a ala mais tradicional do partido — como o observado nos bastidores da transição, a partir da indicação de nomes para cargos nos grupos de trabalho e mesmo no governo a tomar posse — é visto com naturalidade pela cientista política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), Tathiana Chicarino.

“Política é conflito e divergências são próprias da política. O Partido dos Trabalhadores é o maior partido de centro-esquerda da América Latina. São muitas correntes. É preciso haver equilíbrio”, resumiu, acrescentando que ainda é cedo para afirmar que a participação de Janja no processo político brasileiro pode levá-la a se tornar uma líder.

Sem um conjunto de normas ou procedimentos a serem seguidos institucionalmente, a maneira de exercer influência e os caminhos a serem seguidos pelas mulheres que se tornaram primeira-dama são historicamente desenhados a partir dos traços de personalidade.

“Cargos como o de presidente ou primeiro-ministro são comandados tradicionalmente por homens. Por isso, a construção da trajetória das primeiras-damas costuma misturar elementos da vida pública e aspectos da vida privada”, complementou Tathiana.

18.05.2022- Cerimônia de casamento do presidente Lula e a socióloga Rosângela Silva, a Janja, em São Paulo (Foto: Ricardo Stuckert)
18.05.2022- Cerimônia de casamento do presidente Lula e a socióloga Rosângela Silva, a Janja, em São Paulo (Foto: Ricardo Stuckert)

Darcy Vargas, a precursora

No Brasil, o modelo de atuação dessas mulheres foi forjado por Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas. Com objetivo de amparar as famílias dos soldados brasileiros enviados ao front da Segunda Guerra Mundial, ela fundou a Legião Brasileira de Assistência, em 1942. Nas décadas seguintes, a entidade assistencialista se tornaria um símbolo da participação das esposas dos presidentes empossados.

“No período histórico conhecido como Primeira República — ou seja, de 1889 a 1930 — não observamos um conjunto de ações desempenhadas por esposas de presidentes. Ao mesmo tempo, não existia atuação do Estado em políticas públicas voltadas para a Assistência Social. A partir da atuação de Darcy Vargas, o assistencialismo por práticas benevolentes foi um espaço ocupado durante muito tempo pelas primeiras damas”, explicou Dayanny.

A pesquisadora defende a tese de que o papel das primeiras-damas pode abranger uma pauta estratégica — quando a atuação da esposa é emparelhada à presidência da República exercida pelo marido, com atuação da mulher restrita aos bastidores do jogo político — ou a partir de um trabalho mais tático — com participação efetiva e responsabilidade direta no desenvolvimento de ações que fazem parte de uma estratégia maior, atraindo a atenção da opinião pública à sua área de atuação no governo.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e o entendimento de que iniciativas envolvendo a Assistência Social não poderiam depender exclusivamente de práticas benevolentes, o paradigma estabelecido pela atuação de Darcy Vargas acabou rompido por Ruth Cardoso, primeira-dama durante os governos de Fernando Henrique Cardoso. O Estado passou a desenvolver políticas públicas como o Bolsa Escola e a Legião Brasileira de Assistência teve suas atividades encerradas.

Feminista e a favor do aborto, Ruth — que não gostava do título de primeira-dama — fundou e presidiu o projeto Comunidade Solidária, que tinha como foco o combate à pobreza e exclusão social — e que anos mais tarde, já no primeiro governo Lula, seria substituído pelo Fome Zero.

Esposa de Lula nos mandatos exercidos entre os anos de 2003 e 2010, Marisa Letícia exerceu papel mais estratégico ao não assumir funções que consequentemente poderiam refletir em um protagonismo mais amplo. “Marisa também promoveu um rompimento ao não se alinhar às práticas do mundo político para cumprir um papel que não refletia sua essência. Ela desempenhou o papel de companheira ao lado do presidente, também sendo um braço de apoio à governabilidade”, pontuou Dayanny.

Na história recente do país, primeiras-damas também têm participação ativa no processo de construção de imagem do marido. Para dar maior solidez a Jair Bolsonaro (PL), principalmente entre o público evangélico, Michelle Bolsonaro sofreu o que Dayanny chama de “transformação” ao longo do mandato do marido. Este processo culminou na campanha eleitoral de 2022.

“Michelle, na reta final da campanha, chamou para si a responsabilidade de formar a opinião das outras mulheres como esposa exemplar e cumpridora das suas obrigações religiosas. Mudou o corte de cabelo e a tonalidade, deixando transparecer a imagem de mulher madura ao lado do governante em exercício, que buscava a reeleição”, analisou Dayanny.

Organização da posse presidencial

O fato de Janja ter sido designada para organizar a festa da posse presidencial é interpretado de maneiras diferentes. Dayanny acredita que pela experiência profissional e trajetória em grandes empresas estatais, Janja poderia ter participado de maneira plena de algum grupo de transição sobre temas da Cultura ou Direitos das Mulheres — temas declaradamente de sua predileção —, mas o peso das relações de gênero que permeiam o poder podem tê-la deixado mais longe dessa possibilidade.

Ainda que concorde com o aspecto envolvendo as relações de gênero, Tathiana vê a festa da posse como um grande símbolo do resgate da Cultura, o que pode ter sido um elemento importante para atrair para Janja a atenção da opinião pública antes mesmo da posse de Lula. Na história recente do Brasil, não há registro de participação ativa de uma primeira-dama na realização do ato inaugural de um governo.

“A cultura brasileira foi deixada de lado pelo governo Bolsonaro. A posse de Lula em 2023 é algo que podemos comparar, por exemplo, com os comícios das Diretas Já, nos anos 1980, que contaram com alto engajamento da classe artística. Janja não será uma cerimonialista”.

Dentro deste contexto, Janja não esconde o desejo de ressignificar o papel da primeira-dama a partir de 1º de janeiro de 2023. A doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Andreia Maidana acredita que a participação de Janja na festa da posse traz a sinalização de um novo paradigma, já que a própria primeira-dama acredita que entre suas funções também esteja a possibilidade de ‘ressignificar’ o cargo.

“É evidente que Janja não exercerá uma função tradicional de primeira-dama nos bastidores e de forma decorativa ao lado do presidente, e isso já é perceptível desde a sua atuação efetiva na campanha eleitoral que elegeu Lula, pois promoveu eventos e reuniões para fortalecer a candidatura do presidente, além de acompanhá-lo durante toda a campanha”, disse.

“A própria Janja já disse em entrevistas que deseja ressignificar o papel de primeira-dama no próximo governo, atuando diretamente em pautas contra a insegurança alimentar e a violência doméstica contra a mulher. A socióloga está à frente da organização da posse, conta com uma equipe de assessoria para coordenar a organização do evento. Podemos esperar que teremos uma primeira-dama com voz ativa no debate com a sociedade e na execução de políticas públicas”, concluiu.

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