Arcabouço fiscal não sobreviverá sem medidas para conter gastos, diz economista

Em estudo, Felipe Salto aponta cenários de economia com mudanças nos pisos constitucionais de Saúde e Educação, mas diz que ajuste fiscal dependerá de mais medidas

Marcos Mortari

Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena (Foto: Fernando Nectoux)
Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena (Foto: Fernando Nectoux)

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Logo em seu primeiro ano de vigência, o novo marco fiscal tem a sobrevivência ameaçada, caso o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não avance com medidas de revisão de despesas obrigatórias.

Um dos defensores desta visão é o especialista em contas públicas Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos. Em relatório distribuído a clientes, ele aponta “inovações positivas” do novo arcabouço em relação ao extinto teto de gastos (como a regra de limite de despesas com ajuste de 70% da variação real da receita e a possibilidade de acionamento de gatilhos fiscais em caso de descumprimento das metas estabelecidas), mas salienta que até o momento “não foram tomadas medidas complementares que viabilizem o funcionamento duradouro da nova regra”.

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O impasse, que, na avaliação do economista, se assemelha ao que culminou no fim do antigo teto de gastos, tem provocado estresse nos mercados e refletido na alta recente do dólar e na elevação da curva dos juros futuros. Receosos de um quadro de incapacidade de a atual administração em cumprir a regra fiscal que ela própria criou, os agentes econômicos cobram por medidas de cortes de gastos.

“De acordo com as normas atuais, as despesas obrigatórias sobem mais rapidamente que o limite de gastos estabelecidos pela nova regra, o que comprime as despesas discricionárias, exclusive emendas. Tal compressão, em algum momento, inviabilizará o funcionamento da administração pública, e, diante desse risco, a decisão possivelmente será fragilizar ou revogar a nova regra fiscal”, avalia Salto.

No relatório, o especialista estima cenários envolvendo um dos diversos caminhos em discussão pela equipe econômica do governo federal: o da desvinculação entre as receitas e os pisos constitucionais com Saúde − de 15% da receita corrente líquida (RCL) − e com Educação − de 18% da receita impostos líquida de transferências aos entes subnacionais (RLI). Tema que já é objeto de resistência no Partido dos Trabalhadores (PT).

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As atuais regras de vinculação, diz o economista, fazem com que as despesas de Saúde e Educação cresçam necessariamente de maneira mais rápida que o limite global de gastos estabelecido pela regra do arcabouço fiscal. O que contribui para um estrangulamento das despesas discricionárias a médio e longo prazos − que, caso mantido sem que medidas sejam tomadas sobre os demais gastos obrigatórios, inviabilizaria o cumprimento do novo marco para as contas públicas.

No relatório, Salto aponta que, do ponto de vista de espaço fiscal gerado, a mudança no piso constitucional da Saúde produz mais efeitos do que a da Educação − que só culminariam em redução de despesas na próxima década − e faz algumas simulações de cenários possíveis.

Hipóteses para a Saúde

Caso seja aplicada para o mínimo da Saúde a mesma regra de correção do arcabouço fiscal com referência o gasto efetivo do ano passado, o especialista estima um ganho de R$ 9,10 bilhões no ano que vem (resultado da diferença entre R$ 215,1 bilhões estimados com a regra atual e R$ 206 bilhões com a correção das despesas deste ano pelo ajuste projetado pelo limite de despesas previsto no arcabouço fiscal), de R$ 12,49 bilhões em 2025 e de R$ 14,97 em 2026.

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Este cenário dependeria da aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que, na prática, derrubaria o conceito da vinculação dessas despesas à receita corrente líquida. Outro caminho seria alterar o próprio conceito de RCL a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), discussão em curso na equipe econômica, conforme antecipou reportagem do InfoMoney. Neste caso, a mudança poderia ocorrer a partir de um projeto de lei complementar no Congresso Nacional.

“A alternativa seria utilizar outro conceito de receita e/ou alterar o percentual de 15% empregado na atual regra do mínimo. Por exemplo, o ganho obtido de R$ 9,1 bilhões, em 2025, registrado na Tabela 1, no Cenário A, seria possível com uma mudança no conceito de receita cuja expressão quantitativa fosse aproximadamente R$ 60,5 bilhões menor do que a receita corrente líquida. Assim, a redução da base nesse montante, multiplicada por 15%, resultaria nos R$ 9,1 bilhões”, pontuou o especialista.

Como exercício de impacto, Salto destacou que a mesma economia poderia ser gerada com uma redução de 15% para 14,4% no piso constitucional, considerando uma projeção de R$ 1,396 bilhão para a receita corrente líquida. Neste caso, também seria necessário um avanço via PEC − proposição com regime de tramitação mais complexo e exigência de quórum mais elevada no parlamento: 3/5, com dois turnos de votação em cada uma das casas legislativas.

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Hipóteses para a Educação

O especialista também avaliou a situação do piso constitucional da Educação. Ele observa, no entanto, que no ano passado a despesa mínima neste caso foi de R$ 66,4 bilhões (e seria de R$ 94,4 bilhões com aplicação da regra constitucional), mas o governo federal gastou um montante muito maior: R$ 100,8 bilhões.

“Vale dizer, o governo gastaria acima do mínimo exigido, mesmo com a nova regra”, observou. “Trata-se de prática verificada pelo menos desde 2010. Assim, uma mudança da regra que eventualmente reduzisse o gasto mínimo com educação provavelmente não traria ganho fiscal, pois é razoável supor que o gasto continuaria com dinâmica própria e acima do mínimo. Dito de outra maneira, o piso com educação hoje não é uma restrição ativa ao ajuste das despesas da União.”

Unificação dos pisos

Outro cenário testado pelo economista envolve a criação de um piso de gastos conjunto para Saúde e Educação, considerando que ambas são vistas como essenciais, mas podem apresentar diferentes necessidades de financiamento, a depender do contexto.

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Neste caso, foram testados 2 cenários: 1) combinação dos dois pisos, juntando-se a cada ano o valor resultante da aplicação de 15% sobre a RCL, com o valor advindo da incidência de 18% sobre a receita de impostos, líquida de transferências; e 2) soma dos mínimos de 2024 e correção do montante pelo mesmo fator de limite de despesas do novo arcabouço fiscal.

Foram verificados ganhos nas duas hipóteses. No primeiro, há um ganho maior no início, mas ele cai até zerar em 2032. “O espaço fiscal gerado nessa opção consiste em cortar da saúde os gastos excedentes ao piso da educação. Como nossa projeção para os gastos com educação supera o mínimo até se igualar a ele em 2032, o ganho é decrescente, deixando de existir no referido ano”, explicou o especialista.

Já com a utilização da correção do limite de despesas a partir do mínimo unificado, o quadro se inverte, com ganhos menores na largada, mas crescentes − superando o primeiro modelo já em 2028 e chegando a uma economia de R$ 32,73 bilhões em 2033.

“Os ganhos crescentes se devem ao fato de que, na regra atual, os mínimos das duas áreas acompanham na mesma proporção a evolução da receita, enquanto o limite de despesas do arcabouço também acompanha a arrecadação, mas com a aplicação do fator de 70% (ou 50%) da variação real”, pontuou.

Apesar dos ganhos apontados com possíveis mudanças nos pisos constitucionais, Felipe Salto argumenta que o efeito fiscal gerado por esta medida corresponde a uma “pequena parcela” do ajuste total requerido para gerar o superávit primário necessário para a estabilizar a dívida pública.

E aponta como medidas adicionais possíveis a desvinculação entre as receitas e as emendas parlamentares, a desvinculação da previdência e assistência em relação ao salário mínimo e a redução da complementação da União ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.