Arcabouço fiscal: flexibilidade, exceções e receita projetada são pontos de atenção em projeto entregue ao Congresso

Projeto de lei complementar que será discutido por deputados e senadores gera impressões distintas entre especialistas

Marcos Mortari

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) entrega o novo marco fiscal para o Congresso Nacional (Foto: Ricardo Stuckert/PR)
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) entrega o novo marco fiscal para o Congresso Nacional (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

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O projeto de lei complementar que trata do arcabouço fiscal, encaminhado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao Congresso Nacional na última terça-feira (18), trouxe os detalhes aguardados por agentes econômicos sobre a regra que deverá substituir o teto de gastos.

O novo marco fiscal precisa passar pela deliberação de deputados e senadores, com necessidade de apoio de maioria absoluta nas duas casas legislativas, para entrar em vigor e pode ser modificado pelos parlamentares ao longo da tramitação.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), quer dar celeridade à análise da proposta e fala em aprová-la em plenário dentro de 15 dias. No Senado Federal, o presidente Rodrigo Pacheco (PSD-MG) também tem demonstrado boa vontade com a proposição.

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O texto confirma boa parte do que foi apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), há cerca de três semanas. A regra combina uma meta de resultado primário e limites para o crescimento das despesas públicas em relação à evolução das receitas, excluindo o montante arrecadado com concessões e permissões, dividendos e participações e exploração de recursos naturais. Os limites são individualizados para cada Poder da República e todos os parâmetros são definidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

O governo Lula estabeleceu como compromisso um déficit de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2023, equilíbrio no ano seguinte e superávit de 0,5% e 1% em 2025 e 2026, respectivamente. Durante o período, o intervalo de tolerância estabelecido foi de 0,25 ponto percentual para cima ou para baixo.

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Do lado dos gastos públicos, o governo definiu o intervalo de 0,6% a 2,5% os limites mínimo e máximo para a evolução real de um ano para outro. Respeitando esses limites, o fator de ajuste das despesas de um ano para outro será de 70% do crescimento das receitas no exercício anterior.

Ele pode cair para 50% caso o governo não atinja os objetivos de resultado primário previamente estabelecidos por ele. Neste caso, o presidente também precisa enviar uma carta ao Congresso Nacional explicando os motivos de ter ficado abaixo da banda inferior da meta e as medidas que serão tomadas para retomar a trajetória esperada.

Todos os números podem ser alterados por outro governo no futuro, mas a filosofia da regra se mantém, em um esforço para tornar a regra permanente e ajustável aos diferentes ciclos políticos, acomodando distintas ideologias que sejam consagradas pelas urnas.

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Uma das novidades foi a definição dos critérios de ajuste para a regra das despesas. No caso da correção inflacionária, será levada em conta a variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de janeiro a junho somada ao estimado na mensagem do Poder Executivo que encaminhar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de julho a dezembro.

O novo marco fiscal também estabelece valor mínimo para investimentos públicos, que considera o Orçamento de 2023 com correção inflacionária para cada exercício. O texto prevê, ainda, que, caso o resultado primário exceda o limite superior do intervalo de tolerância da meta estabelecida, o governo federal poderá ampliar as despesas em valor equivalente a até o montante excedente.

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Nesta hipótese, tais despesas ampliadas não serão computadas na meta de resultado primário prevista. Os recursos deverão ser destinados a investimentos públicos, por meio da abertura de crédito suplementar, mas não podem entrar no cálculo para os valores mínimos deste grupo.

A regra estabelece um limite para o “bônus” de recursos em investimentos públicos, fixado em R$ 25 bilhões. O teto vale entre os anos de 2025 e 2028 e corresponde a pouco mais de 1/3 do Orçamento reservado para investimentos em 2023 (R$ 71 bilhões). O limite é corrigido pela inflação de janeiro de 2023 a dezembro do exercício anterior a que se referir a LOA.

Por fim, o texto também traz um conjunto de 13 exceções à regra de limite de despesas. Boa parte deles diz respeito a regras constitucionais, que não poderiam ser modificados por um projeto de lei complementar. São os casos de transferências a estados e municípios e precatórios.

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Mas houve restrição a capitalização de empresas estatais, que agora só poderá ficar fora da regra em caso de companhias não financeiras e não dependentes. Conheça todas as mudanças previstas no projeto.

O que mais chamou atenção dos especialistas?

O economista Adriano Laureno, gerente de análise política e econômica da Prospectiva Consultoria, observa que, ao passar a definição dos parâmetros de trajetória de dívida e resultado primário para a LDO, o governo confere maior flexibilidade ao marco fiscal, em um movimento que pode ajudar na sobrevivência da regra no longo prazo.

O especialista também destaca que o texto corrige o que ele entendia como “potencial problema” pelo que era sinalizado anteriormente para a regra, passando a grade de parâmetros para o período até 2027. “Isso significa que o primeiro ano do mandato de cada presidente terá seus limites fiscais definidos pelo mandatário anterior, garantindo uma menor volatilidade econômica nos períodos de transição de governo”, diz.

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Ele observa que foi importante o texto explicitar gastos que ficariam de fora do limite de gastos, mesmo que isso já fosse garantido por se tratar de regras constitucionais (e que, portanto, não poderiam ser afetadas por um PLP).

Na sua avaliação, a exceção a créditos que poderão ser aprovados a qualquer momento pelo Congresso e o fato de o descumprimento da meta de resultado primário não ser considerado infração deixam o Executivo em posição mais confortável, mas devem ser objeto de emendas parlamentares ao longo da tramitação.

Laureno interpretou a regra como um reforço da importância da LDO no sistema fiscal brasileiro ao transmitir novas atribuições à peça orçamentária. Mas, no seu entendimento, ao contrário do que sinalizado pela equipe econômica, a União será obrigada a definir meta apenas para um ano − e para os três exercícios seguintes seriam apenas projeções, que poderiam ser ajustadas nas peças futuras e gerar frustrações entre agentes econômicos.

“De certa forma, isso é inevitável – considerando que a LDO de um ano tem o poder jurídico de alterar a do ano anterior -, mas vai contra a ideia que o governo vinha transmitindo. Por isso, esse ponto poderá levantar alguma polêmica, já que teoricamente reduz a visibilidade do plano de voo do Executivo para os próximos anos”, pontua.

“Afinal, caso as projeções fiscais se mostrem excessivamente otimistas, Haddad poderá, em 2024, e sem nenhum custo legislativo, rever seu plano de elevar o superávit primário para 0,5% do PIB, em 2025. Essa meta passa a ser apenas uma projeção e uma promessa política, sem restrições legislativas relacionadas. Isso não muda, entretanto, o fato de que o não cumprimento das metas de resultado primário resultará em uma punição ao governo: só poderá elevar a despesa em 50% do crescimento da receita não recorrente”, prossegue.

Para ele, este deve ser o ponto de maior atenção na nova regra fiscal para o período de 2024 a 2026. Na sua avaliação, a própria ausência de travas para que uma próxima administração estabeleça parâmetros expansionistas para os gastos públicos não tende a ter impacto no momento entre investidores.

Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena, tem compreensão diversa deste ponto do texto. Na sua leitura, o projeto de lei complementar estabelece a obrigação de o governo definir suas metas de resultado primário logo no início do mandato presidencial.

“As duas coisas são importantes: ter a trajetória de compromisso e fazer cenários. Inclusive, o novo arcabouço também manda elaborar projeções de dívida e mostrar os efeitos do arcabouço sobre elas”, afirma.

Para ele, os parâmetros do novo arcabouço atendem as expectativas em relação ao que havia sido sinalizado três semanas atrás pela equipe econômica do governo federal e permitirão um avanço real de 2,3% nas despesas sujeitas às limitações da regra no ano que vem.

“Se tomarmos as projeções da Warren Rena, o valor seria de 6%. Para a correção real, será calculada a variação real das receitas líquidas, conforme definição do parágrafo anterior, deflacionadas pelo IPCA acumulado em 12 meses até junho de 2023, multiplicadas por 70% e limitadas pelo intervalo de 0,6% a 2,5%, no caso do período de 2024 a 2027. Pelas nossas projeções, esse percentual seria de 0,6% (0,85% x 70%)”, explica.

“Para ter claro, as despesas de 2024 serão calculadas assim: despesas de 2023 do PLOA x (1+6%) x (1+0,6%). Isto é, a correção nominal das despesas seria de 6,6%. Sob a hipótese de uma inflação na casa de 4,2%, no ano que vem, a despesa terá crescido, ao final do ano, cerca de 2,3% em termos reais”, projeta.

Em relação à diferença de período de apuração da inflação e do saldo de receitas para a definição do limite de despesas no exercício seguinte, o especialista vê coerência no modelo.

“A regra simplesmente baseia-se em dados realizados. Dado isso, o que se pode fazer ao apresentar o orçamento em agosto, prazo constitucional? Usar os dados disponíveis de receita e inflação (até junho ou julho). E, para projetar o gasto nominal, ou, melhor dizendo, o limite para ele, no ano seguinte? A inflação passada, influenciada por 2022? Claro que não. É correto usar, sim, a projeção que estiver disponível até dezembro, compondo o índice do ano”, argumenta.

O texto encaminhado ao Congresso Nacional não estabelece travas que evitem que um governo aplique percentuais de correção maiores (inclusive superiores a 100%) para a evolução das despesas em relação à evolução das receitas.

Questionado se o projeto de lei complementar, no afã de se manter estável no tempo e conferir flexibilidade a governos de diferentes matizes ideológicas, seria muito “solto”, Salto manifesta concordância com a decisão da equipe econômica de Lula.

“Regra fiscal não é só letra da lei, mas também enforcement. Quem quiser ser mais expansionista, operando sobre a regra, terá de arcar com metas de primário deficitárias e dívida crescente. Também terá de arcar com os custos disso em termos de crescimento econômico baixo, juros altos e tudo que de ruim vem com a irresponsabilidade fiscal”, diz.

“A regra proposta é geral: então, ela combina diretrizes e comandos com compromissos para o atual mandato. É muito bom esse novo modelo. Não dá para ter tudo na lei e achar que independe do compromisso político. A literatura de regras fiscais mostra com clareza que as regras dependem do commitment, o compromisso político em torno dessas balizas fiscais e orçamentárias”, conclui.

Já o economista Luca Mercadante, da Rio Bravo, diz que, embora os detalhes da regra fiscal tenham confirmado a maior parte das expectativas criadas a partir da apresentação de Haddad, há detalhes negativos para o mercado no texto.

“O uso das receitas estimadas do PLOA de 2023 é talvez a maior surpresa negativa. Ainda não estava claro como o governo definiria a base para as definições da regra em 2024. Como o orçamento feito no ano passado deve superestimar as receitas deste ano (de acordo inclusive com o relatório bimestral do governo) a base para definição de despesas será inflada para o ano que vem”, avalia.

Ele também destaca o fato de a nova regra começar a impor limite para o “bônus” de investimentos caso o resultado primário exceda a banda superior da meta estabelecida passar a valer apenas a partir de 2025 – o que, para ele, seria um indicativo de que há um teto para o resultado primário no ano que vem.

Por fim, o especialista chamou atenção, ainda, para o fato de o governo ter deixado de fora da regra os gastos com capitalização de empresas estatais não financeiras – brecha que já existia no teto de gastos, que só impunha restrições à prática no caso de estatais dependentes.

“Nenhum desses detalhes altera substancialmente a regra, que ainda deve ser submetida ao Congresso, mas pioram um pouco o cenário com relação ao que foi apresentado pelo ministro Haddad”, conclui.

O economista Alberto Ramos, do Goldman Sachs, adota tom mais pessimista. Para ele, a proposta do governo requer um aumento significativo na já elevada carga tributária brasileira para garantir o cumprimento das metas estabelecidas. E mesmo assim, não acredita que o resultado indicado será capaz de estabilizar a dinâmica da dívida pública.

O especialista acrescenta que a regra, por ter mais componentes “pró-cíclicos”, pode se provar difícil de ser cumprida em momentos de baixo crescimento da receita, tendo em vista o crescimento real inercial de uma série de despesas públicas, como seguridade social, e políticas públicas prometidas por Lula durante a campanha eleitoral.

“Tendo em vista as regras de gastos, a trajetória proposta para o resultado fiscal exigiria um aumento significativo na receita líquida do governo central: um grande aumento na carga tributária que o Congresso pode não validar. Além disso, a trajetória de superávit primário proposta não garantiria uma dinâmica estável da dívida (a dívida pública continuaria a crescer em relação ao PIB)”, pontua em relatório distribuído a clientes.

“Ademais, cumprir as regras/limites pode se tornar difícil, dada a preferência política revelada por aumentos reais do salário mínimo, salários do setor público, benefícios sociais e o aumento estrutural de gastos em grandes itens (como a previdência social)”, diz.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.