Arcabouço fiscal: especialistas veem sinalização positiva, mas questionam resultados projetados

Indicação de algum limite de despesas é vista como favorável; regra, no entanto, dependerá de forte aumento de receitas para cumprimento de metas

Marcos Mortari

(Diogo Zacarias / MF)
(Diogo Zacarias / MF)

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O novo arcabouço fiscal, apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), na última quinta-feira (30), gerou reações diversas entre especialistas em contas públicas.

De um lado, a criação de uma regra que limita a evolução de despesas foi vista como sinalização positiva do governo em direção a um maior controle sobre as contas públicas − embora alguns tenham visto o esforço como tímido pelo fato de a regra sempre permitir aumento real dos gastos.

Neste aspecto, a avaliação é que o país sai de uma situação sem âncora fiscal efetiva, já que o teto de gastos perdia eficácia na prática com uma série de excepcionalidades aprovadas ao longo dos últimos anos, para uma nova condição, sob uma regra que poderia apontar para um horizonte mais benigno, ainda que em prazo mais longo do que o desejado por muitos agentes econômicos.

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De outro, há críticas à ausência de indicações de cortes de gastos, o que deverá comprometer o resultado fiscal atingido nos próximos anos ou exigirá movimentos mais expressivos do lado das receitas em um ambiente de percepção de espaço limitado em razão da carga tributária já elevada.

Os parâmetros e metas estabelecidos despertaram ceticismo de economistas. Para muitos, o governo só será capaz de entregar o resultado primário projetado para cada ano de gestão com uma elevação expressiva de receitas − o que possivelmente implicaria crescimento da base tributária, seja por medidas como as anunciadas em janeiro, seja por um aumento de carga negado pela equipe econômica.

O novo arcabouço fiscal, que ainda precisa ser formatado como projeto de lei complementar para análise do Congresso Nacional, tem como pilar a meta de gastos, que define que a despesa real deve crescer anualmente dentro de um intervalo que vai de 0,6% a 2,5%.

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Pela regra, as despesas devem crescer a uma taxa de 70% da variação real da receita líquida apurada em 12 meses até junho do exercício anterior. Em situações de retração, o crescimento mínimo real é garantido, o que traz aspectos anticíclicos para a regra e assegura aumento para os gastos acima da inflação a cada novo exercício sob qualquer hipótese.

A proposta também cria uma meta de resultado primário, com bandas de tolerância de 0,25 ponto percentual para cima ou para baixo. Neste caso, os objetivos para os quatro anos de uma gestão são definidos logo no início de cada governo.

A gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estabeleceu como compromisso um déficit de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2023, equilíbrio no ano seguinte e superávit de 0,5% e 1% em 2025 e 2026, respectivamente. Percentuais que levantaram dúvidas entre agentes econômicos.

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Adicionalmente, há um piso mínimo para investimentos públicos, calculado com base nos valores gastos nesta faixa em 2023, corrigidos pela inflação.

Caso seja alcançado resultado primário superior à banda superior estabelecida, o valor excedente poderá ser empenhado em investimentos no exercício seguinte. Na hipótese de descumprimento do piso da meta, haverá redução na variação da despesa, de 70% para 50%, sobre o crescimento da receita.

Junto com a nova regra, o governo apresentou três simulações para a trajetória da dívida bruta (DBGG). No cenário-base, considerando a grade de parâmetros desenvolvida pela Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda, a relação dívida/PIB sairia de 75,11% em 2023 para 76,54% em 2026, caso o centro da meta de resultado primário seja atingido nos quatro anos de gestão.

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Se houver fechamento na abertura de mais de 1 ponto percentual na curva de juros a termo (observada em razão de incertezas com a política fiscal nos últimos meses), a equipe econômica projeta que seria possível levar a dívida bruta a 75,05% do PIB, no cenário base, em 2026, e a 75,83% em hipótese pessimista na banda inferior da meta para o mesmo período.

E no caso de um fechamento mais agressivo na curva, de 2 p.p., a DBGG sairia de 75,03% para 73,58% no mesmo período, considerando que o centro da meta seria alcançado nos quatro anos.

Controle positivo, mas metas duvidosas

O economista-chefe da Warren Rena, Felipe Salto, exalta a combinação de um mecanismo de controle de gastos com metas de resultado primário e afirma que a regra apresentada deverá melhorar a trajetória projetada para a dívida pública, embora tragam implicitamente uma dependência de mais arrecadação.

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Ele avalia que o piso de 0,6% para o crescimento real de despesas funciona como uma espécie de “proteção” para momentos de retração econômica. Na prática, isso torna o cumprimento das regras mais factível e auxilia na preservação de políticas públicas durante crises.

“O novo arcabouço fiscal prevê que a despesa crescerá a 70% da taxa de crescimento da arrecadação, mas limitada a no máximo 2,5% e mínimo 0,6%. Esse intervalo evitará que se gaste muito em tempos de vacas gordas e que falte o fundamental em períodos de baixa do ciclo”, afirmou o especialista, ex-secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo.

A equipe de análise macroeconômica da XP Investimentos viu como um “ponto positivo” a manutenção de um limite de gastos, mas ressalta que, diante do esperado incremento de despesas nos próximos anos, só será possível atingir as metas de resultado primário estabelecidas se houver ajuste com incremento de receitas por parte do governo − quadro que não foi detalhado, exceto por menção de Haddad a medida que será apresentada em breve com potencial de arrecadação entre R$ 100 e 150 bilhões

“Em um cenário que consideramos mais razoável, com um crescimento do PIB mais próximo a 1,8% no médio prazo, a regra não é capaz de entregar os resultados primários nem de proporcionar a convergência da dívida pública, mesmo com a elevação de receitas em 1 pp. do PIB”, afirmam.

“Isso só é possível se considerarmos tanto os parâmetros oficiais, que entendemos mais otimistas em termos de crescimento potencial, quanto medidas que aumentem as receitas de forma permanente a partir de 2024 acima de 1% do PIB”, pontuam.

Para os analistas, da forma como foi apresentada, a nova regra não garante a sustentabilidade fiscal nos próximos anos. Eles destacam, ainda, que a ausência de gatilhos específicos de despesas ajudam a minimizar as restrições fiscais ao atual governo.

Em simulação usando os parâmetros da SPE, eles não verificaram o cumprimento das metas anunciadas pelo governo, o que leva o ritmo de “apropriação” do ganho de receita cair de 70% para 50% do lado das despesas em 2025 e 2026. Neste caso, as projeções da casa apontam para déficits de 1% e 0,7% nos dois primeiros anos de governo e superávits de 0,1% e 0,4% na outra metade do mandato.

Já considerando as hipóteses macroeconômicas da casa, as simulações da XP indicam um cenário mais negativo em comparação com as metas estabelecidas pelo governo. Seriam três anos consecutivos de déficit público (-1%, -0,9% e -0,3%, nesta ordem) e o último exercício no zero a zero. O que os mais otimistas diriam que indica convergência do resultado para a estabilidade, apesar de insuficiente para frear a evolução da DBGG em relação ao PIB, que poderia saltar para 83,8%.

“Há pessoas olhando mais o copo meio cheio e outras o copo meio vazio. O copo cheio é ter um limite de gastos, de até 2,5%. Então, no máximo, a relação entre despesa e PIB fica constante, mas nos anos em que for menos, ela tende a cair. Em se tratando de um governo de esquerda e depois de tantas críticas ao teto de gastos, é aceitável”, diz um analista sob condição de anonimato.

“O problema é que partimos de um patamar em que o governo está estruturalmente deficitário. Com a despesa crescendo, mesmo com a receita crescendo um pouco mais, vai levar tempo para zerar a conta. E, depois, o processo de construção de um superávit mais robusto também é demorado, já que elas caminharão em ritmos parecidos”, complementou.

Embora a equipe econômica tenha batido na tecla de que a regra é simples, especialistas consultados pelo InfoMoney veem maior complexidade em comparação com o teto de gastos − regra que limita o crescimento de despesas em um ano ao comportamento da inflação no exercício anterior. Isso também faz com que a avaliação de cenários possíveis se torne tarefa mais demandante.

Para alguns, a nova regra gera um incentivo perverso, já que gastar mais em um ano eleva a base de cálculo para as despesas do exercício seguinte. Além disso, o modelo traz um aumento das indexações no Orçamento, com a volta dos mínimos constitucionais para Saúde e Educação e com o dispositivo que estabelece um piso para investimentos.

O economista Guilherme Tinoco, especialista em contas públicas, disse que interpreta o novo arcabouço fiscal como uma regra de despesa − o que considera positivo. Por outro lado, ele vê aspectos pró-cíclicos fortes no mecanismo, o que o próprio governo tentava evitar.

Estão enquadradas nesse grupo o fato de o aumento das despesas estarem diretamente relacionadas ao crescimento da receita, a vinculação de gastos com o atingimento ou não dos resultados primários estabelecidos e a própria permissão de gasto adicional com investimentos em caso de obtenção de resultados primários acima do teto da meta.

“É importante notar que anualmente haverá sempre um crescimento real da despesa, o que pode ser visto como um dificultador para o alcance de superávits primários robustos nos próximos anos – a não ser que haja grandes elevações na receita. Por outro lado, esse crescimento facilita a acomodação, no gasto, de pressões por elevação da despesa incluindo aquelas relativas à proteção social. Isto é, torna-se a regra mais ‘cumprível'”, observa.

O especialista diz que as metas de resultado primário apresentadas pelo governo para os próximos quatro anos estão muito distantes de suas projeções: -0,8% contra -0,5% em 2023; -1% contra 0% em 2024; -0,7% contra +0,5% em 2025; e -0,3% contra +1% em 2026.

“Dessa forma, e considerando que a despesa sempre terá crescimento real, as metas de resultado primário só se sustentam com uma grande elevação da receita (seja por crescimento do PIB bastante elevado ou por aumento de base tributária)”, pontua.

Para ele, será importante acompanhar as próximas sinalizações por parte do governo do lado da recomposição de receitas, como as medidas que a equipe econômica pretende apresentar com impacto de R$ 100 bilhões sobre a arrecadação.

Para Adriano Laureno, gerente de análise política e econômica da Prospectiva Consultoria, a experiência dos últimos anos com o teto de gastos mostrou o quão improvável é realizar ajuste fiscal a partir de uma redução no valor real das despesas. O que motivaria uma regra mais flexível.

“O possível é conter o gasto em relação ao PIB, enquanto a economia cresce. Então, me parece que, de qualquer forma, a cada ano, o gasto do ano anterior já seria um piso natural. O relevante será entender a capacidade do governo em atingir a meta de resultado primário”, disse.

“Com os anúncios feitos pelo governo até aqui, de fato, não parece provável o cumprimento da meta de déficit primário de 0,5% do PIB em 2023. O plano parece ser alcançar isso com medidas de incremento da receita que ainda não foram anunciadas. Como a tributação das apostas esportivas. Isso pode vir já na próxima semana, para tentar reduzir esses questionamentos”, observou.

O especialista também avalia como positiva a definição das metas fiscais pelo próprio governo no início do mandato, por aumentar a credibilidade das metas. “É claro que isso prejudica a previsibilidade de longo prazo das contas públicas, mas não acredito que no contexto atual a imposição de regras para outro governo seria um bom preditor. Existe a vantagem de que essas metas de resultado primário poderão fazer parte do debate eleitoral”, afirmou.

Ele sugere, contudo, um deslocamento no período de definição das regras, de modo ao governo decidir sobre as metas de quatro anos iniciando no segundo ano do mandato − o que incluiria o primeiro exercício da gestão seguinte, seguindo o que já ocorre no Plano Plurianual (PPA).

O pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV) Fabio Giambiagi avalia que faltou detalhamento na divulgação do arcabouço fiscal. “Depois de semanas de suspense, esperavam-se explicações mais convincentes acerca de como o governo pretende transitar os próximos três a quatro anos em matéria fiscal”, diz.

Ele sugere que, em abril, com a divulgação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), o governo divulgue um quadro detalhado, de 2023 a 2026, de qual é cenário básico com o qual as autoridades trabalham para o comportamento das receitas e despesas.

“Na receita, decompondo em IPI, IR, IOF, Cofins, PIS-Pasep, CSLL, receitas de exploração de recursos naturais, dividendos e concessões. E, no lado das despesas, mostrando a evolução das principais rubricas: pessoal, INSS, FAT, LOAS, Fundeb, subsídios, sentenças judiciais, Bolsa Família, saúde e educação e outras despesas”, diz.

(com Agência Estado)

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.