Título ao portador, overnight, dólar black: como era investir antes do Plano Real

Ao controlar a inflação, o real aumentou a formalidade e mudou maneira de investir do brasileiro; veja como era há 30 anos

Paulo Barros

(Arte: Leonardo Albertino/InfoMoney)
(Arte: Leonardo Albertino/InfoMoney)

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O Brasil de 2024, em que investidores têm centenas de opções de aplicação financeira na palma da mão, faz o país antes do Plano Real, que completa 30 anos nesta segunda-feira (1), parecer um filme de ficção. A diferença é tecnológica, mas sobretudo econômica: na década de 1980, com juros que chegaram à faixa dos 2.000% ao ano, a renda fixa parecia tentadora, mas a inflação transformava os investimentos em uma cena de faroeste.

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Apesar da correção monetária, a inflação subia tão rapidamente que os ganhos reais dos ativos eram difíceis de ser calculados. “Claro que a gente sentia o nominal muito alto, mas fazer a apuração do juro real era muito difícil, pela velocidade da inflação”, explica o professor do Centro de Estudos em Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV), William Eid. “Se com uma inflação de 0,5% ao mês é ruim, imagina 100% ao mês. É possível só fazer aproximações”, explica.

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Alguns anos atrás, conta o professor, um ex-banqueiro foi processado por um investidor que cobrou na Justiça R$ 500 milhões referentes ao pagamento de um título ao portador de 1986 no valor de 100 milhões de cruzeiros. Foi preciso que Eid e os ex-ministros da Fazenda Maílson da Nóbrega e Delfim Netto se debruçassem sobre os números. “Não é só corrigir pelos juros, pela correção monetária. Eu fui atrás de preços automóveis e um monte de objetos em revistas para chegar numa faixa confiável, que ficou entre R$ 200 e R$ 400 mil”, relembra.

Veja a evolução da inflação nos anos 1980 medida pelo IPCA e pelo NPC:

AnoIPCA* (%)INPC** (%)
198099,2599,70
198195,6293,51
1982104,79100,31
1983164,01177,97
1984215,26209,12
1985242,23239,05
198679,6659,20
1987363,41394,60
1988980,21993,28
19891972,911863,56
19901620,971585,18
Fonte: IBGE
*IPCA: Índice de Preços ao Consumidor Amplo
**INPC: Índice Nacional de Preços ao Consumidor

Antes do Plano Real, o mercado financeiro no Brasil era menos desenvolvido e com muita informalidade, especialmente no setor imobiliário, onde transações eram feitas em dinheiro, sem declaração. Já a Bolsa, nem se fala: pouquíssima gente investia em ações. E uma crise em 1987, no fim do Plano Cruzado, coincidiu com o caso Naji Nahas e a derrocada da Bolsa do Rio, que ajudou a minar a confiança dos investidores.

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Mas a pouca infraestrutura do mercado também não ajudava. Havia muita concentração, com a Eletrobras respondendo por 60% do Ibovespa, e liquidez dividida: Petrobras, só em São Paulo; e Vale, apenas no Rio de Janeiro.

A BMF (predecessora da B3), originada da união da Bolsa de Mercadorias com a Bolsa de Futuros, até surgiu com pompa em 1985 e apareceu nas cabeças do ranking global de quantidade de contratos. Mas era só ilusão. Os valores de cada contrato no Brasil eram cerca de 20 vezes menores do que em Nova York, o que ajudava a inflar o número.

Com essas condições, naquela época, comprar ações na Bolsa era considerado “uma loucura”. No Brasil pré-Plano Real, outros três investimentos reinavam: o overnight, os títulos ao portador e o dólar “black“.

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Overnight

O overnight era o investimento mais comum no Brasil antes do real, principalmente porque era simples: bastava solicitar para o gerente do banco e ter a certeza de que o valor seria corrigido no dia seguinte. “A dívida púbica era muito curta, rolava quase no dia a dia. Os bancos compravam papel do governo e vendiam para o público com compromisso de compra no dia seguinte”, explica Glauco Cavalcanti, gestor de fundos, com passagem pela Tesouraria do Banco Garantia entre 1991 e 1998.

O overnight não era um ativo, mas um mercado. O investidor em geral nem sabia em que estava aplicando. Os bancos comercializavam títulos públicos, como as ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional, depois chamadas de OTNs), predecessoras das atuais NTN-Bs, conhecidas como Tesouro IPCA+.

Obrigação do Tesouro Nacional – OTN (Divulgação/Anbima)

Até os primeiros fundos de commodities, que deveriam comprar soja e algodão na Bolsa, na verdade aproveitavam uma brecha na norma e também aplicavam no overnight, conta Cavalcanti. Ou seja, funcionavam como fundos de renda fixa.

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As taxas do overnight acompanhavam os momentos de turbulência, portanto poderiam flutuar bastante. Chegaram aos 2.000% ao ano em 1989, mas também entregaram “apenas” 15% ao ano em 1986, em meio a medidas do Banco Central durante o Plano Cruzado.

“[No Plano Cruzado, foi proibida] a utilização de cláusulas de correção monetária em qualquer contrato com prazo inferior a um ano. Com isso, as ORTNs com prazo de vencimento entre março de 1986 e fevereiro de 1987 que rendiam em média juros de 15% ao ano acima da correção monetária passaram a render uma taxa nominal de 15% ao ano”, o que limitou o rendimento do overnight, explica Pedro Bodin de Moraes, diretor de Política Monetária do BC entre maio de 1991 e janeiro de 1992, em artigo publicado em janeiro deste ano na Brazilian Journal of Political Economy.

Mesmo com tantas flutuações, o overnight era a opção mais segura para o investidor em um país em que estabilidade era coisa rara. A rotina era:

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  1. Depositar dinheiro antes do encerramento do horário bancário;
  2. A partir desse horário, pagar todas as despesas com cheque, que seria descontado apenas no dia seguinte, quando o dinheiro já teria rendido;
  3. Na hora de resgatar, sempre era imediato. Prazos como D+30, comuns na indústria de fundos hoje, eram impensáveis.

Títulos ao portador

Outro veículo importante para entender os investimentos na década de 1980 eram os títulos ao portador, que davam ao detentor de um título físico o direito de resgatar o valor investido acrescido de juros em uma data acordada. Mas se a pessoa perdesse o papel, perdia tudo.

Letra do Tesouro Nacional, título ao portador (Divulgação/Anbima)

Os títulos em papel existiam décadas antes do Plano Real, e alguns ofereciam cupons. Cada pedacinho trazia o valor e as datas em que o investidor poderia trocá-lo pelo valor prometido.

Com a instabilidade econômica, o mercado secundário desses títulos era muito aquecido. Na década de 1980, o sistema Selic havia nascido há pouco tempo, e ainda não havia a obrigatoriedade de registro dos investidores, portanto os títulos ao portador eram negociados de mão em mão, assim como o dinheiro em espécie. Não dava para dizer que se tratava de um mercado paralelo, pois era tudo legal, mas a informalidade era alta.

Dólar “black”

Outro traço de informalidade era o dólar “black“. O brasileiro, assim como os argentinos atualmente com dólar “blue“, recorriam à moeda americana para preservar o valor do salário e ter dinheiro para viajar ao exterior. Mas nada era feito por bancos: todos buscavam os blequistas, ou cambistas.

“O cambista tinha um papel social ativo porque, para viajar para o exterior, só podia levar mil dólares oficialmente. Então todo mundo saía com aqueles cintos de dinheiro dentro da roupa para poder gastar lá fora. E o truque era: você recebia o seu salário e, imediatamente, já ia no cambista e comprava dólar”, relembra o professor da FGV.

Tudo mudou com a chegada do Plano Real, que não só controlou a inflação, como trouxe paridade com a moeda americana por alguns anos, reduzindo o papel dos cambistas. A última grande oportunidade no dólar pré-real, porém, surgiu momentos antes da transição.

Há exatos 30 anos, em 30 de junho de 1994, o Banco Central divulgou o último preço da URV (unidade real de valor), e acabou telegrafando a cotação do dólar na estreia do real. “Quando vimos o número, eu e o Guilherme Amaral, que cuidávamos do câmbio do Garantia, descobrimos que a primeira cotação do dólar seria R$ 0,95”, conta Cavalcanti.

A cotação significava uma queda de 5% da moeda americana em um dia. Era a janela para faturar alto. “Ligamos para todos os bancos, Citibank, Morgan Chase, Deutsche Bank, e fomos tomando swap a qualquer preço. No dia seguinte, o dólar abriu a R$ 0,95, e nós ganhamos muito dinheiro”.

Foi, talvez, o tiro derradeiro no faroeste brasileiro dos investimentos.

Esta publicação faz parte da série 30 anos do Plano Real: Passado, presente e futuro da moeda que mudou o país, especial do InfoMoney com reportagens, entrevistas, vídeos e artigos sobre a trajetória da moeda brasileira de sua criação aos dias de hoje.

Paulo Barros

Editor de Investimentos