As criptos nascem da tecnologia, mas, segundo este autor, quem embala é o crime

Para Geoff White, os interesses do Vale do Silício e de criminosos são mais próximos do que pode parecer – e quem se beneficia são os lavadores de dinheiro profissionais

Paulo Barros

(Foto: Arquivo Pessoal)
(Foto: Arquivo Pessoal)

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O sucesso do Pix e a resiliência das criptomoedas tornam difícil imaginar um futuro sem a digitalização completa do dinheiro. Para o jornalista investigativo e autor Geoff White, no entanto, esse avanço pode cobrar um preço alto: enquanto a pessoa comum celebra o ato de pagar um café com o celular, o criminoso comemora a facilidade para lavar valores cada vez maiores usando finanças digitais. “Os lavadores de dinheiro e o pessoal de tecnologia às vezes têm objetivos e ambições muito semelhantes”, conta White em entrevista ao InfoMoney.

White é autor de três livros. No primeiro, “Crime Dot Com“, falou da ameaça dos crimes cibernéticos para a sociedade, e em “The Lazarus Heist“, descreveu a atuação da Coreia do Norte por trás de uma rede global de hackers. Em sua nova obra, “Rinsed“, ele se volta para o Vale do Silício, e descreve como os interesses do setor de tecnologia e de criminosos que precisam enxaguar dinheiro sujo podem facilmente convergir.

Um dos exemplos é uma ferramenta chamada Tornado Cash, que esconde o rastro de criptomoedas. “Para um investigador, é como se um monte de dinheiro de drogas entrasse em um cassino e fosse trocado com o dinheiro de outros apostadores. Quando as notas saem, como saber se elas são as mesmas que entraram?”, explica.

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O criador do Tornado Cash está preso nos Estados Unidos aguardando sentença que será encarada como uma pista sobre como o governo americano poderá tentar regular os ativos digitais na tentativa de enfrentar o crime organizado – o que não será nada trivial, diz White. “O interessante é que você pode ter todas as leis que quiser no mundo, mas alguém em um laptop pode digitar 50 linhas de código e destruir completamente toda a sua legislação”.

Confira a entrevista completa:

InfoMoney: Você menciona no seu livro um processo de três etapas para a lavagem de dinheiro que mudou muito com a tecnologia financeira nos últimos anos. Como elas mudaram com a digitalização das finanças?

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Geoff White: As três etapas clássicas da lavagem de dinheiro são: colocação, camuflagem e integração. A primeira etapa, a colocação, envolve inserir dinheiro ilícito no sistema financeiro. O exemplo clássico é o tráfico de drogas: se você vende drogas e ganha um milhão de dólares em dinheiro, precisa encontrar uma maneira de colocar esse dinheiro em um sistema financeiro para evitar suspeitas e roubos. Tradicionalmente, isso poderia ser feito através de negócios legítimos, como salões de cabeleireiro ou lava-jatos, onde o dinheiro sujo é misturado com receitas legítimas. Com o avanço tecnológico e a diminuição do uso de dinheiro em espécie, esse processo ficou mais difícil. 

A segunda etapa é a camuflagem, que consiste em esconder a origem do dinheiro através de uma série de transações complexas. Isso pode incluir transferências entre diferentes contas, conversões em criptomoedas, compras de ouro ou qualquer outra coisa que complique o rastreamento do dinheiro. Com a digitalização e a melhoria na tecnologia de rastreamento financeiro, esta etapa se tornou mais desafiadora para os criminosos, pois as transações são cada vez mais monitoradas e rastreáveis. 

A terceira e última etapa é a integração, onde o dinheiro “limpo” é utilizado em investimentos ou compras legítimas, como imóveis, negócios ou outros ativos de longo prazo. Criminosos inteligentes, que ganham grandes quantias de dinheiro, tendem a fazer investimentos que mantêm valor e proporcionam retorno mesmo se forem presos, garantindo que possam aproveitar esses bens ao sair da prisão.

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E como os mixers de criptomoedas se encaixam nessa equação?

Uma das maneiras de lavar dinheiro é convertê-lo em criptomoeda, como Bitcoin, e alguns criminosos até recebem em Bitcoin, por assim dizer. No caso do ransomware, por exemplo: os ladrões criptografam seus arquivos e cobram um resgate, inevitavelmente em Bitcoin. É o que eles possuem nesse estágio e você pode: bastaria então levar a uma exchange e trocá-lo por dinheiro. O problema é, novamente, que tudo é rastreável. As exchanges que trocam libras e dólares por criptomoedas estão monitorando cada vez mais essas transações. E se você ganhou seu dinheiro com ransomware, eles vão identificar a transação, principalmente porque as criptomoedas são muito rastreáveis.

Não se sabe a identidade da pessoa que transferiu, mas é possível saber qual quantidade de Bitcoin se moveu entre quais endereços em uma determinada data e hora. Mas aí surgiram os mixers, que pegam transações de criptomoedas recebidas, misturam-nas com um monte de criptomoedas de outras pessoas, e depois as enviam para um novo endereço de carteira. Para um investigador, é como se um monte de dinheiro de drogas entrasse em um cassino e fosse trocado com o dinheiro de outros apostadores. Quando as notas saem, como saber se elas são as mesmas que entraram? Esse é o propósito dos mixers, uma maneira altamente tecnológica que pode ser usada para privacidade e segurança, mas também para lavagem de dinheiro.

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O mixer Tornado Cash foi sancionado nos Estados Unidos mesmo diante do apelo de alguns entusiastas que defendem seu uso por pessoas vivendo em regimes totalitários. Você diria que essa noção benévola da tecnologia precisa de um choque de realidade?

Há um debate intenso acontecendo sobre esses mixers no momento. Para os Estados Unidos, os mixers de criptomoedas são feitos, basicamente, para lavagem de dinheiro, e há muito poucas outras maneiras realmente legítimas de usá-los. E por isso estão sancionando esses mixers. O Tornado Cash é o mais famoso, mas há também o Bitcoin Fog, Samourai Wallet, Wasabi Wallet. Muitos mixers foram fechados ou sancionados, ou seja, ninguém tem permissão para usá-los, e se o fizerem podem ser presos. Os mixers sancionados ficam muito difíceis de serem usados, são empurrados para fora do sistema financeiro. Mas algumas pessoas estão dizendo que trata-se de uma questão de privacidade, que podem querer que suas transações sejam privadas, especialmente em criptomoedas, em que todas as transações são rastreáveis. Dizem que precisam de soluções como o Tornado Cash para, por exemplo, doar dinheiro para a Ucrânia. E você iria querer essas transações monitoradas, por exemplo, pela Rússia? Provavelmente não.

Eu não sei qual é a resposta correta. Entendo os argumentos de ambos os lados, mas preciso dizer que, no caso do Tornado Cash, que mencionei no livro, uma das coisas que acontecem é que o dinheiro é lavado supostamente pela Coreia do Norte. Estamos falando de meio bilhão de dólares supostamente lavados pela Coreia do Norte. Esse dinheiro vai ser usado pela Coreia do Norte para comprar armas, peças de mísseis e componentes nucleares. Isso não é bom. É realmente muito ruim, é desestabilizador para o nosso mundo, e as consequências podem ser extremamente sérias.

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Há alguma maneira de conciliar os benefícios das finanças digitais com essa realidade? Como você vê a discussão evoluindo entr os tomadores de decisões?

Francamente, para políticos só entender algo como o Tornado Cash é o primeiro desafio. Muitos formuladores de políticas realmente precisam de um curso intensivo em criptomoedas. Outra coisa sobre o Tornado Cash é que ele é o que chamamos de contrato inteligente, o que significa que não só você está colocando sua criptomoeda lá, mas ao fazer isso, você está efetivamente escrevendo um pedaço de código de computador que dita o que vai acontecer com suas criptomoedas. Esses contratos inteligentes são uma forma incrivelmente radical de nova tecnologia. E o que eles efetivamente fazem é permitir que os usuários de coisas como o Tornado Cash escrevam suas próprias regras e controlem seu próprio dinheiro. É o que chamam de dinheiro programável. Tudo isso é algo que os formuladores de políticas têm que entender.

Estamos vendo um debate semelhante sobre cripto em muitos países. No Reino Unido, onde eu moro, aplicativos como Telegram e WhatsApp são criptografados, o que significa que os proprietários não têm uma chave mágica que possa desbloquear as comunicações entre quaisquer dois usuários. Mas o governo britânico tem um problema com isso porque dizem: e se criminosos e, particularmente, gangues de pedófilos estiverem usando essas tecnologias? Precisamos de uma maneira de entrar. Mas se o governo britânico pode entrar, há uma fila de outros governos tentando entrar, alguns dos quais podem ser governos dos quais não gostamos.

É um debate semelhante no mundo das criptomoedas e no debate sobre privacidade. A comunidade tecnológica diz que essas ferramentas são necessárias, e os governos dizem que também é preciso policiar o mundo.

Ao mesmo tempo, meu banco sabe onde estão todas as minhas transações. Meu banco é privado, minha conta bancária é privada, não é aberta para todos. Eu confio no banco para movimentar meu dinheiro, mas também confio que o banco pode manter um registro de todas as minhas transações e só responderá a um mandado legítimo. Parece-me que com alguns dos mixers [de criptomoedas], as exchanges de criptomoedas podem acabar funcionando como bancos, e nós vamos confiar neles o suficiente para permitir que tenham um registro das minhas transações. Isso é bom. Eu não acho que precisemos do tipo de privacidade onde ninguém, nem mesmo o proprietário da ferramenta ou serviço de criptomoeda, pode saber para onde a transação foi. Estou feliz com você, o provedor de criptomoeda, sabendo para onde foi. Esse parece ser um nível de confiança que está faltando no momento.

Muitos governos estão moedas digitais de bancos centrais, ou CBDCs. Como você vê elas se encaixando nessa equação?

Há duas coisas sendo discutidas. Uma é realmente bastante chata e monótona. É a ideia de que grandes bancos, grandes bancos centrais, para controlar os fluxos de dinheiro, à medida que o dinheiro se torna cada vez mais digital, eles vão acompanhar isso usando meios digitais. Os governos obviamente ainda vão imprimir dinheiro por enquanto, mas quando pararem de imprimir dinheiro, vão precisar saber quanto dinheiro disponibilizaram em circulação, quanto dinheiro estão colocando na economia. Quando o dinheiro é virtual e digitalizado, não é possível contar o quanto sai da impressora, é preciso alguma maneira digital de acompanhar.

O cenário mais controverso é o que você pode chamar de moeda digital de banco central de varejo. É a ideia de que a moeda seria efetivamente digitalizada e rastreada ao longo do caminho, como o Bitcoin, do governo central através do meu empregador e para mim. Nesse ponto, o governo central pode ver potencialmente onde todos gastam seu dinheiro. Se eu sacar dinheiro em espécie, o governo não pode controlar o que faço com ele. Se os tipos mais extremos de moeda digital surgirem, potencialmente os governos podem começar a rastrear onde o dinheiro das pessoas é usado, o que começa a entrar na privacidade financeira e na liberdade das pessoas, e vira um grande problema.

Nos EUA, o assunto das CBDCs esfriou com a explosão das stablecoins reguladas. Mas as mais usadas no mundo são um pouco controversas. A Tether, por exemplo, é a criptomoeda mais usada no Brasil. As stablecoins também têm papel na rede de lavagem de dinheiro?

As criptomoedas têm muitas vantagens para os lavadores de dinheiro: são um sistema internacional, muito rápido, e completamente fora das finanças tradicionais. Mas há desvantagens. Além da rastreabilidade, há as flutuações no valor. O Bitcoin sobe e desce de forma bastante selvagem em alguns momentos. Então, para os lavadores de dinheiro, isso não é bom. Se eu devo 1 milhão de dólares a um traficante de drogas e pago em criptomoeda, e no momento do pagamento chegam só 800 mil dólares, não vai ser bem aceito. Então, o que as gangues criminosas e os lavadores de dinheiro estão fazendo cada vez mais é tentar colocar o dinheiro em algo como o Tether, que é atrelada ao dólar. A desvantagem é que há uma organização central policiando, então voltamos um pouco ao debate sobre o Tornado Cash. Como há um órgão central que pode congelar coisas, os lavadores de dinheiro até quereriam usar o Tether porque é estável, mas não quer que ter seu dinheiro bloqueado. Quando você o coloca em stablecoins, precisa ter fazer com que todos os vínculos com a criminalidade sumam.

Alguns diriam que um caminho de equalizar isso tudo seria uma regulação global de criptomoedas, o que me parece particularmente algo muito longe. Qual é a sua opinião sobre isso?

Há muitas questões em nosso mundo que acho que poderíamos resolver com uma regulamentação global. O aquecimento global é o exemplo clássico. Temos o Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas, cúpulas, como a COP. O problema é que um governo do momento concorda a certa altura, e então perde as eleições e o próximo decide que não vai fazer mais nada. Então, é preciso de regras que permaneçam além dos governos.

Eu concordo que não estamos nem perto de algo assim para criptomoedas no momento. Acho que os formuladores de políticas ainda não entendem as criptomoedas. Mas tivemos, curiosamente, na União Europeia o MICA, a legislação de mercados em criptoativos, que parece ser amplamente sensata. Se pudermos ter blocos como esse que gradualmente começam a se unir em torno de padrões, não acho que vamos ter um padrão global único, mas pelo menos se pudermos ter vários grandes padrões globais, então podemos começar a ver as lacunas entre eles e começar a alinhá-los. É uma maneira possível de como isso pode acontecer.

Entusiastas de criptomoedas frequentemente dizem que os governos podem regular os mercados, mas algo o Bitcoin nunca poderia ser regulamentado porque é descentralizado. Você vê isso como uma brecha para lavadores de dinheiro?

Um dos pontos que tentei defender no livro foi o seguinte: não é que os especialistas da tecnologia queiram deliberadamente ajudar os lavadores de dinheiro. Eu genuinamente não acho que o Tornado Cash foi criado para ser um sistema de lavagem de dinheiro. A questão é que os lavadores de dinheiro e o pessoal de tecnologia às vezes têm objetivos e ambições muito semelhantes. Se um traficante tem muito dinheiro para lavar, primeiro vai buscar um lugar onde há muito dinheiro circulando, muitas negociações acontecendo e muitas atividades para que eu possa colocar milhões de dólares sem ninguém estranhar. Em segundo lugar, deve ser algo internacional, para colocar meu dinheiro em Londres e sacá-lo em Los Angeles. E o terceiro elemento é falta de regulamentação, para evitar ter autoridades farejando.

Se você pensar no que o setor de tecnologia quer fazer, particularmente startups de tecnologia, elas frequentemente querem criar um novo mercado, que é onde os valuations ficam malucos. Então, todas as coisas que os lavadores de dinheiro querem tendem a ser muitas das coisas que as empresas de tecnologia querem quando criam um negócio, e elas acabam trabalhando juntas. Os lavadores de dinheiro olham para esses novos negócios de tecnologia e dizem, “uau, que novidade fantástica para lavar meu dinheiro”. As empresas de tecnologia às vezes ficam surpresas que esse seja o caso, que os lavadores de dinheiro venham bater à sua porta. Mas, na verdade, não é surpresa quando você pensa sobre isso.

Mas em termos práticos, como isso poderia evoluir nos próximos anos?

Acho que vamos ter mais regulamentação ao redor do mundo tentando policiar criptoativos e criptomoedas, como o que aconteceu na União Europeia. Acho que o governo dos EUA parece estar chegando perto, e provavelmente fará algo em torno disso, o que será obviamente uma intervenção enorme. A coisa que o governo dos EUA precisa resolver, e isso será algo para ficar de olho, é o que exatamente é a criptomoeda. É uma moeda? É uma mercadoria como o ouro? É um ativo especulativo? O que exatamente é? Eles nem sabem o que é, muito menos como regulamentá-la. Então, isso é o que o governo dos EUA precisa fazer, é meio que se organizar. Suspeito que tentarão regulamentar. Então, acho que vamos ver medidas em torno disso.

Também vai ser interessante ver as repercussões desse caso do Tornado Cash. Uma das pessoas que supostamente desenvolveu o Tornado Cash, um cidadão americano chamado Roman Storm, tem julgamento marcado para dezembro. Ele está sendo acusado de criar o Tornado Cash e facilitar conscientemente a lavagem de dinheiro. A comunidade tecnológica disse que ele criou um software e os lavadores de dinheiro abusaram desse software. Então, será interessante ver como esse caso se desenrola.

Inevitavelmente, onde quer que a regulamentação e a legislação se movam para tentar reprimir as criptomoedas, haverá alguém em algum lugar, no seu escritório ou no seu quarto ou na sua sala de estar, em um laptop, escrevendo código para tentar contornar isso. O interessante é que você pode ter todas as leis que quiser no mundo, mas alguém em um laptop pode digitar 50 linhas de código e destruir completamente toda a sua legislação. Vai ser interessante de assistir.

Paulo Barros

Editor de Investimentos