SÃO PAULO – No período entre 2010 e 2015, as ações da Petrobras tiveram uma queda de aproximadamente 70%, quase o dobro da registrada pelo Ibovespa, provocada, em grande medida, por atos de corrupção revelados após investigações da Polícia Federal.
Em maio de 2020, os fundos de pensão Previ, do Banco do Brasil, e Petros, da Petrobras, obtiveram sentença favorável em processo na Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM) da B3, que determinou que a Petrobras indenizasse as entidades de previdência, em valor ainda a ser calculado, pela queda das ações nos cinco anos.
As perdas no período não foram provocadas apenas por fatores de mercado, como a variação do petróleo ou do câmbio, mas por práticas irregulares cometidas pelos dirigentes da empresa, afirma Fernando Kuyven, sócio do escritório de advocacia Modesto Carvalhosa, que defende os dois fundos de pensão.
E o precedente, diz o especialista em disputas societárias no mercado de capitais, pode servir para outros casos que estão em andamento.
Além das fundações, o escritório atende cerca de 1,5 mil investidores minoritários que reivindicam o mesmo tratamento dispensado pela estatal aos detentores de ADRs (recibos de ações de empresas estrangeiras negociadas nos EUA).
Em 2017, a Petrobras concordou em indenizar em cerca de US$ 3 bilhões os investidores que compraram os ativos nos EUA pela queda abrupta dos anos anteriores, mas se negou a fazer o mesmo para aqueles que compraram os papéis na B3.
Foi preciso um evento como esse, diz Kuyven, para que investidores brasileiros, que até então faziam vistas grossas à falta de governança das investidas, se organizassem para lutar por seus direitos.
Na esteira desse caso, investidores que se sentiram lesados por perdas com ações da Vale, diante da avaliação de relatórios imprecisos sobre a segurança das barragens, também procuraram o escritório, bem como aqueles com ações do IRB, quando vieram à tona os problemas contábeis e de divulgação de informações falsas da resseguradora.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista concedida pelo sócio do Modesto Carvalhosa ao InfoMoney sobre o ativismo no mercado brasileiro.
Estopim
Após a decisão da Petrobras de ressarcir apenas os detentores de ADRs em detrimento aos de ações, Kuyven diz ter observado um aumento significativo no engajamento dos investidores locais, com maior participação nas assembleias das investidas, combinada a uma demanda crescente por ações indenizatórias.
“Tradicionalmente, os minoritários nunca foram muito organizados no Brasil, era um pouco cada um por si, o que felizmente começou a mudar nos últimos anos.”
O escritório atua na defesa de aproximadamente 1,5 mil investidores, entre fundos de investimento e fundos de pensão, em sua maioria, que pleiteiam o mesmo tratamento que a Petrobras ofereceu aos detentores de ADRs.
O processo, instaurado em meados de 2017, também corre na CAM, espécie de “justiça privada”, pela qual as empresas aceitam resolver imbróglios com os investidores pela maior celeridade na comparação com o judiciário comum, explica Kuyven, que não tem uma previsão da conclusão do processo, até por seu caráter sigiloso.
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O argumento da empresa, diz o advogado, é o de que a legislação brasileira não prevê a obrigação de indenização por parte da companhia, e que, por isso, ela estaria isenta da responsabilidade junto aos investidores que compraram as ações. A culpa, sob esse entendimento, recai somente sobre as costas dos ex-dirigentes, como pessoa física.
“Por essa linha de raciocínio, uma empresa com ações listadas pode mentir ao mercado, promover fraude contábil, sem que seja responsabilizada por isso?”, questiona o especialista.
Esse caso, afirma o ex-professor da Universidade de Estrasburgo, na França, pesou sobremaneira para a credibilidade do mercado brasileiro no exterior. “O investidor estrangeiro se questiona sobre por que comprar na B3 se será indenizado apenas se comprar por Nova York?”, diz o advogado.
Procurada, a Petrobras não concedeu entrevista, mas informou que existem sete processos na CAM contra a empresa, e reiterou que a legislação brasileira, diferentemente da americana, não prevê o ressarcimento, pela companhia, aos investidores que compraram suas ações na B3.
Desastres ambientais e corporativos
Além dos casos da Petrobras, o Modesto Carvalhosa defende investidores em processos na Câmara Arbitral contra a Vale, instaurado no meio do ano passado, e o IRB, iniciado em maio de 2020.
Com relação à mineradora, explica Kuyven, pela falta de informação quanto à real segurança das barragens de Brumadinho e de Mariana, que derrubaram as ações da empresa na Bolsa quando as falhas foram evidenciadas pelos desastres ambientais, econômicos e sociais.
O sócio do escritório também se mostra otimista em relação a uma vitória contra a mineradora. Executivos da companhia já confessaram, em CPI no Senado, e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, que a companhia não informou de maneira adequada o mercado sobre os riscos eminentes, afirma Kuyven.
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A resseguradora IRB Brasil, por sua vez, era até o início do ano uma das queridinhas dos investidores, mas se viu no centro de seguidos escândalos após a gestora Squadra questionar informações do balanço contábil, e depois de um suposto aporte da Berkshire Hathaway ter sido posteriormente desmentido pela própria empresa de Warren Buffett.
A empresa também está sendo cobrada na CAM por minoritários defendidos pelo Modesto Carvalhosa. “São casos clássicos em que as companhias derreteram na Bolsa por informações falsas, e hoje valem muito menos do que deveriam.”
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Nos processos, a maior parte dos clientes atendidos pelo Modesto Carvalhosa é composta por grandes investidores institucionais locais e estrangeiros, com uma parcela menor, ao redor de 10%, de pessoas físicas de elevado patrimônio.
Reforma estrutural
Na avaliação do especialista, uma atuação mais contundente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) na investigação, e no julgamento de casos que levantam suspeitas ou em que comprovadamente houve práticas irregulares, poderia contribuir para o amadurecimento do mercado de capitais brasileiro.
“A CVM nunca se preocupou com a defesa do minoritário”, critica Kuyven. A autarquia, afirma o advogado, se limita a punir os administradores com multas que sequer são revertidas aos investidores, mas à si própria, ou ao governo.
O especialista defende uma reforma estrutural do órgão regulador, que ele entende que sofre com conflitos de interesse, por ter de julgar empresas estatais estando o próprio na engrenagem da máquina pública.
“A CVM precisa se tornar um órgão totalmente independente, sem vinculação com o governo federal, e orçamento próprio, para ser realmente a xerife do mercado.”
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Procurada, a CVM enviou uma nota na qual diz que não cabe à ela comentar declarações ou opiniões de terceiros. Não obstante, prosseguiu, os “processos sancionadores são julgados pelos membros do colegiado, os quais têm mandato fixo, nomeados pelo presidente da República após sabatina no Senado Federal, não sendo cabível portanto dizer, em qualquer contexto, que a CVM é órgão de governo.”
Ainda de acordo com a autarquia, sua independência fica evidenciada por seu próprio histórico de atuação, “que inclui não apenas condenações, mas também decisões de outra natureza em desfavor de instituições públicas quando se entendeu, após a avaliação regulatória e técnica da autarquia, que havia razão para isso.”
Em dezembro de 2019, a CVM multou em cerca de R$ 1,7 milhão os ex-diretores da Petrobras, Nestor Cerveró e Jorge Zelada, e os proibiu de assumir cargos em empresas de capital aberto por mais de uma década, no primeiro julgamento da autarquia relacionado à Lava Jato.
Na mesma decisão, contudo, outros ex-dirigentes, como José Sergio Gabrielli, Graça Foster, Paulo Roberto Costa e Renato Duque foram absolvidos, pelo entendimento de que os fatos haviam prescrito para eles.
Justiça privada
Companhias listadas no Novo Mercado e no Nível 2 da Bolsa, os mais rígidos quanto aos níveis de governança, precisam estabelecer no estatuto a cláusula arbitral, que as obriga a levar os embates com os investidores minoritários que se sentem lesados para a Câmara da B3, para uma resposta mais rápida do que no judiciário, afirma o especialista.
Enquanto na Justiça Comum os processos facilmente duram mais de uma década, na Câmara, geralmente levam de dois a três anos, diz o sócio do Modesto Carvalhosa.
Na CAM, explica Kuyven, a companhia elege um árbitro, os investidores escolhem outro, e os dois, então, escolhem um terceiro. Forma-se assim o tribunal arbitral, geralmente com advogados ou especialistas no mercado de capitais, que julgam o caso, e cuja decisão deve ser aceita por ambas as partes.
“Existe uma falsa ideia de que a arbitragem é mais cara que a justiça comum. O que acontece é um gasto inicial maior, mas como o processo é mais célere, no fim, se economiza bastante.”
Kuyven diz que não pode entrar em detalhes sobre o valor das arbitragens, por serem processos sob sigilo. Mas, via de regra, afirma, os custos são diluídos entre todos os participantes. “E como são muitos, o valor para cada um fica realmente irrisório, é uma contribuição quase simbólica.”
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