Problemas com estoque e alavancagem: o que a Marfrig (MRFG3) encontrou após assumir controle da BRF (BRFS3)

Empresa de Marcos Molina imprime suas primeiras digitais na dona da Sadia e Perdigão um ano após assumir o controle da companhia

Rikardy Tooge

Sadia: marca de referência da BRF é uma das mais desejadas pelo mercado (Divulgação/BRF)
Sadia: marca de referência da BRF é uma das mais desejadas pelo mercado (Divulgação/BRF)

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Há cerca de um ano, em 28 de março de 2022, a Marfrig (MRFG3) conseguia realizar o desejo antigo de assumir o controle da BRF (BRFS3), a famosa dona da Sadia e da Perdigão. Depois de tentativas frustradas de fusão, a companhia de Marcos Molina chegou ao negócio com a missão de reestruturar a empresa e recuperar a confiança do mercado na companhia. Passado o primeiro ano, a nova gestão ainda arruma a casa em meio a um cenário adverso do mercado e alta alavancagem. Mas começa a mostrar os efeitos do estilo do novo controlador, com uma estratégia de alienação de ativos que não são considerados “core” (principais) e estancamento de gastos desnecessários.

No mercado de capitais, os analistas afirmam que o maior ponto de atenção na BRF é a estrutura de capital. Em fevereiro do ano passado, a dona da Sadia levantou R$ 5,4 bilhões em uma oferta subsequente de ações (follow-on). Mesmo com essa operação, a relação entre dívida líquida e o lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização (Ebitda, na sigla em inglês) ficou em 3,75 vezes no fim do ano passado – os relatórios apontam que o número saudável para a BRF seria de algo próximo a 2 vezes. Em 2020, a relação dívida/Ebitda  era de 2,73 e em 2021, de 3,12 vezes. Embora o número esteja no seu patamar mais alto dos últimos anos, a nova gestão conseguiu reduzir a dívida líquida em 15,8% em 2022, para R$ 14,6 bilhões. A BRF fechou o ano  com prejuízo líquido de R$ 3,1 bilhões, revertendo o lucro de R$ 437 milhões de um ano antes.

Os investidores seguem cautelosos com a companhia e à espera de melhores indicadores. Em quase um ano, até 24 de março, os papéis da Marfrig recuaram 60,3% e os da BRF, 63,6%, em comparação com uma queda de 17% do Ibovespa no período.

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Quem está mais próximo do negócio, entretanto, já vê vantagens no casamento BRF-Marfrig: “O ‘estilo Molina’ é firme e sem precipitações, mas o difícil são os ‘esqueletos’ da BRF. Tem surpresa todo dia”, diz ao InfoMoney uma fonte com conhecimento da operação. Um exemplo, segundo essa fonte, são os problemas encontrados na política de estoques, sobretudo na gestão de vencimento dos produtos. “Dava prejuízo de mais de R$ 100 milhões por mês. Produtos eram devolvidos ou havia um enorme desconto porque estavam a dias de vencer”, explica. “A chegada do Miguel [Gularte, CEO da BRF desde setembro de 2022] enquadrou esse problema – não zerou –, mas o colocou em níveis normais para o mercado.”

Na última teleconferência de resultados da BRF, realizada no início do mês, o CEO Miguel Gularte afirmou que a empresa havia obtido cerca de R$ 210 milhões em “melhorias de eficiência” no quarto trimestre de 2022, em especial na execução comercial, mas sem detalhar o motivo. O estoque foi um dos pontos destacados pela administração no relatório do quarto trimestre. No trecho que trata do fluxo de caixa, a empresa enfatizou que obteve melhor eficiência do capital de giro pela redução dos estoques e do prazo médio deles.

Procurada pelo InfoMoney, a BRF diz que “permanece focada na execução de seu plano para aumento de eficiência operacional e melhoria de execução comercial para redução de custos, maximização de receita e rentabilidade, conforme comunicado durante a divulgação de resultados do 4T22”.

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Nova gestão

A chegada de Molina e de Miguel mudou a gestão da operação. Ao longo das últimas semanas, o InfoMoney ouviu vários executivos e profissionais ligados à empresa. Um ponto em comum apontado por eles é de que a gestão Marfrig trouxe diversos benchmarks (indicadores de referência) para a operação. “Gularte é estilo ‘micro management’, tem referência para tudo e vai aos poucos enquadrando a BRF ao ‘estilo Molina’”, diz um profissional próximo ao dia a dia.

Para outro executivo, a gestão de Gularte não chega a ser de micro gerenciamento. “Ele faz as perguntas certas. É um time com muito conhecimento e respaldo do conselho”, reforça. Segundo a fonte, todas as decisões administrativas tomadas pela empresa foram unânimes no atual conselho – o que é pouco usual em se tratando de BRF.

A chegada de Miguel Gularte à BRF, segundo esses executivos, indica o empenho de Marcos Molina com o turnaround – mais um – da empresa. Homem de confiança do controlador, Gularte saiu de uma posição consolidada de CEO na Marfrig para o desafio de salvar a BRF, especializada em frangos e suínos.

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Produtos da BRF: empresa enfrentou dificuldades na execução comercial (Bloomberg)

“O Miguel foi muito bem na Marfrig, agora o mercado quer ver como será a gestão dele na BRF”, aponta Leonardo Alencar, analista da XP.  Alencar lembra que o cenário para o setor de proteínas é muito mais desafiador hoje do que há três ou quatro anos, quando a Marfrig surfou bem a onda de consumo nos Estados Unidos e China, enquanto a BRF pouco avançava diante de uma estratégia confusa de diversificação e de opção por produtos de maior valor agregado.

Para o analista da XP, a BRF viveu algumas ‘tempestades perfeitas’ nos últimos anos. Os preços dos grãos [principal insumo na alimentação de frangos e suínos] dispararam, em especial após o início da Guerra na Ucrânia, além da alta dos combustíveis e da queda no consumo. “No curto prazo, vejo um ambiente difícil para os dois negócios, especialmente pelo lado do consumo e o risco de gripe aviária no Brasil [no caso da BRF]”, reforça Alencar. “A longo prazo, parece ser um negócio promissor, se levarmos em conta o potencial de diversificação e força das marcas da BRF. Só que, para chegarmos ao longo prazo, é preciso sobreviver ao curto”, resume Alencar, da XP.

Para os analistas do Bradesco BBI, a ação da empresa está sendo negociada com um desconto significativo em relação à média histórica – “o que em nossa visão parece excessivo”, dizem os analistas, “apesar das preocupações com a alta alavancagem e riscos de execução da nova administração.”  O banco dá recomendação outperform (o equivalente a uma sugestão de compra) ao papel.

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“Back to basics”

Uma das novas diretrizes da BRF sob a gestão Miguel é a de “voltar ao básico“. Exemplo claro é o fim silencioso dado ao projeto “Visão 2030” – ou “Sonho 2030” para os críticos. Nele, a BRF tentava triplicar seu faturamento até aquele ano por meio da diversificação do portfólio, com foco em alimentos prontos, proteínas vegetais e pet food.

Só na divisão de pet food  a BRF gastou em 2021 cerca de R$ 1,35 bilhão na aquisição da Hercosul e da Mogiana Alimentos. Agora, segundo divulgou a companhia, o negócio está à venda – em uma decisão com as digitais de Molina. Embora entregasse margens atrativas, a operação é vista como non-core e tem potencial para dar alívio à alavancagem alta. Segundo apurou o InfoMoney, a disputa pela divisão de pet food da BRF conta com 14 interessadas, sendo oito grandes empresas – a Nestlé é uma antiga interessada pelo ativo e já disputou com a BRF a compra da Hercosul.

A venda da unidade de comida para animais de estimação faz parte de um plano da BRF para levantar cerca de R$ 4 bilhões para o caixa. Além do negócio de pet food, que o mercado estima em R$ 2 bilhões, a empresa tenta levar outros R$ 2 bilhões na venda de créditos tributários e outros ativos considerados não-essenciais.

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Dentro da BRF, a empresa viu com bons olhos entregas melhores no quarto trimestre em relação a sua concorrente Seara. Por lá, comemora-se desempenho superior nas linhas de receita, lucro bruto e Ebitda. A margem Ebitda é um exemplo, em que a BRF fechou 2022 com 7% e a Seara, 6,4%.

Marfrig

A entrada da Marfrig no controle da BRF trouxe consequências importantes também para o frigorífico. Leonardo Alencar, da XP, acredita que a decisão da Marfrig de expandir seu portfólio de proteínas faz todo o sentido. Mas avalia que Marcos Molina optou pelo caminho mais difícil. “É inegável a força de marca da BRF, Sadia é top of mind do segmento, mas é uma empresa que estava cara demais para os fundamentos”, aponta. “Enquanto a JBS e a Minerva (BEEF3) foram para a estratégia de alcançar novos mercados pelo mundo comprando empresas menores, a Marfrig fez uma grande compra. A fotografia do momento mostra a tática das concorrentes mais acertada”. Para Alencar, empresas menores e mais baratas poderiam ter entrado no pipeline da Marfrig, com potencial de resultados mais rápidos e com menor risco.

Estima-se que a Marfrig tenha investido cerca de R$ 8 bilhões em toda a operação envolvendo a BRF, com impactos importantes na alavancagem da empresa. Em relatório, analistas do Santander , por exemplo, destacam a preocupação com o aumento da alavancagem da Marfrig, que subiu de 1,51 vez a dívida líquida pelo Ebitda em 2021 para 2,99 vezes em 2022, por conta da consolidação da BRF em seu balanço. “Esperamos que o ritmo de ganhos da Marfrig permaneça fraco em 2023, mas uma recuperação da alavancagem”, escreveu o banco.

Namoro antigo

O “namoro” entre BRF e Marfrig começou há muitos anos.  Depois de uma frustrada tentativa de fusão em 2019, em que a BRF seria majoritária no negócio, os ventos do mercado viraram a favor de Marcos Molina. Em maio de 2021, capitalizado pelo bom momento da Marfrig nos Estados Unidos, o executivo montou uma posição de 24,3% na BRF, com desembolso aproximado de US$ 830 milhões (ou R$ 4,4 bilhões de acordo com a cotação da época).

Na época, chegou-se a especular que estaria em curso um takeover hostil (operação em que ocorre a compra do controle de uma empresa via mercado e sem negociação com a administração da companhia), mas o que ficou claro com o passar do tempo é que uma corrente do conselho da BRF,  liderada pelo então chairman Pedro Parente, defendia que Marcos Molina assumisse o controle da companhia. “Pedro enfrentou um conselho dividido e sem essa operação do Molina, que trouxe um dinheiro limpo para o caixa, o negócio poderia ter ido à falência. Mas ele [Pedro] também errou bastante”, diz um executivo.

Marcos Molina: empresário já foi dono da Seara, mas vendeu negócio para a JBS em 2013 (Crédito: Tasso Marcelo/Agência Estado)

Por conta da desconfiança sobre um takeover hostil , a Petros, fundo de pensão dos funcionários da Petrobras (PETR4) e um acionista relevante na BRF, jogou duro sobre a operação  de follow-on já em discussão à época e que só acabou se concretizando em fevereiro de 2022 por R$ 5,4 bilhões. “Foi inacreditável a canseira que os fundos deram ao negócio, sendo que a empresa precisava de capital”, fiz uma fonte próxima à BRF. “Os fundos precisam refletir sobre o enorme erro que foi se opor à operação do Molina”.

Passado o problema com os fundos, Molina emplacou no fim de março de 2022 sua chapa no conselho da BRF, com Sergio Rial, que foi homem forte na Marfrig durante anos, como vice-presidente do board. Estava sacramentada ali a transação que o executivo desejava há tempos e marcou a sua volta ao segmento de frangos e suínos – antes, Molina havia sido dono da Seara, empresa que vendeu à JBS (JBSS3) por R$ 5,8 bilhões em 2013.

Trajetória complexa

Dona de duas das mais famosas marcas alimentos do Brasil, Sadia e Perdigão, a BRF não teve um surgimento trivial. Após a Sadia enfrentar problemas com seus métodos de proteção cambial durante a crise de 2008 e entrar em colapso, a Perdigão se fundiu com a concorrente e surgiu a Brasil Foods (BRF), em maio de 2009.

Poucos anos depois, em 2013, a empresa viveu seu primeiro turnaround. A entrada do fundo Tarpon e do executivo Abílio Diniz fez a BRF viver um ciclo com foco em resultados de curto prazo e diversificação de produtos, se afastando de uma estratégia mais ligada ao agronegócio e se voltando para resultados financeiros.

A gestão Tarpon-Abílio a empresa chegou a valer R$ 63 bilhões, com o objetivo de chegar aos R$ 80 bilhões – atualmente, a BRF está valendo cerca de R$ 6,7 bilhões na Bolsa.  A dupla saiu do comando do negócio em meados de 2018, na esteira da Operação Carne Fraca, em que a BRF foi investigada em um esquema de corrupção que envolveu os maiores frigoríficos do país e o Ministério da Agricultura. No fim do ano passado, a BRF fechou um acordo de leniência de R$ 583,9 milhões com a Controladoria Geral da União (CGU) e Advocacia Geral da União (AGU). A demora para encerrar o caso foi interpretada pela nova controladora como um “atraso desnecessário” da antiga administração. “Não chega a ser um ‘esqueleto’, pois já se sabia, mas foi um problema a mais”, reconhece uma fonte.

Pedro Parente: ex-ministro foi determinante para a sobrevivência da BRF, na avaliação do mercado (Secom)

Com o fim da gestão Abilio-Tarpon, em junho de 2018, Pedro Parente (que havia saído pouco antes da Petrobras) chegou ao comando do negócio acumulando as funções de CEO e presidente do conselho e com um objetivo claro: o de melhorar a governança da BRF. Em 2019,  passou o cargo de CEO para Lourival Luz e se manteve à frente do conselho. Luz saiu em agosto de 2022, após a chegada de Molina à companhia.

A entrada de Marcos Molina na BRF pôs fim à característica de corporation da BRF, ou seja, uma empresa em que não há um controlador definido. “O mercado gostava de histórias de corporations, mas a história mostrou que, em alguns casos, perde-se o foco do negócio pela busca apenas em resultados de curto prazo”, diz Leonardo Alencar, da XP. Turnaround são processos dolorosos e ter um grupo que conhece do negócio ajuda.”

Entre os profissionais ouvidos pelo InfoMoney, há otimismo de que a dupla Molina e Miguel Gularte consiga repetir o sucesso visto na Marfrig. Mas o mercado, por ora, não está pagando para ver. “Está precisando é de um vento a favor, pois os mercados têm dificultado”, reconhece uma fonte.

Rikardy Tooge

Repórter de Negócios do InfoMoney, já passou por g1, Valor Econômico e Exame. Jornalista com pós-graduação em Ciência Política (FESPSP) e extensão em Economia (FAAP). Para sugestões e dicas: rikardy.tooge@infomoney.com.br