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A Embraer (EMBR3) já gastou mais de R$ 806 milhões com o negócio frustrado com a Boeing (BOEI34) — e continua gastando, apesar de o acordo ter naufragado há mais de 3 anos. A empresa brasileira cobra ressarcimento da americana pelo rompimento do acordo, mas alerta seus investidores que pode não só não receber o dinheiro, como inclusive ser obrigada a “pagar danos monetários significativos à Boeing”.
Para chegar ao valor, o InfoMoney analisou as demonstrações financeiras da Embraer dos últimos seis anos, além de documentos públicos depositados na CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e na SEC (Securities and Exchange Comission), pois a companhia não se pronuncia publicamente sobre o assunto.
Ela também passou a evitar usar o nome da Boeing em seus balanços, sobretudo a partir de 2022, o que fez a reportagem ter de procurar as informações de outras formas: pesquisando por “Yaborã” (nome que a divisão comercial da Embraer passou a ter após a separação do restante da empresa), “programa One Embraer” (nome do projeto para reintegrar o negócio) ou até pelo nome técnico “carve-out”.
A brasileira desembolsou milhões não só para segregar a sua divisão comercial (que seria transformada em uma joint venture com a Boeing), mas também para reincorporá-la, depois que o acordo fracassou (a empresa receberia US$ 4,2 bilhões por 80% da nova empresa e ficaria com os outros 20%, se o negócio tivesse sido concluído).
Os mais de R$ 806 milhões foram gastos em:
- R$ 485,5 milhões em 2019, após a assinatura do MTA (Master Transaction Agreement, o documento que definiu os termos do acordo);
- R$ 215,7 milhões no 1º semestre de 2020, antes de o negócio ser cancelado pela Boeing;
- R$ 105,6 milhões em 2021, com o programa One Embraer (criado para reintegrar a divisão comercial à Embraer).
Procurada pela reportagem, a Embraer afirmou que não se manifesta sobre o acordo frustrado nem sobre o processo de arbitragem, que se arrasta desde 2020 (a companhia processa e ao mesmo tempo é processada pela Boeing, devido ao fim do negócio). Mas a empresa é obrigada a tratar do assunto em seus balanços e nos documentos públicos depositados na CVM e na SEC — ela, por exemplo, demitiu cerca de 900 empregados no Brasil (4,5% dos funcionários) no terceiro trimestre de 2020.
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Nos documentos, a Embraer diz que a Boeing “rescindiu indevidamente o acordo que criaria parcerias nas áreas da aviação comercial e de defesa & segurança, gerando custos significativos para nossa empresa” (veja mais abaixo). Já a gigante americana diz que tinha direito a cancelar o acordo, porque a brasileira não cumpriu os termos do contrato.
“Rescindimos nosso acordo para formar uma parceria estratégica depois que a Embraer não cumpriu uma série de condições importantes do contrato. A Embraer contestou nosso direito de rescisão e estamos arbitrando essa disputa em um processo confidencial. Não diremos mais nada sobre isso enquanto prosseguimos com a arbitragem”, afirmou a Boeing à reportagem.
Boeing x Embraer
Em meio à disputa entre as duas empresas, o InfoMoney tem publicado uma série de reportagens mostrando diferentes aspectos dessa briga pública. Um deles, envolve uma guerra por talentos: a Boeing tem avançado sobre os profissionais da Embraer — e de outras companhias com sede no Brasil –, contratando “a elite da engenharia aeroespacial brasileira”, nas palavras de Roberto Gallo, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde).
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O foco começou por engenheiros de nível sênior, que têm anos de experiência, chefiam importantes áreas de desenvolvimento de aeronaves, e possuem acesso a informações privilegiadas de projetos com segredos industriais, como os caças Gripen. Nos últimos meses, a gigante americana passou a contratar também profissionais de meio e começo de carreira no país.
Desde o ano passado, a Boeing já contratou mais de 200 pessoas no Brasil — e mais de metade eram funcionários e ex-funcionários da Embraer. Além disso, está com dezenas de vagas em aberto em São José dos Campos (cidade de mais de 700 mil habitantes a cerca de 90 km de São Paulo que é o berço da multinacional brasileira e do setor aeroespacial e de defesa do país).
Por causa das contratações em massa, a Boeing é alvo de uma Ação Civil Pública (ACP) na Justiça Federal, que tenta impor uma série de restrições à empresa, alegando que as contratações ameaçam a soberania nacional. A empresa americana diz que o movimento faz parte de uma estratégia global de crescimento, não local, mas admite que o país é um dos seus focos — assim como a Polônia, por exemplo.
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A Embraer é a terceira maior fabricante de aeronaves comerciais do mundo, atrás apenas da Airbus e própria Boeing, e líder no segmento de aviões de até 150 passageiros. Mas a escala das empresas é incomparável: enquanto a Embraer tem cerca de 18 mil funcionários em todo o mundo, a Boeing tem mais de 150 mil, contratou mais de 26 mil apenas em 2022 e pretende contratar mais 10 mil neste ano.
O InfoMoney também revelou nas últimas semanas que a Embraer notificou extrajudicialmente a Boeing, na sede da empresa nos Estados Unidos, devido à contratação dos seus engenheiros no Brasil. A brasileira afirma no documento que a americana se aproveitou do acordo frustrado para acessar indevidamente suas informações confidenciais, para contratar engenheiros, e a acusa de “se apropriar indevidamente de seus segredos de negócios e outras informações confidenciais” — o que a Boeing nega.
R$ 806 milhões (e contando…)
Os números e informações sobre os gastos da Embraer com o acordo — e também o rompimento — constam em demonstrações financeiras da empresa e em documentos públicos depositados na CVM e na SEC. Para chegar aos R$ 806 milhões, a reportagem analisou os balanços dos últimos seis anos (desde que a negociação entre as empresas se tornou pública, no fim de 2017).
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No balanço de 2019 (ano em que o acordo foi formalmente assinado), a Embraer afirma na página 45 que “os principais fatores de crescimento das despesas operacionais referem-se aos custos de separação relacionados à parceria estratégica entre a Embraer e a Boeing que totalizou R$ 485,5 milhões em 2019“.
Nas demonstrações financeiras de 2020, a empresa diz nas páginas 29 e 33 que “a Boeing rescindiu indevidamente o acordo”, o que gerou “custos significativos para nossa empresa”, e por isso “precisou se reestruturar para se adequar à nova realidade do mercado”.
“A empresa anunciou, no 3º trimestre de 2020, um ajuste de 4,5% do seu efetivo total, o que corresponde a cerca de 900 colaboradores no Brasil. A medida decorreu dos impactos causados pela Covid-19 na economia global e pelo cancelamento da parceria com a Boeing com o objetivo de assegurar a sustentabilidade da empresa e sua capacidade de engenharia”, afirma a Embraer, em documento.
Sobre os custos do acordo, a Embraer afirma na página 46 do documento que, “no primeiro semestre de 2020, ainda incorreram alguns custos de separação dos negócios da aviação comercial e dos serviços & suporte relacionados com a parceria estratégica, agora encerrada, com a The Boeing Company, que foram de R$ 215,7 milhões“.
No balanço de 2021, a empresa diz na página 38 que “apesar da consistente recuperação em andamento, os resultados econômico financeiros e operacionais da Embraer ainda foram negativamente afetados pelas iniciativas de reintegração da aviação comercial, que havia sido separada da Embraer para a parceria estratégica, agora encerrada, com a Boeing, ocorrida em 2020, e pelo impacto da pandemia da Covid-19 nos negócios da Empresa e também de nossos clientes e fornecedores”.
Na página 41, a brasileira contabiliza o prejuízo com a reunificação de seus negócios: “Durante o ano de 2021, incorreram alguns custos decorrentes do Programa One Embraer, que visa a reintegração do negócio de aviação comercial e seus serviços relacionados, em conexão com a parceria estratégica, agora encerrada, com a Boeing, que foram de R$ 105,6 milhões”.
Da água para o vinho
O tom de otimismo da Embraer também foi mudando ao longo dos balanços. Nas demonstrações financeiras de 2017, a empresa chamou a Boeing de “parceira em projetos de engenharia, ecoeficiência e projetos socioculturais” e falava em uma “possível combinação de negócios entre as duas empresas”.
No balanço de 2018, a Embraer afirmou que as “tratativas para uma potencial combinação de negócios entre as duas empresas” avançaram e que o conselho de administração aprovou a parceria por acreditar “que as empresas estarão melhor posicionadas para competir no mercado aeroespacial global”.
Segundo a brasileira, a Boeing avançaria em aeronaves de corredor único e a Embraer aumentaria a demanda pelas suas aeronaves, “por meio do acesso à base de clientes da Boeing”. O acordo entre as empresas foi assinado em 24 de janeiro de 2019 e depois aprovado, em 26 de fevereiro do mesmo ano, com 96,8% dos votos válidos da Assembleia Geral Extraordinária (AGE) da Embraer.
Quatro anos depois, no balanço de 2022, sumiram praticamente todas as menções à empresa americana — exceto pelo trecho que menciona a arbitragem entre as empresas — e ao programa One Embraer, de reincorporação da divisão comercial após o negócio fracassar.
Longe do fim
No formulário 20-F, depositado na SEC neste ano, a Embraer trata dos riscos que corre por causa do processo de arbitragem contra a Boeing. Com 307 páginas, o documento aborda o negócio frustrado logo na primeira parte, onde estão as “informações-chave” (“key information”) da empresa, na parte dos “fatores de risco”:
“Incorremos e continuamos a incorrer em custos adicionais em conexão com o processo, defesa ou liquidação do processo judicial atualmente pendente e de quaisquer processos judiciais futuros e quaisquer procedimentos legais futuros relacionados à Transação Boeing e/ou rescisão e falha da Boeing em fechar a Transação Boeing”, afirma a Embraer no documento.
A empresa lembra os investidores que “tanto a Embraer quanto a Boeing iniciaram arbitragens relacionadas à rescisão” e que os processos foram unificados (em um processo de arbitragem, as partes envolvidas concordam em resolver uma disputa extrajudicialmente e a aceitar a decisão, independentemente do resultado). No caso das aéreas, o procedimento se arrasta há mais de três anos.
“No caso de uma determinação adversa no processo de arbitragem, podemos não recuperar quaisquer danos da Boeing e podemos ser obrigados a pagar danos monetários significativos à Boeing”, destaca a Embraer no formulário depositado na SEC. A empresa alerta ainda que pode ser alvo de “litígios movidos por nossos acionistas e detentores de nossas ADRs relacionados à transação da Boeing”.
Boeing culpa a Embraer
A Boeing rompeu o acordo com a Embraer em abril de 2020. Na ocasião, o mundo vivia a incerteza do início da pandemia de Covid-19 e a empresa americana enfrentava uma série de graves problemas com o 737-Max. Dois aviões do modelo caíram em um intervalo de cinco meses, matando 346 pessoas, o que fez com que governos proibissem aeronaves do tipo de voar e companhias aéreas de todo mundo fossem obrigadas a permanecer com seus aviões em solo.
Ao anunciar a desistência, a Boeing afirmou que a Embraer não tinha cumprido o contrato. A empresa brasileira negou e disse que a Boeing rescindiu “indevidamente” o acordo, “fabricando falsas alegações”, e que a empresa vinha adotando “um padrão sistemático de atraso e violações repetidas ao MTA (acordo), pela falta de vontade em concluir a transação, pela sua condição financeira, por conta dos problemas com o 737-Max e por outros problemas comerciais e de reputação”.
A Boeing também aborda em suas demonstrações financeiras o negócio frustrado com a Embraer e a disputa extrajudicial. No balanço do primeiro trimestre deste ano, a empresa americana afirmou que “a disputa está atualmente em arbitragem” e que não pode “estimar razoavelmente uma faixa de perda, se houver”, mas que espera que o processo seja concluído “no final de 2023 ou início de 2024”.
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