Como startups conseguem dinheiro de investidores? Guia mostra lógica do capital de risco

Endeavor, organização de fomento ao empreendedorismo, criou manual “Venture capital para scale-ups”; veja detalhes sobre captar aportes

Mariana Fonseca

Caderno, calculadora e clipes de unicórnios (Pexels)
Caderno, calculadora e clipes de unicórnios (Pexels)

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SÃO PAULO — Muitas scale-ups (startups que crescem pelo menos 20% ao ano por três anos consecutivos, em número de funcionários ou receita) colocam captar dinheiro com investidores como uma das condições para manter uma expansão fora da curva.

Mas o cenário do capital de risco é cada vez mais complexo. A relação entre empreendedores e fundos se tornou global: apenas o Brasil respondeu por US$ 3,5 bilhões de dólares aportados em 2020. Mas boa parte desse dinheiro está concentrado em algumas empresas – como as startups com avaliação bilionária, ou unicórnios.

Para ajudar empreendedores a negociarem melhor com fundos de venture capital e private equity, a Endeavor desenvolveu o guia “Venture capital para scale-ups”. A organização global de fomento ao empreendedorismo consultou mentores de sua rede para elaborar o manual, assim como contou com apoio de Ricardo Diniz, do Bank of America, e de Edson Rigonatti e Laura Constantini, do fundo de venture capital Astella Investimentos.

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O InfoMoney lista abaixo os principais pontos do guia sobre a lógica do capital de risco. Também entrevista Marcelo Sato, sócio da Astella, e o empreendedor Brian Requarth – um dos fundadores do portal VivaReal e hoje investidor em startups. Requarth dedicou boa parte do seu livro mais recente, “A Real Sobre Empreender”, para as negociações que teve com fundos de investimento quando estava no VivaReal.

A lógica do capital de risco

O manual aponta que existe uma assimetria de informações entre fundos e empreendedores. Muitos fundadores de negócios não sabem como acessar fundos e quais critérios vão determinar a assinatura ou não do cheque. Quem participa da esteira do capital de risco faz quatro ou cinco investimentos. Já os investidores têm experiência na arte de escolher empresas e na matemática de calcular retornos, porque passam pelo processo dezenas de vezes.

“Enquanto os fundos fazem centenas de deals [negociações de aporte] ao longo da sua existência, os empreendedores e empreendedoras fazem em torno de quatro, sendo que o primeiro deal é decisivo para determinar o formato dos demais”, escreve Allen Taylor, diretor geral do fundo Endeavor Catalyst.

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“Essa é uma assimetria natural, mas tentamos repassar esse conhecimento para o ecossistema. Perguntamos a todo empreendedor se ele realmente entende os termos e condições descritos no contrato de investimento”, diz Marcelo Sato, sócio da Astella, em entrevista ao Do Zero Ao Topo.

O fundo de investimentos foi criado em 2008. Fez investimentos em 40 startups ao longo de quatro fundos, 15 delas com saídas. O quarto fundo deve investir em mais 12 empresas, e o quinto fundo deve começar sua captação no último trimestre do ano.

Primeiro, os empreendedores devem entender como um fundo de capital de risco funciona. Primeiro, os gestores do fundo (general partners, GPs) levantam capital com um grupo de investidores (limited partners, LPs). Esses investidores podem ser fundos de pensão, seguradoras, bancos comerciais e de investimento, bancos públicos de desenvolvimento, fundos soberanos, fundos de fundos, family offices, universidades, fundações, corporações e até pessoas físicas.

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O dinheiro captado é usado para investir em startups que tenham a tese defendida pelo fundo no momento da captação. Os fundos costumam se diferenciar em estágio da startup ou setor de preferência. Quanto mais iniciante a startup, maior o risco para gestores e investidores – mas maior o potencial múltiplo de retorno do investimento (MOIC).

Além de colocar dinheiro, os gestores do fundo devem ajudar as startups com conexões e mentorias – fatores que aumentam suas chances de sucesso. Parte dos recursos captados é reservada para follow on, ou seja, participar de rodadas de investimento futuras de algumas das startups no portfólio. Assim, o fundo aprofunda a aposta nos negócios que tenham boa performance.

Apenas algumas dessas apostas darão certo – segundo a Endeavor, a projeção feita pelos gestores dos fundos é que um terço das empresas do portfólio não vão gerar nenhum retorno financeiro. A Astella parte de uma premissa ainda mais extrema, de que metade dos investimentos não gerarão retorno. As startups bem sucedidas precisam ter um múltiplo de retorno que supere os aportes que andarem de lado ou que não derem certo, portanto.

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“No mercado americano, a média de retorno dos fundos de venture capital é de três vezes o capital investido até eles serem encerrados. Fundos acima da mediana retornam seis vezes. Os fundos brasileiros costumam ser montados tendo essa proposta. Estamos de olho em um retorno de seis a dez vezes”, diz Sato.

Essas startups serão as que se transformarão em scale-ups e terão um evento de liquidez após alguns anos. Também conhecido como saída (exit), o evento de liquidez pode ser a venda para outra empresa ou uma oferta pública inicial de ações (IPO).

A saída costuma remunerar tanto os gestores quando os investidores do fundo de capital de risco. Mas também existem saídas quando o negócio não performa como esperado, como buy back (gestores do fundo vendem sua participação para os próprios empreendedores do negócio) e write off (gestores do fundo saem do negócio com um retorno mínimo ou sem retorno sobre o capital aportado).

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Leva tempo até isso acontecer. Segundo o guia da Endeavor, é padrão que fundos de investimento tenham ciclo de vida de geralmente 10 anos, com a possibilidade de estender em até 3 anos. São quatro fases: levantar capital (até um ano), investimento (até cinco anos), follow on (até cinco anos) e extensão opcional das atividades (até três anos). A extensão serve para realizar mais follow ons ou aguardar mais saídas.

Na Astella, os dois primeiros anos são dedicados a investimentos; os três anos seguintes vão para follow on; o sexto ano é mais dedicado para acompanhamento de portfólio e geração de valor; e o oitavo ano em diante é dedicado para avaliar oportunidades de saída.

O fundo é encerrado no prazo que foi indicado, por regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Até o final do prazo, o fundo precisa vender sua participação na startup – mesmo que ela não decida se vender ou fazer um IPO.

Os gestores são remunerados de duas formas: uma taxa de administração que costuma ir de 2% a 3% ao ano sobre o capital levantado pelo fundo; e taxas de performance (carry) relacionadas ao sucesso na saída das scale-ups investidas. Essa taxa tem como padrão de mercado 20% dos rendimentos do capital aportado, e seu recolhimento ocorre apenas após a saída do investimento e a distribuição dos lucros aos LPs.

O lado do empreendedor

Brian Requarth foi cofundador do VivaReal, portal imobiliário que depois se fundiu com o Zap. Em 2020, a OLX comprou os dois sites por R$ 2,9 bilhões. Requarth foi para o outro balcão e se tornou mentor e investidor de startups. Requarth é atualmente um dos cofundadores do Latitud, movimento de fomento ao empreendedorismo na América Latina. Suas experiências foram recentemente resumidas no livro “A Real Sobre Empreender”.

Em entrevista ao Do Zero Ao Topo, Requarth afirma que tanto empreendedores quanto investidores devem trabalhar para diminuir a assimetria de informações entre eles. O empreendedor deve somar sua experiência com a de outros criadores de startups.

“Tive um grupo de pessoas com quem falava com frequência quando estava no VivaReal. Era uma oportunidade de compartilhar práticas de forma aberta, formando uma espécie de conselho informal de especialistas. É melhor ainda quando as pessoas estão alguns passos na sua frente. Os próprios empreendedores estão reconhecendo como é importante ajudar outros, porque isso reforça suas próprias experiências.”

Já o investidor deve fornecer mais informações sobre o processo de investimento aos empreendedores. “Em qualquer negociação, você tem vantagem quando não compartilha toda sua perspectiva. Mas o investidor constrói uma marca mais forte e se posiciona melhor frente aos empreendedores quando divulga seus processos. Com tantos investidores no mercado e negócios valiosos, o trabalho não é mais sentar na poltrona e esperar que empreendedores venham. O investidor deve mostrar seu conhecimento e como seu ponto de vista agrega valor ao empreendedor”, diz Requarth.

O empreendedor deve ver como essa gestora de recursos combina com a sua empresa. “Existem fundos focados em estágio e setor, com tamanhos de cheque e porcentagens de participação preferidas. O empreendedor tem que entender que está entrevistando o investidor e pesquisar mais sobre a tese dele, e em caso de dúvida perguntar para ele e para outros empreendedores do portfólio”, diz Requarth.

“Uma vez que o GP investe na empresa, ele vai ficar por um longo período como sócio. Por isso, avaliar o GP é importante, considerando pontos como sua proposta de valor, exigências, cultura e setores das investidas. Nesse processo, é importante contatar empresas investidas pelo fundo para entender que valor ele agrega na jornada de crescimento e outros tópicos como cláusulas de controle. Quando for buscar investidas para conversas, é importante entender como o GP se comporta quando a empresa não vai bem – é aqui que se compreende como o GP se comporta em situações difíceis”, escreve a Endeavor em seu guia.

O empreendedor também precisa entender em qual estágio o fundo de venture capital está. De acordo com a Endeavor, fundos que estão em seus primeiros anos têm menos pressão pelo retorno financeiro no curto prazo. Já nos fundos em estágios mais avançados, a tendência é que haja maior pressão por uma saída próxima, principalmente se a liquidez de outras rodadas não foi alcançada. Requarth recomenda perguntar com quanto tempo está o fundo, sua performance e se a gestora pretende levantar outro. “Fundos que tiveram sucesso têm vantagem em levantar mais fundos, porque atraem outros bons empreendedores. É um ciclo virtuoso.”

Outro ponto importante para o empreendedor é entender como chegar à gestora pretendida. Há uma grande dificuldade para scale-ups que buscam investimento, mas não possuem rede de relacionamento consolidada. “Criar relacionamento com fundos é o primeiro passo para captar: o relacionamento com os fundos de interesse é de longo prazo, construído meses antes de começar a rodada para ganhar a confiança dos GPs e poder enviar updates com destaques da empresa”, escreve a Endeavor.

A ordem de relacionamento deve ser: fundadores e diretores de scale-ups já investidas pelo fundo; referências no setor da startup, como investidores anjo; intermediários profissionais, como consultorias e boutiques do mercado financeiro; e cold call (envio de uma apresentação da startup ao e-mail do fundo, sem relacionamento construído).

“Já investimos em startups que começaram o relacionamento com um e-mail, mas a maioria da nossa originação de deals vem de empreendedores em que investimos ou outros investidores. São sugestões já validadas, então há uma vantagem. Mas depois que marcamos uma conversa com o fundador, o processo é o mesmo. Entendemos a oportunidade e como o empreendedor pensa, negociamos termos e fazemos o investimento”, diz Sato.

Depois do relacionamento, vem a apresentação do negócio para os gestores do fundo. De forma geral, eles costumam levar em consideração fatores como tamanho do mercado, concorrência, adoção de consumidores, estratégia de crescimento e time (fundadores e diretores). “O empreendedor e empreendedora devem ter a capacidade de articular o que quer criar”, escreve a Endeavor. Não basta storytelling, porém: as metas têm que ser realistas. “Se as projeções são muito além da capacidade de execução do seu time e elas não forem cumpridas, você perde credibilidade perante os investidores. O capital a ser levantado tem que ser suficiente para a empresa chegar ao resultado.”

Mas Requarth ressalta que negócios em estágio inicial não precisam ter tudo definido. “Se o investidor em estágio inicial exige que o dinheiro esteja amarrado a uma métrica pontual, não deveria investir nesse estágio. O empreendedor pode construir uma nova tese ao aprender com seus clientes, e então as métricas mudam. É preciso ter flexibilidade.”

Outro ponto ressaltado pelo cofundador do VivaReal é que o empreendedor não deve tentar tranquilizar o investidor dos riscos envolvidos. “O empreendedor pode não deve falar que o empreendedor vai pelo menos recuperar o que investiu ou algo assim. Você deve dizer que existe uma grande chance de não dar certo, mas que os resultados podem ser transformadores caso dê certo. Seja franco com seus desafios, mas se mantenha otimista. Quando você tem consciência de concorrência e riscos, mostra ao investidor que não está nas nuvens com suas ideias e ganha credibilidade.”

Os gestores também vão ficar de olho em alguns baldes de água fria. Primeiro, um cap table (divisão da participação entre os sócios) inadequado. Os fundadores devem chegar ao investimento série A com mais de 50% de participação na startup. “Investidores comprarem boa parte logo no começo do negócio mata a empresa e torna impossível de captar futuras rodadas”, diz Brian. Sato recomenda que fundadores tenham participação de 75% ao captar um aporte semente e de 60% ao captar um série A. Essa porcentagem também inclui ações que serão distribuídas a funcionários (option pool).

“Se os fundadores possuem baixa participação na empresa, há pouco espaço para a diluição dessa participação a cada rodada. (…) Se o cap table estiver desequilibrado, uma saída é comprar participação dos atuais acionistas para a entrada de novos”, escreve a Endeavor. Outros alertas, segundo a organização de fomento ao empreendedorismo, são um múltiplo de retorno pequeno demais para justificar a aposta e, especialmente após a rodada Série A, dados financeiros e de governança desestruturados.

O dono do negócio também deve ler atentamente o term sheet – principal instrumento legal e financeiro para reduzir a assimetria de informação entre GPs e startups. Esse documento tem termos econômicos e políticos, determinado como será a dinâmica de governança da sociedade, a relação com o investidor e a estrutura final da rodada e das próximas rodadas, especialmente em termos de controle acionário e de decisões de conselho.

No term sheet estão termos como avaliação de mercado (valuation); formação do conselho; preferência de liquidação (a ordem de recebimento do capital, no caso de um evento de liquidez ou da dissolução da sociedade); vesting (garante uma determinada participação societária, contanto que certas metas sejam alcançadas); direito de preferência (caso o fundador venda suas ações para terceiros, os acionistas atuais têm o direito de igualar o valor oferecido por terceiros e o fundador é obrigado a vender para o acionista, desde que sua oferta seja igual); antidiluição (proteção para investidores reajustarem o valor da sua participação no negócio em caso de emissão de novas ações a um preço inferior ao do investimento anterior, conhecida como down round); tag along (o direito de vender as ações, de sua propriedade, junto com as ações de outro acionista que estejam sendo vendidas pelo mesmo preço e nos mesmos termos e condições); drag along (obrigação imposta ao sócio minoritário de vender as suas ações, caso determinado percentual de acionistas decidam por vender sua parte); lock-up (determina que o empreendedor não pode vender sua participação por determinado período sem a autorização dos seus investidores); cláusulas de não competição após a saída do empreendedor da empresa; e possíveis vetos dos investidores.

Para construir relacionamento com potenciais investidores e para conseguir analisar com calma tantas condições, é recomendável estruturar a rodada com seis a 12 meses de antecedência, segundo a Endeavor. “Quando há um horizonte maior de caixa, pode-se esperar mais pelo capital. Isso permite criar concorrência pelo deal e analisar os term sheets que receber dos fundos, para negociar melhor as cláusulas de governança e garantir a melhor negociação”. Os cenários de novos investimentos e de saídas devem ser alinhados desde o início com todos os acionistas.”

Requarth recomenda ter uma “densidade de calendário”, concentrando as negociações para levantar capital em poucos dias. “Deve ser organizado, como uma temporada para levantar capital na Bolsa de Valores. Você fala com diversos investidores em uma semana e entende a demanda por suas ações. É importante porque você receberá vários ‘nãos’, e nada melhor do que ter outra conversa após superar a rejeição e absorver o feedback anterior.”

Mariana Fonseca

Subeditora do InfoMoney, escreve e edita matérias sobre empreendedorismo, gestão e inovação. Coapresentadora do podcast e dos vídeos da marca Do Zero Ao Topo.