Visão sobre responsabilidade da vítima deve mudar, diz alvo do “golpista do Tinder”

Ayleen Charlotte, hoje ativista contra golpes, falou em evento promovido por uma fornecedora de soluções de prevenção a fraudes

Maria Luiza Dourado

Ayleen Charlotte - O Golpista do Tinder (Divulgação-Netflix)
Ayleen Charlotte - O Golpista do Tinder (Divulgação-Netflix)

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Tão importante quanto educar a população sobre fraudes que se valem de engenharia social é exigir das instituições financeiras o uso efetivo e antecipado de dados e recursos tecnológicos, baseados em inteligência artificial e machine learning. É o que pensam Cassiano Cavalcanti, diretor da empresa de prevenção a fraude BioCatch, e a palestrante e ativista Ayleen Charlotte, personagem central da série documental “O Golpista do Tinder”, da Netflix.

Para Cavalcanti, que participou de um evento nesta terça-feira (6), em São Paulo, ao lado de Charlotte, ferramentas baseadas em biometria comportamental podem evitar que as vítimas, mesmo no estado de hipnose causado pela engenharia social, sejam impedidas pelas instituições de realizarem transferências para fraudadores.

“Um exemplo simples para entendimento da biometria comportamental é o jeito que digitamos nosso CPF. Preenchemos esse número assim como falamos, de três em três, e no fim o dígito. Uma digitação diferente disso pode sinalizar que a digitação está sendo ditada e, combinada com outras informações, como uma geolocalização diferente das que esse cliente está habituado ou uma ligação em curso no mesmo aparelho, pode mostrar ao aplicativo da instituição que se trata de um golpe”, diz o diretor da BioCatch.

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A responsabilidade dos bancos

O caso do “Golpista do Tinder” traz à luz a responsabilidade dos bancos em golpes que se utilizam de engenharia social, bem como a necessidade de mudança no olhar sobre a responsabilidade da vítima.

O estelionatário Shimon Hayut usava o nome Simon Leviev e afirmava ser o herdeiro do império construído pela exploração de diamantes de uma família realmente bilionária, os Leviev, donos da empresa LLD Diamonds – que nada tem a ver com o fraudador.

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Para conquistar Charlotte e outras vítimas, além de mentir sobre suas origens, identidade e profissão, Hayut fazia o chamado “love bombing”, ou bombardeio de amor. Comum no início de relacionamentos tóxicos, o “love bombing” consiste em um bombardeio de carinho, elogios, frases apaixonadas e presentes emitidos pelo golpista até que a vítima esteja profundamente envolvida e torne-se submissa e suscetível a manipulações – como pedidos de dinheiro.

Se valendo de um teatro bem feito, Hayut extorquiu 50 mil euros de Ayleen, que conseguiu o valor contraindo dívidas em bancos, entre empréstimos e gastos no cartão de crédito – valor que nunca foi perdoado, nem em partes, por nenhum banco. “Ouvi de três juízes em uma sentença que, apesar de estar sendo enganada, fui eu que contraí as dívidas, então eu deveria pagar”, conta a vítima.

Para Charlotte, a mentalidade sobre a responsabilidade da vítima precisa mudar. “Um banco em questão já havia sido notificado pela American Express sobre os dados do golpista e mesmo assim permitiu a transferência. Eles sabiam que se tratava de um golpista antes de mim e mesmo assim permitiram. Esse é o meu argumento”.

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Além disso, segundo a legislação holandesa, foi dado à Charlotte um crédito acima da sua capacidade em 17 mil euros – mais um erro de responsabilidade da instituição financeira.

“Os bancos têm mais recursos, dados, tecnologia e, portanto, mais capacidade de reconhecer um golpe do que uma pessoa comum”, afirma.

Vítima é vítima

Charlotte conta que levou meses para aceitar participar da série e o fez com o objetivo de contribuir com o combate a golpes. “O fiz porque as empresas e autoridades precisam saber que isso existe e o que está acontecendo para poder agir. E também porque, se eu decidisse não levar a público o que aconteceu comigo, o meu golpista seria o único a se beneficiar com isso”, contou.

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Apesar de o relacionamento com o golpista ter durado um ano e meio, Charlotte soma prejuízos e traumas por mais que o dobro de tempo. “Isso me afetou muito durante cinco anos. Minha autoconfiança e minha capacidade de confiar nas outras pessoas foram impactadas duramente. Me sentia culpada. Hoje entendo que vítima é vítima e que ser vítima não é crime. Crime é o que os golpistas fazem”, afirmou.

Charlotte contou ainda que viu o fraudador há pouco mais de um mês, em um tribunal em Tel Aviv, capital de Israel, onde o criminoso, hoje em liberdade, é julgado.

Atualmente, ela conta com o apoio dos verdadeiros integrantes da bilionária família Leviev. “O nome da família foi manchado por Shimon. Eles me apoiam para limpar o nome Leviev. E isso me coloca do lado forte e correto da história”. Apesar disso, Charlotte ainda paga as dívidas contraídas em seu nome.

Maria Luiza Dourado

Repórter de Finanças do InfoMoney. É formada pela Cásper Líbero e possui especialização em Economia pela Fipe - Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas.