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A alta da inflação levou o governo a retomar, depois de dois anos paradas, as discussões sobre a regulamentação do cobiçado mercado do vale-alimentação e vale-refeição, que movimenta mais de R$ 150 bilhões por ano. Para tentar reduzir o custo da alimentação fora de casa, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, levantou a possibilidade de mudanças para aumentar a competição e facilitar o uso dos recursos pelo consumidor. O objetivo é, assim como foi feito no setor de meio de pagamentos, permitir a interoperabilidade dos cartões nas maquininhas e a portabilidade dos créditos.
Dessa forma o consumidor ganharia possibilidades de uso do cartão e remanejaria os créditos para onde precisa. A ideia do governo é entregar o mercado à regulação do Banco Central, o que obrigaria as empresas que atuam no setor a operarem segundo as regras das instituições financeiras. O principal argumento é que, assim como no caso dos meios de pagamentos, a maior competição na operação das maquininhas também facilitaria a vida dos estabelecimentos e dos consumidores, com reduções significativas de cobranças de taxas.
Mas as empresas que operam os benefícios dizem que neste mercado as coisas não são tão simples assim. Isso porque não se trata apenas de um meio de pagamento, mas sim de uma política pública com regras estabelecidas há 50 anos dentro do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT). O objetivo é proporcionar alimentação saudável para 25 milhões de trabalhadores e suas famílias, bem como garantir isenção de impostos para empresas que ofereçam os benefícios.
“A solução não é simples porque o mercado é complexo e as exigências são grandes de todos os lados”, explica, Thomas Pillet, CEO da francesa Up Brasil. Segundo ele, não se trata apenas de credenciar estabelecimentos, porque eles também precisam cumprir uma série de regras do programa. Só assim os emissores garantem a utilização para o objetivo proposto. Além disso, as empresas que operam o serviço também precisam fiscalizar constantemente bares e restaurantes, ver se as questões sanitárias estão em dia e fazer um filtro de tudo que precisa ser feito para atender ao regulamento do programa, o que tem um custo.
Segundo Pillet, seria um erro tratar os benefícios como um simples pagamento, porque esse é um recurso carimbado para alimentação. “Se permitirem o uso em outras coisas podemos acabar vendo o mesmo que aconteceu com o Bolsa Família, em que as pessoas estão usando os recursos em jogos, por exemplo”, afirma.
Para o executivo, a alta da inflação tem origem em muitos fatores, como alta do dólar, problemas climáticos afetando as lavouras, entre outras coisas que estão além dos domínios do setor. “E é claro que os salários e benefícios nesse cenário não conseguem acompanhar.”
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Para a Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT), entidade que reúne as grandes empresas desse segmento, a interoperabilidade é positiva porque permite que todas as marcas de cartões de benefícios sejam aceitas em vários estabelecimentos comerciais. Desse modo, o trabalhador poderá escolher onde deseja utilizar o seu benefício com maior liberdade, aumentando a competitividade.
Já a portabilidade dos vales alimentação e refeição, além de não reduzir os preços dos alimentos, pode implicar em riscos para o sistema e mais custos para o setor. De acordo com a entidade, podem surgir problemas na obrigação legal das empresas para fiscalizar e honrar os pagamentos realizados pelo uso dos vales alimentações e refeição de seus trabalhadores junto aos estabelecimentos comerciais.
“Considerando que a portabilidade permitirá a troca de emissor independentemente do consentimento da empresa beneficiária, o risco de pagar duas vezes aumenta. Como a adesão ao PAT é facultativo, as empresas beneficiárias podem ser desestimuladas a manterem o benefício”, alerta Lucio Capelletto, diretor-presidente da ABBT.
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“A interoperabilidade eliminaria a necessidade de portabilidade. Porque a infraestrutura para a portabilidade não é barata”, avalia Eduardo del Giglio, CEO da Caju e conselheiro da Câmara Brasileira de Benefícios ao Trabalhador (CBBT).
Entenda como funciona
As empresas que oferecem o benefício alimentação podem descontar os valores gastos com tíquete do seu Imposto de Renda até o limite de 4% do total devido. O benefício tributário foi criado nos anos 1970 para incentivar a alimentação dos trabalhadores e recebeu o nome de Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT). Por isso, este mercado tem travas fixadas pelo governo, como a que obriga que as despesas sejam feitas exclusivamente em estabelecimentos cuja natureza seja para a alimentação.
Hoje, por exemplo, as empresas de tíquete cobram além da taxa de administração, uma taxa sobre a transação, outra de anuidade e outra caso o lojista queira antecipar os recebíveis que terá com as vendas em VR ou VA. Tudo isso é, indiretamente, repassado ao trabalhador no preço das refeições fora de casa.
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O assunto das mudanças começou a ser discutido após uma reunião do presidente Lula com representantes do setor de alimentos e de supermercados em novembro. Na ocasião, a Associação Brasileira dos Supermercados (Abras) apresentou uma proposta de reformulação deste mercado, que movimenta cerca de R$ 150 bilhões a R$ 200 bilhões por ano.
Segundo a entidade, que sugeriu que a Caixa, que já faz a gestão do FGTS e do Bolsa Família, também assumisse o PAT. “Isso corrigiria o desvirtuamento que as operadoras privadas deram ao benefício do governo gerando inflação de preços de alimentos e tirando o poder de compra do beneficiário”, afirmou na ocasião o presidente da Abras, João Galassi para o Estadão Conteúdo.
Quem deve fazer a regulação?
O Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) é de responsabilidade do Ministério do Trabalho, mas a pasta diz que a questão financeira deve ser tratada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Já o ministro Fernando Haddad acredita que a regulação cabe ao Banco Central. Mas o órgão de controle do sistema financeiro não concorda.
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Em normativo expedido em janeiro de 2023, o BC classificou essas empresas como não integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro, ou seja, fora do seu radar. Por tantos detalhes, a regulamentação da interoperabilidade e da portabilidade no PAT está parada há mais de dois anos.
Mesmo assim Haddad acredita que haja espaço para mexer no regulatório. A portabilidade dos vales precisaria ter uma regulação específica. “Muitas vezes o trabalhador vende aquele crédito e perde dinheiro na intermediação em função das taxas altas cobradas. Tem uma gestão da portabilidade que precisa ir à frente, está prevista em lei, mas não está funcionando por falta de regulação do BC, afirmou o ministro.
Empresas de tecnologia cobiçam este mercado
Apesar da elevada concentração nas quatro grandes empresas (VR, Alelo, Ticket e Pluxee, ex-Sodexo), o setor tem atraído atenção de fintechs, como a Caju, a Flash e o Ifood Benefícios, desde que uma lei reformulando o mercado foi aprovada em 2022. É a regulamentação dessa lei que está empacada desde então.
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Diferentemente das líderes de mercado, no negócio dessas fintechs, quem faz o credenciamento dos restaurantes e dos supermercados são empresas que já fazem isso para as maquininhas de cartão de crédito, como a Mastercard e a Visa. Exatamente por isso, essas empresas defendem que a interoperabilidade nas maquininhas ampliará a competição e reduzirá a concentração.
Mas a ABBT, que representa as grandes, diz que não é só isso, porque tem a questão da checagem e avaliações constantes dos estabelecimentos para garantir que o dinheiro seja gasto mesmo com alimentação. Por isso, a entidade defende que a regulação continue sendo feita pelo Ministério do Trabalho.
Um estudo da LCA Consultores encomendado pela Ifood Alimentação, com dados do ano passado, indica que essas duas medidas poderiam gerar uma queda nas taxas cobradas dos restaurantes e supermercados que produziria uma economia de R$ 5,21 bilhões por ano, que poderia ser repassada no preço ao consumidor.
A discussão é longa e não deve ter solução fácil e rápida. Mas o setor espera que tudo seja colocado em negociação com bastante debate sobre o assunto para não fugir do objetivo central do programa.
Procuradas pela reportagem do InfoMoney, as quatro grandes empresas do setor preferiram não falar, repassando o contato para a associação que as representa.