O que liga suposta obra de Tarsila a direito que artista e herdeiros têm e não sabem?

Direito de sequência garante a artista e herdeiros ganhos de compensação sempre que obra for revendida

Anna França

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O anúncio recente da venda de um quadro de Tarsila do Amaral (1886-1973), avaliado em R$ 16 milhões, está envolto em polêmicas: e não é por causa de seu preço de mercado. Há suspeita se a obra foi, de fato, concebida pela artista plástica, ícone do Modernismo. A dúvida acabou trazendo à tona a disputa que existe entre os herdeiros de Tarsila pelo seu legado.

A família Amaral está envolvida, há pelo menos cinco anos, em uma disputa acirrada pelo comando dos direitos autorais da pintora de Abaporu. Tarsila morreu em 1973, aos 86 anos, e não deixou filhos nem marido, os chamados herdeiros necessários.

Em 2005, seu espólio passou a ser administrado pelos sobrinhos-netos Tarsila do Amaral (a Tarsilinha), Paulo do Amaral Montenegro, Luís Paulo do Amaral e Heitor do Amaral. Juntos, eles criaram uma empresa para licenciar produtos e exposições sobre a artista e dividir os lucros entre os 57 herdeiros, conforme reportagem da “Folha de S.Paulo”.

Até 2020, Tarsilinha negociava as parcerias comerciais e exposições, atuando com o aval dos demais sócios da empresa. O dinheiro dos royalties era dividido igualmente entre os quatro, que repassavam os valores aos herdeiros. E tudo vinha dando certo.

Atualmente, a marca que leva o nome de Tarsila do Amaral é pop. Ela estampa camisetas, cadernos e chinelos, só para citar alguns produtos.

A questão começou a ficar complicada após as vendas milionárias dos quadros “A Lua” e a “A Caipirinha”, por R$ 74 milhões e R$ 57,5 milhões, respectivamente. Mesmo não fazendo mais parte do patrimônio de família, eles obtiveram resultado, recebendo uma participação garantida graças ao chamado direito de sequência. Trata-se de uma lei pela qual ao menos 5% do valor da venda de uma obra de arte deve ser revertido ao artista ou aos seus herdeiros.

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Direito de sequência: entenda o que é

O direito de sequência é um princípio legal, que confere ao autor o direito de receber uma compensação financeira sempre que sua obra de arte original for vendida subsequentemente.

Esse direito é adotado em diversos países e tem como objetivo proteger os interesses econômicos dos artistas, permitindo que eles recebam uma porcentagem do preço de revenda da obra ao longo do tempo.

De acordo com advogados especialistas na área ouvidos pelo InfoMoney, durante muitos anos, negociantes e proprietários de obras de arte deixaram de fazer os pagamentos do direito de sequência sob a alegação de que a legislação continha lacunas que impossibilitavam sua apuração.

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Por outro lado, artistas e sucessores nem sequer sabiam da existência de tal direito e, os poucos que tinham conhecimento sobre o assunto, com raras exceções, temiam partir para o embate judicial e arcar com suas consequências (como despesas judiciais e eventuais boicotes).

No Brasil, o direito de sequência está previsto na Constituição Federal, mais precisamente no artigo 5º, inciso XXVIII, e no artigo 38 da Lei nº. 9.610/98 (Lei do Direito Autoral), que prevê que “o autor tem o direito, irrenunciável e inalienável, de receber, no mínimo, cinco por cento sobre o aumento do preço eventualmente verificável em cada revenda de obra de arte ou manuscrito, sendo originais, que houver alienado. Caso o autor não perceba o seu direito de sequência no ato da revenda, o vendedor é considerado depositário da quantia a ele devida, salvo se a operação for realizada por leiloeiro, quando será este o depositário.”

Segundo a advogada Janaína De Castro Galvão, sócia na área de Contencioso Cível e Resolução de Conflitos da Innocenti Advogados, o direito de sequência se aplica a obras de arte originais, como pinturas, esculturas, gravuras, entre outras, e engloba tanto as vendidas em leilões quanto aquelas comercializadas por meio de galerias de arte ou outros meios de venda.

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“Assim, os herdeiros da artista podem buscar o pagamento pelo direito de sequência judicialmente. Mesmo que ela tenha falecido, seus herdeiros legítimos recebem a remuneração. Caso não seja pago, eles podem entrar com uma ação judicial para reivindicar esse direito”, diz Janaína.

3 pontos do direito de sequência

1. Beneficiários: o direito de sequência beneficia os artistas visuais, sejam eles pintores, escultores, gravadores, fotógrafos, entre outros, desde que sejam os criadores das obras originais.

2. Percentual da Remuneração: o artista tem direito a receber uma porcentagem do preço de revenda da obra de arte, que é calculada sobre o valor da venda realizada após a primeira feita pelo artista. O percentual pode variar, mas a legislação brasileira estabelece que não pode ser inferior a 3% nem superior a 5% do valor da obra.

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3. Limites e Prazos: o direito de sequência tem alguns limites em relação ao valor total da venda da obra e ao prazo de vigência do direito. No Brasil, o direito de sequência é limitado a um máximo de 70 anos após a morte do artista.

Mercado de arte

Paula Celano, especialista da área de Propriedade Intelectual, Life Sciences e Entretenimento do BBL Advogados, conta que esse é um mercado muito particular porque as obras de artistas renomados tendem a se tornar cada vez mais valiosas.

“A disputa entre os herdeiros da Tarsila do Amaral apenas mostra o quão economicamente expressivo é o potencial de rendimentos, seja pela exploração regular das obras, seja pelo direito de sequência, pois permite aos titulares uma remuneração continuada sobre a obra”, afirma.

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No entanto, o acompanhamento da geração da mais-valia pelo próprio autor, ou seus sucessores, é uma tarefa difícil, de acordo com o advogado Jorge Augusto Nascimento, sócio do Domingues Sociedade de Advogados (DMGSA), pois requer a comprovação através de documentos que certifiquem o valor da primeira venda da obra de arte, além de outros documentos que certifiquem os valores de alienação das revendas seguintes realizadas por terceiros.

“Algumas ações podem ajudar o autor ou seus sucessores na produção de provas para apuração do direito de sequência”, avalia o profissional. Ele cita, por exemplo, o registro da primeira venda mediante um contrato de compra e venda, bem como o acompanhamento e registro junto aos intermediadores de operações de alienações futuras da obra.

“No caso de leilão, a prova pode ser feita mediante uma certificação por ato notarial do valor da venda. No caso de venda realizada entre particulares, poderá ser proposta uma ação judicial para exibição de documentos requerendo, por exemplo, a apresentação do valor declarado à Receita Federal para a venda e a compra da obra”, afirma o especialista.

Por todas essas exigências para garantir o direito de sequência, é necessário uma administração cuidadosa e regular dos direitos autorais, que deve ser legalmente registrada e, quando necessário, defendida em disputas judiciais, segundo a advogada Daniela Poli Vlavianos, sócia do escritório Poli Advogados. “Esses processos são extensos e potencialmente custosos, sublinhando a importância de uma gestão legal competente do legado da artista”, disse.

Além disso, no mundo das artes, a comprovação de autoria de uma obra de uma artista famosa como Tarsila pode também ser alvo de controvérsias, como está acontecendo com o ultimo quadro negociado, que estava nas mãos de particulares e não fazia parte do catálogo utilizado como referência por galerias e museus.

“Nem todas as obras que são atribuídas a Tarsila são necessariamente de sua autoria. Isso ocorre devido à falta de documentação adequada da proveniência, da existência de falsificações habilidosas ou até mesmo erros em atribuições passadas. Essas questões são especialmente prevalentes no caso de artistas cujas obras alcançaram valores tão altos de mercado, exigindo verificações rigorosas por parte de especialistas para confirmar a autenticidade das peças. A atribuição correta é crucial, tanto para a integridade do mercado de arte quanto para a preservação do legado e da reputação do artista”, explica Daniela.

Para o advogado Fábio Botelho Egas, especializado em Direito Sucessório e de Família e sócio do escritório Botelho Galvão, a situação atual indica ainda que há uma confusão entre direitos societários e empresariais em relação à empresa que foi montada para administrar, e os direitos sucessórios propriamente ditos. “No meu entender, os direitos sucessórios prevalecem. Em uma hierarquia das leis, ele estaria em preferência aos direitos empresariais que derivam já de uma outra disposição dos quais me parece que a maioria dos herdeiros ficou alijada”, afirma.

Anna França

Jornalista especializada em economia e finanças. Foi editora de Negócios e Legislação no DCI, subeditora de indústria na Gazeta Mercantil e repórter de finanças e agronegócios na revista Dinheiro