Publicidade
A proposta de isenção do imposto de renda para rendimentos de até R$ 5 mil ao mês conseguiu a façanha de gerar concordância em um Brasil altamente polarizado. Na última semana, uma pesquisa da Genial/Quaest mostrou que a proposta apresentada pelo Ministério da Fazenda tem o apoio de 75% da população. Ainda assim, as medidas para estancar a perda estimada em R$ 35 bilhões geram incertezas, sobretudo com a compensação por meio do imposto mínimo para os ricos e os “super-ricos”.
“Quem tem renda superior a R$ 50 mil por mês, pagará um pouco mais”, assegurou o ministro Fernando Haddad, em pronunciamento na TV. A ideia, segundo ele, é redistribuir a carga tributária de forma progressiva, a fim de garantir que a medida não onere os cofres públicos, visto que, hoje, o limite de isenção do imposto de renda é de R$ 2.824. Se a ideia sair do papel, serão 10 milhões de contribuintes a ficarem isentos, enquanto 16 milhões pagarão menos imposto a partir de 2026.
De acordo com o chefe da equipe econômica, a medida sinaliza uma tentativa de corrigir a desigualdade no sistema tributário. Por isso, o foco dessa taxação não está sobre os rendimentos vindo dos salários, mas de lucros, dividendos e investimentos isentos. Pelos cálculos do governo, cerca de 100 mil pessoas serão atingidas pela criação de um imposto mínimo de 10% para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês.
“Anunciamos, hoje, também a maior reforma da renda de nossa história. Honrando os compromissos assumidos pelo presidente Lula, com a aprovação da reforma da renda para uma parte importante da classe média, que ganha até R$ 5 mil por mês, que não pagará mais imposto de renda.”
Reforma estrutural do imposto de renda?
Embora a promessa de campanha pareça estar, depois de dois anos de governo, finalmente saindo do papel, essa já é a realidade em sistemas tributários de alguns países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A constatação é de Sérgio Gobetti, assessor econômico da Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul (SEFAZ-RS) e pesquisador de carreira do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O autor da nota técnica Progressividade tributária: diagnóstico para uma proposta de reforma, frisa que, por aqui, os níveis de renda são tratados de maneira proporcionalmente diferentes. “Esses países usam um sistema dual: o total de tributos sobre o lucro da empresa, somado ao imposto sobre dividendos, tende a se equiparar à alíquota máxima do imposto de renda sobre salários. Isso contribui para reduzir as desigualdades”, diz Gobetti ao InfoMoney.
O economista defende que a medida proposta pelo Ministério da Fazenda vai corrigir distorções nas altas rendas. Além disso, ela deve beneficiar até mesmo rendas acima de R$ 5 mil e de até aproximadamente R$ 7 mil, que terão um desconto decrescente sobre o IR. Vale destacar, no entanto, que o texto ainda não foi apresentado pelo governo.
Continua depois da publicidade
“Embora paliativa, é uma medida necessária, principalmente em um contexto de resistências a reformas estruturais mais profundas no sistema tributário brasileiro.”
Por outro lado, o mercado financeiro permanece cético. Antes mesmo do pronunciamento de Fernando Haddad, quando rumores de que seria anunciada a isenção do IR para rendas de até R$ 5 mil, o dólar subiu 1,30%, a R$ 5,990, enquanto o principal índice da Bolsa de Valores, o Ibovespa, caiu 1,7%. Na mesma toada, outra pesquisa da Genial/Quaest revelou que 85% dos agentes do mercado consultados pelo instituto acreditam que a ampliação do limite prejudicará a economia brasileira.
Samir Choaib, responsável pelas áreas de planejamento sucessório e tributário do escritório Choaib, Paiva e Justo Advogados Associados, aponta que a proposta carece de clareza e contrapartidas. “O governo apresentou projeções de arrecadação, mencionando R$ 70 bilhões em dois anos, mas essas estimativas têm sido questionadas devido às incertezas sobre a eficácia da proposta e se a conta realmente fechará, considerando o cenário econômico e fiscal do país.”
Como está e como ficará a tributação da renda?
Ainda que concorde com medidas que promovam uma maior equidade tributária, Choaib critica a falta de respaldo técnico da proposta fiscal da equipe econômica como um todo. Vale lembrar que essas mudanças no IRPF irão tramitar em projeto de lei complementar, a partir do ano que vem no Congresso Nacional, e, caso aprovadas, só devem valer em 2026.
Continua depois da publicidade
“Para cumprir uma promessa de campanha, o governo adotou uma abordagem experimental e pouco técnica, focada no aumento de arrecadação, e sem cortar gastos. Isso gera insegurança econômica e jurídica”
José Luis Ribeiro Brazuna, advogado tributarista sócio do Bratax e professor em Direito Tributário, também critica a falta de clareza da proposta, visto que o Ministério da Fazenda não disponibilizou, junto ao pronunciamento, um texto efetivo do que será proposto ao Congresso Nacional ou por meio de medida provisória. Mas, para ele, o que pode vir está muito além de uma reforma do imposto de renda. “É mais um ‘bode na sala’ para o governo pressionar pelo fim da isenção dos dividendos, que é uma verdadeira obsessão do ministro Haddad.”
Apesar disso, Sérgio Gobetti, do Ipea, defende que a nova tabela do IR corrige distorções históricas. Atualmente, assalariados com renda de R$ 6 mil têm uma alíquota efetiva média de 12%, enquanto rendas equivalentes, provenientes de dividendos ou de investimentos como Fundos Imobiliários (FII), Letra de Crédito Imobiliário (LCI), Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) e Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), por exemplo, são isentos.
O economista destaca que, com a reforma, a tributação será progressiva, chegando efetivamente aos 10% para as rendas superiores a R$ 100 mil por mês (ou mais que R$ 1,2 milhão ao ano). “O objetivo é eliminar discrepâncias em que rendas mais altas, predominantemente compostas por dividendos, que têm alíquotas efetivas menores do que aquelas aplicadas às pessoas que vivem sobretudo de salário.”
Continua depois da publicidade
- Leia também: No topo da pirâmide de renda do Brasil, 70% do rendimento é isento e só 10%, tributável
Sobre o assunto, o Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (MADE-FEA/USP) fez as estimativas do impacto fiscal e distributivo de tais medidas. Para isso, os pesquisadores cruzaram dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) com os fornecidos pela Declaração do Imposto de Renda de Pessoa Física (DIRPF), agregada por centis (divisão da população em 100 partes iguais, ordenadas de acordo com a renda, da menor para a maior).
Eles observam que o imposto de renda, na maior parte, é progressivo, porém as alíquotas são crescentes somente até o centil 99, que contempla rendas per capita mensais de até R$ 53 mil. Com isso, quem ganha mais, paga proporcionalmente mais imposto. A partir deste ponto, porém, ela cai paulatinamente. Do 1% mais rico, que tem renda per capita média de R$ 69 mil, até ao 0,1% mais rico, cuja renda mensal pode passar de R$ 1,1 milhão, a premissa não é mais observada.
“Isso revela uma enorme desigualdade na cobrança do IRPF entre aqueles no topo da distribuição de renda brasileira. Além disso, aponta a existência de uma margem para maior tributação dos super-ricos, tendo em vista alcançar uma maior justiça tributária.”
Segundo os pesquisadores, enquanto a alíquota efetiva do centil 99 é de quase 12,5%, a do 1% como um todo é de cerca de 10% e, a do 0,1% mais rico, cai para 3,5%. Ainda assim, caso a alíquota mínima de 10% seja aplicada às grandes rendas, isso não significa que a regressividade do imposto de renda no topo seja completamente sanada.
Continua depois da publicidade
No gráfico abaixo, é possível notar que um indivíduo com renda anual igual ou superior a R$ 1,5 milhão continuará a pagar menos imposto, proporcionalmente, do que alguém que receba até R$ 14,6 mil por mês (centil 97).
Sonegação de imposto e fuga de talentos?
Apesar do apoio da população, a proposta de um imposto mínimo aos super-ricos tem gerado temores de que, se aprovada, afastará empresários e investimentos do Brasil. Sérgio Gobetti, pesquisador do Ipea, discorda. “Para onde vão fugir? Não seria para França, Reino Unido ou Estados Unidos, onde a tributação é maior do que aqui.”
Além disso, ele reforça que essa mudança não trará impactos significativos no bolso dessas pessoas. “Imagine um empresário com R$ 2 milhões de renda bruta anual, sendo R$ 400 mil de salários, por meio de pró-labore, R$ 600 mil de rendimentos, e R$ 1 milhão de dividendos. Hoje, ele paga R$ 170 mil em impostos, com uma alíquota efetiva de 8,5%. Para atingir o mínimo de 10%, pagaria mais R$ 30 mil.”
Continua depois da publicidade
Já Marcelo John, advogado tributarista do escritório Schiefler Advocacia, destaca que pode haver situações de pessoas com rendas mensais superiores a R$ 50 mil que não serão impactadas pela medida. “Se essa pessoa já contribui com uma alíquota efetiva de IR superior a 10%, não deve ser afetada e continuará recolhendo seu imposto de renda em condições semelhantes às que já faz hoje”, diz.
Mas mesmo que o impacto financeiro não venha a ser grande, Samir Choaib, do Choaib, Paiva e Justo Advogados Associados, destaca que a falta de transparência na destinação desses recursos, junto ao perfil do governo de buscar arrecadar mais do que conter os próprios gastos, gera desconfiança e até incentiva a vontade de alguns em sonegar.
Ele reconhece que nem todos os brasileiros ricos são capazes de emigrar, mas o impacto pode vir nas próximas gerações. “Jovens talentosos, filhos de famílias ricas, que têm condições de estudar no exterior, muitas vezes não retornam. Esse cenário pode reforçar essa tendência e provocar uma perda significativa de potencial inovador e de investimentos futuros no país”, alerta Choaib.