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GONÇALVES (MG) — Vinte anos atrás, ninguém entendia como a jovem negra de origem periférica já era expert na área de TI (tecnologia da informação). Hoje executiva, Nina Silva, 39, continua a sacudir as estruturas por onde passa.
Quando trabalhou na Alemanha, foi questionada por um colega (homem branco) sobre o fato de não ter se esforçado em arranjar um marido gringo, no lugar do emprego. “Sempre foi problemático aos homens entenderem como uma mulher preta entregava [projetos] melhor do que a maioria deles”, diz. “Sofri muita misoginia e racismo”.
Anos depois, já de volta ao Brasil, Nina se viu atravessada por uma inquietação comum entre as mulheres negras que estão no mercado de trabalho: a sensação de ser sempre a única na equipe.
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Dessa inquietação, surgiu o ponto de partida para um desafio:
como eu insiro pessoas negras no mercado de trabalho e garanto que elas não vão passar pelos espaços e tratamentos hostis por que passei?
A resposta se transformou num mecanismo já testado por judeus, asiáticos e afro-americanos que visa fazer circular toda a riqueza produzida entre quem pertence à comunidade.
Nascia, então, em 2017, o Movimento Black Money [dinheiro preto, em tradução livre], que se desdobrou em um banco digital e em ações educacionais para que esta parcela da população, a maioria dos brasileiros, tenha melhores condições de vida a partir da autonomia financeira.
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O movimento conecta consumidores e empresários, cujos negócios têm compromissos sólidos com a causa negra. Nina diz que o afroempreendedorismo no Brasil é, em grande parte, feminino, solitário e fortemente ligado ao comércio, à comunicação e à indústria de cuidados.
Negros têm crédito três vezes mais negado em instituições financeiras tradicionais no país, e os negócios são criados por necessidade diante da precarização das relações de trabalho e desemprego, afirma.
Na pandemia de Covid-19, a distância entre brancos e negros ganhou outras proporções, diz. Foi então que a executiva criou um projeto de transferência de renda a afroempreendedores e às famílias comandadas por mães negras solo — 400 núcleos familiares já foram beneficiados. Também desenvolveu com sua equipe um marketplace para conectar consumidores a pequenos negócios no pior momento da crise sanitária.
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Nesta longa entrevista, Nina Silva questiona o fato de a causa racial ganhar mais visibilidade em novembro por causa do Dia da Consciência Negra, celebrado neste sábado (20).
Também alfineta as empresas que fazem campanhas com pessoas negras, mas não diversificam seus quadros. “Promover a equidade racial é responsabilidade de CEO”. Para ela, é contraproducente demonizar os investimentos. “É a forma, no momento, que temos para inserir a comunidade nas regras do jogo”. Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista.
InfoMoney: Você já disse que a sociedade entendeu que o racismo existe. De que forma ele foi usado na estruturação social do Brasil?
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Nina Silva: A sociedade sempre soube que o racismo existe e, no Brasil, ela utilizou-se do racismo estrutural junto ao mito da democracia racial para tentar impedir que pessoas pretas se organizassem e lutassem de maneira mais integrada pelo ressarcimento do período histórico de escravização; pelo ressarcimento da dívida histórica da não inclusão na legislação; da não inclusão humanitária em espaços com direito à saúde, educação pública de qualidade e acesso à moradia e à alimentação digna.
Falar que o racismo não existe é apenas um fenômeno para manter as estruturas de poder racializadas. Mas não porque a sociedade não sabia. É o contrário disso. Ela utilizou-se das relações racializadas para determinar que o homem branco é o padrão de poder social e de existência; o padrão universal do que é religioso, do que é liderança política; o padrão universal de quando pensamos no mercado financeiro; padrão de quando pensamos em modernidade e empresas de tecnologia.
Essa figura muito bem ditada e muito bem reforçada e legitimada em espaços de poder só é possível nas relações institucionais e sociais alicerçadas no racismo estrutural.
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IM: Você é da área de TI, majoritariamente ocupada por homens. Como foi lidar com seus pares sendo mulher e negra? E o que você enfrentou quando virou chefe?
NS: Evidente problema era eles lidarem comigo. Sempre foi problemático para eles entenderem como uma pessoa preta, uma mulher e jovem que entregava [projetos propostos] várias vezes melhor do que a maioria, do que a média das pessoas da minha área e ainda instigava e trazia esse diálogo de ser a única ali de pele preta, de ser uma das poucas mulheres em cargos de gestão.
Sofri bastante misoginia e racismo. Eu sou especializada num sistema alemão [de TI]. Ninguém me perguntava como eu havia aprendido de maneira autodidata sem ter dinheiro para pagar um curso. Ninguém perguntava ou me aplaudia sobre isso.
O que eles faziam era questionar: por que você não foi para a Alemanha arranjar um marido já que os alemães gostam de mulher preta? Como se eu precisasse daquilo. [O que eles faziam era mais uma vez] ditar o lugar de ação ou pertencimento de pessoas pretas na sociedade.
IM: Como nasceu a ideia do Movimento Black Money no Brasil?
NS: Em 2017, entre palestras e mentorias para pessoas negras que desejavam entrar para a área de tecnologia, uma dúvida persistia: como eu insiro pessoas negras no mercado de trabalho e garanto que elas não vão passar pelos espaços e tratamentos hostis por que passei?
Foi quando conheci meu sócio, Alan Soares, que já falava do conceito e estava focado em trazer acessibilidade para nossos pares no mercado financeiro, o Movimento Black Money. Foi um telefonema de horas e, uma semana depois, o Movimento Black Money tinha site e a gente estava dando entrada no CNPJ.
O “financial” encontrou o “technology” e, assim, iniciamos para além da fintech D’Black Bank, também o ecossistema integrado com tecnologia, comunicação e educação para o desenvolvimento econômico de nossa população.
IM: Como funciona o Movimento Black Money?
NS: Fundei o Movimento Black Money, junto com meu sócio Alan Soares, há quatro anos para apoiar empreendedores pretos e pretas em seus negócios com objetivo de buscar a autonomia dessa população no Brasil. Queremos gerar nossa própria cadeia produtiva, estimulando o espírito inovador para a criação de diferenciais competitivos no mercado.
Algumas das nossas principais iniciativas são o “Mercado Black Money”, um marketplace do qual participam mais de 1.800 lojistas pretos, e o projeto “Impactando Vidas Pretas”, que capta doações financeiras com instituições privadas, editais e pessoas físicas para ajudar famílias lideradas por mães solos e afroempreendedores que foram desassistidos durante a pandemia, com transferência de renda e fomento a micro e pequenos negócios.
Temos também o “Black Bagas” que apoia grandes empresas na jornada de enegrecimento de suas ações internas e eternas, trabalhando como agência/consultoria para programas de inclusão racial do quadro colaborativo à plataforma de fornecedores.
IM: Produzir e consumir entre si é a ideia do Movimento Black Money, um “modus operandi” das comunidades judaica e asiática. Quais têm sido os desafios de fazer essa operação vingar entre o povo negro por aqui?
NS: O afroempreendedorismo no Brasil é, em sua maioria, feminino, solitário e fortemente ligado ao comércio, à comunicação e à indústria de cuidados.
Segundo o estudo “Afroempreendedorismo Brasil”, realizado pelo Movimento Black Money, apesar da alta escolaridade entre as pessoas negras (61,9% delas têm ensino superior), apenas 15,8% possuem renda familiar maior a seis salários mínimos, colocando a necessidade financeira como principal motivo para a abertura de negócios — majoritariamente micro ou de pequeno porte.
O estudo também mostrou que muitas das ideias de empreender vem de uma dor, e que as dores desses empreendedores estão ligadas à questão racial.
Afroempreendedores têm crédito três vezes mais negado em instituições financeiras tradicionais e acabam abrindo um negócio por necessidade pela precarização das relações de trabalho e desemprego. O afroempreendedorismo parte de um não lugar social e precisa da comunidade negra para desenvolvê-lo como estratégia coletiva.
IM: Empreender é, então, a estratégia de sobrevivência mais usada por pessoas negras no Brasil?
NS: Embora longe do ideal e sem apagar a realidade da maioria das pessoas negras, a taxa total de empreendedores no país entre pretos ou pardos é maior do que a de brancos.
E não sou eu quem diz isso, mas uma pesquisa do Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade (IBQP), de 2019 [levantamento mais recente].
São 39% de empreendedores totais; 23,1% de empreendedores iniciais; 15,7% de novos empreendedores; 8,1% de nascentes e 16,5% de empreendedores estabelecidos pardos ou pretos. Enquanto as taxas entre brancos chegam a 37,8%, 23,6%, 16,1%, 7,9% e 15,2%, respectivamente.
IM: As empreendedoras negras são mais afetadas do que os homens?
NS: Durante a pandemia, o setor de empreendedores mais afetado foi o de mulheres negras. Segundo dados do Sebrae, 36% delas fecharam suas empresas ou pararam seus negócios, e muitas não possuem infraestrutura para conseguir realizar serviços de delivery ou online.
A maioria empreende em serviços domésticos (que para mim não é empreendedorismo, é o jeito de o sistema não conceder proteção trabalhista para estas submetidas à precarização do trabalho).
Também se dedicam à indústria da beleza, moda e gastronomia. Outro dado assustador é que 58% das mulheres negras que buscaram crédito com bancos e instituições financeiras receberam um não. Ah, somente 25% delas tinham algum tipo de restrição de crédito, como nome no SPC ou Serasa.
IM: Quais são os desequilíbrios já mapeados entre empreendedores brancos e negros no país?
NS: Indicadores da mesma pesquisa do IBQP mostram que 27,1% dos empreendedores negros começam um negócio por necessidade, ou seja, falta emprego; enquanto outros (1,3%) dizem empreender para fazer diferença no mundo.
Na parte da renda, o estudo mostra que 20% dos pretos ou pardos ganham mais de 2 e até 3 salários mínimos; 22% recebem mais de 3 e até seis salários mínimos; e apenas 8% ganham mais de 6 salários mínimos.
Os indicadores apontam que dos 53 milhões de empreendedores do país, 51% são negros e pardos. Isto representa uma impressionante marca de 26,7 milhões de brasileiros e brasileiras.
Estima-se que 10 milhões de empreendedores encerraram suas atividades por causa da pandemia no Brasil. Infelizmente, nem 30% dos afroempreendimentos conseguem contratar uma segunda pessoa.
IM: Se o salário de pessoas negras fosse igual ao dos brancos, quais seriam os ganhos econômicos disso?
NS: Mulheres negras têm 40% da renda de um homem branco no país. Homens negros têm 55% da renda de um homem branco. Se nós tivéssemos equidade de renda sobre a raça, injetaríamos na economia brasileira cerca de R$ 800 bilhões no PIB [Produto Interno Bruto] por ano. Se nós equiparássemos o déficit de gênero, seriam mais R$ 505 bilhões por ano.
IM: Estamos vendo aumentar a participação de negros em campanhas publicitárias. Se de um lado a visibilidade é fundamental, de outro, as marcas têm sido criticadas por não promoverem mudanças profundas em inclusão e diversidade nos seus quadros. O que acha sobre o assunto?
NS: Publicidade sem ações efetivas de inserção de pessoas diversas em todas as áreas da empresa é fazer o que a gente chama de diversity washing, que é uma diversidade fake, quando uma empresa se “maquia” para poder fingir que não é mais racista. Para além do “não me vejo, não compro”, as pessoas acham que esse fenômeno é caracterizado por ter pessoas negras na publicidade.
Hoje, atrelado ao black money, “o não me vejo, não compro” está associado a quem fundou e faz a gestão da empresa. Então, se não existe uma maioria acionista preta, eu continuo não me reconhecendo nela. Uma pessoa negra em cargo de chefia, ou três, quatro gerentes negros, não vão resolver o problema e é bem menos do que uma empresa pode realizar.
É importante que essas empresas parem de propagar uma única linguagem e impacte um único público com os seus produtos. A publicidade que coloca pessoas diversas é inteligente. Não é nem sobre diretamente transferência de poder, restauração de espaços para todes.
É uma publicidade que sabe que tem público consumidor e que se esse público minimamente não tiver uma atração pelo o que está sendo ali explicitado, ele vai continuar sem conexão com essa marca. Então, ter pessoas diversas em publicidade é uma estratégia de branding. Mesmo assim, a gente acredita que é melhor ter do que não ter [pessoas negras nas campanhas]. Mas para ter, precisa que a empresa tenha um aprofundamento no quesito racial e não apenas pareça que está fazendo o que todo mundo quer e que não muda a estrutura.
IM: Quais têm sido, na sua opinião, os erros recorrentes dos gestores na inclusão de pessoas negras nos quadros das empresas?
NS: O principal erro é achar que as poucas pessoas pretas que têm na organização precisam demandar um problema histórico da companhia. E que estas pessoas pretas que não estão ali contratadas para realizar esse trabalho precisam ser Martin Luther King, Malcolm X ou Angela Davis —trabalhar dia e noite para essa inclusão que vai beneficiar principalmente a própria empresa.
Se eu sou uma pessoa negra e estou na área de contabilidade, na área de riscos de uma empresa, eu preciso fazer entregas e ter interações sobre o meu desenvolvimento de carreira. Eu posso até estar engajado num grupo de afinidade, que vai dialogar as minhas questões, mas isso não tem que estar diretamente ligado à entrega daquela pessoa preta. Só se ela foi contratada para isso ou está sendo realocada para algum projeto de inclusão racial.
Fora isso, as empresas pecam e muito em achar que a causa racial, é do negro, a de gênero, é da mulher, e não de quem detém os privilégios há tantos anos e que nem sabe no dia de hoje se levantar da cadeirinha do privilégio e colocar esse amigo ou amiga para sentar ali e começar a lidar de maneira estratégica.
IM: Na França, a área de diversidade e inclusão das empresas possui um executivo para representar cada minoria. As companhias do país também precisam apresentar um relatório anual ao governo sobre os compromissos firmados e cumpridos na diversidade de seus quadros. O que você acha do modelo francês em relação ao brasileiro?
NS: Eu acho corretíssimo, principalmente quando a gente olha os benefícios que as empresas têm e os incentivos que recebem. Precisa haver um repasse social obrigatório, sobretudo, para as empresas que estão em espaços privilegiados com monopólios e oligopólios.
IM: Você já deu muitas entrevistas neste mês? É sempre mais procurada em novembro do que no restante do ano para falar sobre a inclusão de pessoas pretas no mercado de trabalho?
NS: Sim. Dei bastante entrevista neste mês. Também é o mês em que aumenta a quantidade de trabalho em relação a palestras e treinamentos e é aquilo: alocam um budget específico, com aquele dia de reflexão, mas não trabalham a agenda a curto, médio e longo prazos com ações de continuidade.
Quando não alocam recurso, querem convidar os profissionais pretos para investir seu tempo nas palestras, sem remunerá-los, achando que visibilidade é um ganho para todas as pessoas. A gente sabe que não é: depende muito de contexto, de estratégia.
Nem sempre as instituições me contratam porque acreditam que as palestras, os treinamentos, as mentorias e o ensinamento para o homem branco tem que ser sempre gratuito e que a gente não tem outras demandas urgentes e diretas de letramento do nosso povo para realizar.
IM: Em quais aspectos o “novembrismo” (termo cunhado para concentrar a agenda da equidade racial em novembro) atrapalha iniciativas como o Movimento Black Money?
NS: Atrapalha ao acharem que, qualquer iniciativa feita no mês de novembro, já é tudo o que as grandes empresas e determinados grupos poderiam fazer no combate às desigualdades raciais. É a mesma coisa quando a gente vê pessoas que doam presentes, roupas e alimentação apenas no Natal para as famílias vulneráveis.
Quando as pessoas postam as suas hashtags contra um caso de racismo ou simplesmente falam de influenciadores e personalidades negras no dia 20 e se esquecem de propagar, seguir e consumir esses profissionais ao longo do ano, a gente vê que muito do que temos em ativismo, entre aspas, é uma busca por like e tentativa de demonstrar propósito que não está enraizado em ações concretas.
IM: O racismo e a exclusão fazem parte do capitalismo, segundo alguns críticos. O Black Money quer mudar esse jogo?
NS: Eu costumo dizer que o Black Money não é sobre direita e nem esquerda. Não é sobre fazer com que façamos a decisão se capitalismo ou socialismo é melhor para pessoas pretas. A gente ainda não está nesse lugar de mudança estrutural nem enquanto sociedade como um todo, quiçá, enquanto grupo minorizado.
Mas a gente precisa minimamente ter as nossas relações humanizadas. E se as nossas relações institucionais e sociais estão pautadas no capital, que a gente utilize dele em benefício dos nossos semelhantes, dos nossos iguais.
Quando a gente fala desse lugar capitalista, em que as pessoas acham que se falar do consumo consciente, de investir o capital financeiro, social e intelectual na comunidade negra é promover o capitalismo? Não é. É promover a possibilidade de existência dessas pessoas pretas e que elas possam minimamente estar inseridas nas regras do jogo que está sendo jogado hoje.
Raio-x
Nina Silva, 39, é CEO e uma das fundadoras do Movimento Black Money e do D’Black Bank. Executiva de TI há mais de 20 anos, é especialista em gestão de negócios e transformação digital com experiência internacional. Entre os muitos reconhecimentos recebidos, foi nomeada pela Forbes como uma das 20 mulheres mais poderosas do Brasil.
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