Como a URV serviu de ‘pílula antitrauma’ para o brasileiro aceitar a chegada do Real?

Brasileiro passou por vários tropeços econômicos até conhecer a estabilidade, com o Plano Real

Anna França

Notas de real sobrepostas (Foto: Daniel Dan/Pexels)
Notas de real sobrepostas (Foto: Daniel Dan/Pexels)

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Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano Verão, Plano Collor I (com seu traumático confisco da poupança) e Plano Collor 2. Foram tantas as tentativas de acabar com a hiperinflação que o brasileiro já não aguentava ver a disparada de preços que minava o bolso.

E quem ainda tinha algum dinheiro guardado procurava soluções para manter o poder de compra na virada de cada noite, com o chamado over night. Em quase uma década, a população já tinha passado, sem sucesso, por cinco planos de estabilização que fracassaram diante a inflação galopante.  

Abalada, a população acompanhava com desconfiança a chegada de mais um projeto do governo, o Plano Real. Com uma economia extremamente indexada, com índices medindo todo tipo de aumento de preços, não foi tão difícil para o brasileiro entender a tal da Unidade Real de Valor (URV), que obrigava as pessoas a converterem os valores levando-se em conta um novo indexador atrelado ao dólar.

Para acalmar de gaúchos a amazonenses e esclarecer dúvidas da população, o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, foi até o programa Silvio Santos, uma das maiores audiências da televisão na época para deixar claro que a mudança não resultaria em congelamento de preços ou confisco da poupança.

O descrédito do cidadão foi tamanho que muitos achavam que aquela nova aventura iria acabar dando em “água”, como aconteceu com as investidas anteriores. Porém, havia algo diferente e, conforme o tempo avançava, a economia parecia encontrar seu eixo, depois de anos sob solavancos inflacionários.

O ‘pulo do gato’ do Plano Real era que, ao contrário de todos os outros que o antecederam, não congelava preços, e assim não havia desabastecimento, segundo o professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), Simão Davi Silber. “O congelamento falha porque não deixa a economia funcionar, desorganizando o mercado. A equipe do Plano Real, no entanto, teve o cuidado de não repetir o erro e criou um indexador, a URV, que dependia da cotação do dólar. Assim, podia-se fazer contratos usando a URV, por exemplo, que era atualizada regularmente, o que, aos poucos, foi acalmando os ânimos”, explica Silber.  

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E foi assim, ao longo de quatro meses, que o brasileiro foi aprendendo a lidar com a “nova economia” e incorporando hábitos até então impossíveis, como planejar uma compra ou poupar dinheiro. “A imprevisibilidade era fatal. Havia uma incapacidade generalizada de lidar com a inércia inflacionária na época, e as pessoas se defendiam como podiam e isso ficou impregnado na memória de muitos”, explica o especialista em comportamento financeiro Aquiles Mosca, responsável pela área comercial, marketing & digital no BNP Paribas Asset Management, que em julho assume como CEO.

Por conta disso, conta Mosca, a economia da época (salários, aluguéis e contratos) era indexada à inflação. O que, de certa forma, continuava alimentando o ciclo inflacionário difícil de romper. “Quebrar essa espiral inflacionária foi a grande sacada do Plano Real, desancorando a economia da inflação e criando a URV. A partir daí seguimos com uma nova indexação e, aos poucos, a expectativa das pessoas foram melhorando, com a chegada da nova moeda, que teve paridade com o dólar por cinco anos”, diz Mosca.

Segundo o especialista em comportamento financeiro, esse período mais longo de estabilidade foi fundamental para criar nas pessoas uma nova consciência, que não mudou depois que o real foi desatrelado do dólar. “E o governo só parou quando não havia mais jeito de acompanhar o dólar, mas, em cinco anos, o cenário já tinha mudado e a economia estava estabilizada. O que não acontece na Argentina, por exemplo.”

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Mudança de comportamento

No campo do comportamental, porém, as mudanças foram mais lentas, segundo Vera Rita de Mello Ferreira, doutora em psicologia social e econômica pela PUC-SP e presidente da International Association for Research in Economic Psychology (Iarep). “A hiperinflação obrigava as pessoas a receberem o salário e sair correndo para comprar comida e garantir o preço. Por isso, não havia no Brasil o hábito de guardar dinheiro, porque senão ele perdia o valor”, explica.

Para Vera, o componente emocional mobilizou os brasileiros por tantos anos que acabou consolidando hábitos como o de ter armários grandes para a despensa ou freezer em casa. “Armazenando alimentos, tínhamos uma ilusão de que assim conseguiríamos nos proteger do aumento dos preços”, explica a autora da tese “O Componente Emocional: funcionamento mental à luz das transformações econômicas”.

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Outro ponto cristalizado na mente de muita gente foi o confisco das poupanças. O trauma foi tanto que 30 anos depois existem ainda quem lembre de casos de pessoas que perderam tudo ou até se mataram por ficar sem seu dinheiro. “O choque foi grande, mas viver sem inflação também foi chocante para muitos, que não sabiam mais viver sem os aumentos de preços contantes e o ganho no giro do dinheiro, quebrando depois da estabilidade”, afirma.

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Falta de memória

O fato de as novas gerações não terem vivido o trauma inflacionário, entre o final dos anos 80 e início dos 90, tem levado muitos a um consumismo exagerado, opina Vera.

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Mas, para Aquiles Mosca, a falta de memória não é tão prejudicial, porque as novas gerações já têm um referencial estável. “O fato de não ter uma memória inflacionária não é necessariamente negativa. Mas é claro que o mercado fica desesperado quando algum dos pés desse tripé que mantém nossa economia fica ameaçado”, diz.

Para o especialista, a pandemia trouxe muitas lições para as novas gerações, sobretudo, no que diz respeito às finanças pessoais. A capacidade do brasileiro de poupar, que era de menos de 15%, dobrou e chegou a 30% na pandemia, voltando a 18% atualmente. “Ficou claro que as despesas variáveis precisam ser controladas para poupar. Por isso, as pessoas vêm incorporando novos hábitos e houve uma explosão de influenciadores financeiros pela internet, dando vazão a uma necessidade de aprender a poupar”, acrescenta. Mas como sempre, mudar os hábitos sempre leva tempo.

Esta publicação faz parte da série 30 anos do Plano Real: Passado, presente e futuro da moeda que mudou o país, especial do InfoMoney com reportagens, entrevistas, vídeos e artigos sobre a trajetória da moeda brasileira de sua criação aos dias de hoje.

Anna França

Jornalista especializada em economia e finanças. Foi editora de Negócios e Legislação no DCI, subeditora de indústria na Gazeta Mercantil e repórter de finanças e agronegócios na revista Dinheiro