Caso Jericoacoara: pessoa física pode ser dona de praia?

Empresária alega ser dona de 80% das terras de Jericoacoara, no Ceará; Procuradoria Geral do Estado reconhece a reivindicação e está negociando um acordo

Gilmara Santos

Praia de Jericoacoara, no Ceará (Anderps
/Wikimedia Commons)
Praia de Jericoacoara, no Ceará (Anderps /Wikimedia Commons)

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Jericoacoara é um dos destinos mais cobiçados no Nordeste brasileiro, mas esse paraíso natural é alvo de uma disputa jurídica. A empresária Iracema Correia São Tiago apresentou um documento que alega a posse de 80% das terras da vila. De acordo com ela, a área, que equivale a 1.000 campos de futebol, foi adquirida em 1983 por seu ex-marido. A Procuradoria Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) reconheceu a reivindicação e está negociando um acordo para evitar a desapropriação dos moradores e estabelecimentos.

Mas, afinal, pessoa física pode ser dona de praia no Brasil? A resposta é simples: não. De acordo com a advogada Mariana Chiesa, do Manesco Advogados e professora do Insper e da Fundação Getulio Vargas, as praias são consideradas pela legislação como bens de uso comum do povo (Lei Federal 7.661/98 – Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, Constituição Federal e Código Civil).

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“Segundo o artigo 10 da Lei 7661/98, é ‘assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica’. Considera-se praia a ‘área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema. É, portanto, vedada a apropriação exclusiva das praias”, enfatiza a advogada.

Ela explica que, no caso de Jericoacara, não está se discutindo a propriedade da praia em si, mas as áreas próximas. “O governo do Estado utilizou o instituto da arrecadação de bens, antes previsto como instituto exclusivo para Estados no artigo 589 do Código Civil de 2016. Em 2002, o Código passou a prever a possibilidade de arrecadação apenas para Municípios e Distrito Federal, reduzindo de 10 para 3 anos o prazo para transferir a titularidade para o município ou Distrito Federal”, diz.

A intenção do processo de arrecadação é transferir para o Estado a propriedade de imóveis abandonados para conferir destinação à propriedade. Com a dificuldade de encontrar os proprietários em situações como essa, o Estado acaba por fazer uso de citações por editais, que tem alguma fragilidade se o proprietário conseguir demonstrar que não houve real empenho, por parte dos órgãos públicos, em encontrá-lo. “A Procuradoria optou por formalizar um acordo com a proprietária para evitar eventuais resultados piores no Judiciário, não necessariamente por concordar que há nulidade”, afirma.

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Para a advogada, será necessário analisar o acordo desenhado pela Procuradoria do Estado e a proprietária para entender melhor os impactos para as famílias e imóveis locais. “Por enquanto, a sinalização é de que todos os locais que hoje estão ocupados ou tem construções serão mantidos de forma intacta. Pode haver algum impacto mais relevante no caso do título de regularização fundiária conferido pelo Estado não ter sido levado a registro, segundo o que vem sendo noticiado. Neste caso, caberia levar a discussão ao judiciário para avaliação do dano e da indenização correspondente”, diz Mariana ao lembrar que é possível questionar judicialmente o acordo, por meio de uma série de medidas judiciais, individuais ou coletivas, a depender da demanda concreta.

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Além disso, Virgínia Machado, professora de direito público do Uniarnaldo Centro Universitário, de Belo Horizonte, comenta que há a alegação dos moradores da localidade no sentido de que não houve manifestação da propriedade durante o período de regularização fundiária que ocorreu nos anos 90.

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“Outro aspecto a se destacar é que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, em manifestação anterior, que a criação do Parque Nacional do Jericoacoara é resultado do processo de desapropriação indireta promovida pelo Estado em terrenos particulares”, diz Virgínia. “Para fins de esclarecimento a desapropriação indireta (apossamento administrativo) é uma forma de intervenção do Estado na propriedade privada na qual o Poder Público se apossa de bem privado sem seguir as formalidades legais, como por meio da declaração de interesse público e a necessidade de prévia indenização”, explica a professora.
Desta forma, diz Virgínia, caso seja reconhecida a ocorrência de desapropriação indireta, a proprietária não faria jus as terras reivindicadas por elas, mas tão somente a uma indenização. “É de se destacar que há prazo prescricional para ação indenizatória em razão da desapropriação indireta, qual seja, 10 anos, salvo quando não houver obras ou serviços públicos no local, caso em que o prazo será de 15 anos. Assim, tendo em vista o tempo em que a reinvindicação da proprietária demorou a ser feita, é bem provável que seja declarada a prescrição em eventual ação indenizatória”, finaliza a professora.

Entenda o caso

Em junho do ano passado, Iracema São Tiago apresentou a escritura pública da área ao Idace (Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará) e fez uma proposta de conciliação.

A escritura indica a compra de três terrenos que formam a Fazenda Junco I. Desses, 73,5 hectares estariam dentro da área da vila, que atualmente possui 88,2 hectares.
A proposta previa a cessão ao Estado, por parte de Iracema, das áreas com títulos até dezembro de 2022, equivalentes a 55,3 hectares (62% da vila). Em contrapartida, os demais 38% da área seriam desmembrados da vila e entregues à empresária.

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A PGE-CE reconheceu a reivindicação e está negociando um acordo para evitar a desapropriação dos moradores e estabelecimentos.

Segundo a PGE, essa solução protege as famílias que residem na região e evita que moradores sejam judicialmente obrigados a deixar suas casas.

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Gilmara Santos

Jornalista especializada em economia e negócios. Foi editora de legislação da Gazeta Mercantil e de Economia do Diário do Grande ABC