Regulação cripto branda deixa portas abertas para “nova FTX” no Brasil, diz especialista

Para professor do Ibmec, o item da segregação patrimonial abandonado pelo relator do PL cripto deixa investidores brasileiros vulneráveis

Paulo Barros

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Está prevista para esta terça-feira (29) a votação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei 4401/2021, de autoria do deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade), que visa criar um marco legal dos criptoativos no Brasil.

O PL, que estava há meses parado na Casa, voltou a ganhar força após as eleições e em meio à pressão de empresas do setor para que a discussão não fosse estendida para 2023, quando assume uma nova legislatura e alguns parlamentares que foram chave para o processo levado até aqui, como é o caso do relator do Projeto, o deputado Expedito Netto (PSD), deixam o cargo.

Neto disse na semana passada que conversou com membros do Banco Central, da Casa Civil e da Secretaria de Governo para tratar do tema, e que a votação enfim irá acontecer nesta semana. O deputado também acabou com especulações acerca de dois pontos do projeto, um deles o mais polêmico: a obrigação de corretoras de aplicarem o que se chama de segregação patrimonial.

O relator do PL garante que o ponto, que havia sido aprovado no Senado, não irá voltar ao texto mesmo depois do apelo de empresas principalmente nacionais pela sua retomada após colapso da FTX – a corretora sofreu uma corrida de saques e foi obrigada a fechar porque não tinha os depósitos de clientes.

A segregação patrimonial é um dispositivo jurídico que cria uma barreira formal para que uma empresa não use o capital dos clientes para operações próprias – nesse caso específico, evitando que corretoras de criptomoedas funcionem como bancos, usando recursos de investidores para alavancar no mercado.

Para o advogado Isac Costa, professor do MBA de Criptofinanças do Ibmec, a segregação poderia impedir casos como o da FTX, que quebrou após utilizar dinheiro de clientes em operações de crédito e acumula um passivo estimado em US$ 10 bilhões com um milhão de credores, entre eles vários brasileiros.

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“[Com a segregação patrimonial], a FTX não poderia dispor dos recursos dos clientes, que estariam em contas de depósitos submetidas a determinadas restrições. Na prática, a segregação patrimonial garante que os patrimônios sejam distintos e, diante de uma situação de insolvência, você pode pedir imediatamente a restituição do que é seu”, explica o especialista em participação no Cripto+, o programa do InfoMoney voltado para o mercado cripto (assista a íntegra no player acima).

Segundo o professor, o estado ou o próprio mercado poderia fiscalizar a segregação patrimonial de modo a evitar o mal emprego ou a apropriação indevida dos ativos de clientes depositados em corretoras de criptoativos. Ainda que essa fiscalização falhasse, avalia Costa, o dispositivo jurídico da segregação garantiria um tratamento diferenciado ao cliente de uma eventual exchange falida.

Se a segregação patrimonial fosse imposta nos mercados onde a FTX era regulada, explica, o dispositivo “inibiria a FTX de utilizar esses recursos, e provavelmente até preveniria ela de entrar em uma situação de insolvência. Em último caso, mesmo diante de uma situação de insolvência, os investidores teriam prioridade na restituição, porque eles não seriam credores”.

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O item da segregação sofre oposição de corretoras estrangeiras, que enxergam na medida um freio para inovação no setor, impedindo, por exemplo, a oferta de serviços próprios do mundo cripto, como o staking (renda passiva em criptoativos) e rendimento em protocolos DeFi. Além disso, defendem que a segregação criaria um regime de liquidez isolado no Brasil, possivelmente afetando o preço do Bitcoin.

A segregação, por outro lado, é defendida principalmente por players nacionais do mercado cripto, que ainda têm esperanças de que o item seja retomado na fase de discussão das normas infralegais pelo Banco Central, que deve ser apontado pelo Executivo como órgão supervisor do setor.

A medida, no entanto, ainda deve demorar para sair do papel, considerando o tempo para vigência da norma e o prazo para pedido de licença pelas exchanges. “Qualquer efeito prático dessa norma [de segregação patrimonial que pode ser proposta pelo BC] vai levar de um a dois anos para ser sentida, uma eternidade no mundo cripto. Se você não der uma mensagem clara agora de que não se pode usar os recursos dos clientes, tem o risco de ter uma nova FTX no Brasil”, opina o professor do Ibmec.

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Há ainda, conforme já antecipado pelo InfoMoney, a possibilidade de o plano B das corretoras brasileiras sequer dar certo, mesmo após esse prazo de dois anos, por conta da incerteza de que uma regra como a da segregação patrimonial possa ser adicionada após a aprovação da lei. Por esse motivo, avalia Costa, o marco legal dos criptoativos, no geral, gerará poucas consequências.

“No Brasil a gente tem um fetiche por lei, acha que lei pode resolver tudo. Infelizmente houve um consenso do mercado de que esse projeto deve ser aprovado de qualquer forma mesmo no estado em que ele se encontra. Talvez seja uma situação de ‘ruim com a lei, pior sem ela’. Mas é preciso ter lucidez e clareza: nada vai mudar. Nos próximos meses, essa lei vai ter pouquíssimo efeito prático na realidade”.

Paulo Barros

Jornalista pela Universidade da Amazônia, com especialização em Comunicação Digital pela ECA-USP. Tem trabalhos publicados em veículos brasileiros, como CNN Brasil, e internacionais, como CoinDesk. No InfoMoney, é editor com foco em investimentos e criptomoedas