Publicidade
O brasileiro que se acostumou rapidamente com o Pix poderá se ver em breve de frente com mais uma mudança no dinheiro: o real digital, nova versão da moeda, que está em desenvolvimento e deve ter um piloto na rua ainda no primeiro semestre de 2023 – o lançamento público pelo Banco Central está previsto para a partir de 2024.
A novidade se enquadra no que vem sendo chamado de moeda digital de banco central (CBDC, na sigla em inglês), a inovação que várias nações adotaram como prioridade após verem os avanços trazidos pelas criptomoedas e pela tecnologia blockchain.
Ao contrário do Pix, que criou um canal de pagamentos mais ágil sem mexer no mecanismo-base da moeda, o real digital tem a pretensão de implementar mudanças mais fundamentais para, dessa vez, trazer funções ainda não vistas no mercado financeiro. Se o Pix é uma evolução do TED e do DOC, o real digital não tem exatamente um paralelo com algo que já faça parte do dia-a-dia das pessoas.
O Brasil está longe de ser o único país a testar uma CBDC. De acordo com a plataforma CBDC Tracker, apoiada por organizações como Boston Consulting Group e EY para mapear as iniciativas de moeda digital no planeta, atualmente mais de 90 países têm projetos de moedas digitais em curso em diferentes estágios.
Na falta de uma padronização vinda de Basileia, onde fica o “banco central dos bancos centrais”, esses projetos ganham formas independentes, deixando cada um diferente do outro.
Inclusão financeira
Apesar da falta de padronização, há pontos em comum, e a promoção de inclusão financeira é um deles. Tirar pessoas da informalidade e levar ao setor financeiro é o principal objetivo da maioria dos projetos de CBDC em curso no mundo, especialmente em países emergentes – incluindo no Brasil.
Continua depois da publicidade
Apenas duas moedas digitais de bancos centrais já foram lançadas até agora, e ambas focam nos desbancarizados: a sand dollar, das Bahamas, onde a população está espalhada em pequenas ilhas e, por isso, tem maior necessidade de usar transações digitais; e a jam-dex, da Jamaica, onde poucas pessoas têm conta em banco.
Já na Nigéria, que está em testes avançados com a e-naira, o governo pretende proporcionar acesso a contas de pagamento por meio do smartphone.
Uma das exceções é a China, que mira resolver um problema diferente com sua moeda digital. Por lá, o principal desafio é desfazer um duopólio no setor de pagamentos digitais, dominado pelas gigantes Tencent e Alibaba. Não à toa, o país tem o maior projeto de CBDC do mundo.
Continua depois da publicidade
O yuan digital, ou e-CNY, começou a ser pensado ainda em 2014 e passa por amplos testes em diversas províncias desde 2020. Em 2023, a China passou a incluir o e-CNY nos dados de circulação de dinheiro no país pela primeira vez. Atualmente, estima-se que haja pelo 140 milhões de usuários do e-CNY, que passa de US$ 14 bilhões movimentados na fase de testes.
No entanto, apesar de ser um dos mais avançados, o projeto chinês não serve exatamente de espelho para o Banco Central na criação do real digital, hoje em fase de prova de conceito (teste de viabilidade técnica).
“Além das diferenças legais entre Brasil e China aplicáveis ao tema, a principal distinção entre os dois sistemas é quanto à categoria de serviços que se pretende disponibilizar”, explica Fábio Araújo, coordenador dos trabalhos sobre o Real Digital do Banco Central.
Continua depois da publicidade
“No caso Chinês a preocupação é reduzir a concentração de mercado observada no setor de serviços de pagamentos, já no Brasil o foco é na democratização de acesso a serviços financeiros, aprofundando a inclusão financeira”.
CBDC híbrida
O propósito do real digital é, portanto, similar ao da maioria das moedas digitais em desenvolvimento por outros países, sendo o yuan digital uma das poucas exceções. Mas, sob outros aspectos, a moeda virtual brasileira traz uma proposta distinta da maioria.
Essa diferença está ligada ao papel dos bancos. Se em países como a China o usuário poderá ter nas mãos o dinheiro emitido diretamente pelo banco central, no Brasil as instituições financeiras seguirão como intermediadoras: os bancos terão acesso direto ao real digital junto ao BC e, por sua vez, oferecerão à população tokens referentes aos depósitos bancários.
Continua depois da publicidade
Esses tokens bebem na fonte do que se chama de stablecoins, criptomoedas indexadas ao valor de um outro ativo. Assim como a maioria das stablecoins têm o valor de US$ 1, os tokens de bancos deverão valer R$ 1 de real digital depositado nas contas de clientes.
Essa proposta, elogiada mundo afora por preservar o papel dos bancos, tira parte do caráter de uma CBDC de varejo, ou seja, acessível diretamente pelo consumidor. Por outro lado, o BC defende que o real digital tampouco será uma CBDC de atacado (acessível apenas por instituições), pois seus benefícios não serão sentidos apenas pelo sistema financeiro.
“As diretrizes para a plataforma do Real Digital estabelecem o foco na prestação de serviços de varejo. Entretanto, para que os benefícios dessa nova infraestrutura sejam acessados de maneira segura e eficiente, o BC avalia que é muito importante manter sua parceria com o setor privado, mantendo o foco nas operações de atacado e deixando a atuação na prestação de serviços de varejo para agentes autorizados”, pondera Araújo.
Continua depois da publicidade
A maioria das moedas digitais desenvolvidas no mundo é enquadrada como de varejo ou de atacado. O Brasil está entre os poucos países que optam por uma abordagem híbrida. Como os brasileiros poderão acessar os serviços disponíveis para o real digital por meio de tokens de depósitos no sistema financeiro, explica Araújo, o real digital pode ser classificado uma “CBDC de atacado voltada à prestação de serviços de varejo”.
Segundo dados da plataforma CBDC Tracker, existem atualmente 14 projetos de CBDC de atacado, a maioria de países da zona do euro, como Áustria, França e Espanha, por vezes em parceria com nações de fora do bloco.
As moedas digitais de varejo dominam: 68 se enquadram nesta categoria, entre elas as desenvolvidas na Argentina, Japão e México, por exemplo. Já as híbridas são apenas oito: África do Sul, Austrália, Butão, Índia, Iraque, Taiwan e Uganda, além do Brasil.
Real digital como plataforma
Mas, afinal, que novos serviços serão esses oferecidos aos consumidores?
Essa é a resposta que o Banco Central tenta definir junto a entidades que toparam participar da fase de prova de conceito do real digital, que termina agora em fevereiro. O BC está reunindo os resultados obtidos e deve publicar um paper sobre o que cada uma consegue contribuir para um piloto que será desenhado na sequência.
“Na China, a dor é outra, na Europa também. [Por isso] os projetos de CBDCs estão cada um tomando um tom. Cada população e cada banco central tem uma dor diferente”, aponta Marcos Cavagnoli, diretor de Digital Cash Management e Open Finance do Itaú Unibanco, um dos participantes da fase de prova de conceito. “A gente vê um bom potencial [no real digital], entendendo essas visões, mas não é algo que vai ser respondido amanhã”, ressalta.
Por enquanto, o que está claro é que o BC aposta as fichas no que se chama de programabilidade do dinheiro, que envolve tornar a moeda brasileira compatível com softwares chamados contratos inteligentes (smart contracts) – hoje, essa interação é impossível com o Pix.
Mas, não é assim no resto do mundo, necessariamente: o dinheiro programável vem sendo rechaçado, por exemplo, por parlamentares europeus nas discussões em torno de um possível euro digital.
“[O euro digital] nunca será um dinheiro programável”, disse Fabio Paneta, membro do conselho do Banco Central Europeu (BCE) em audiência no Parlamento Europeu na semana passada. “O BCE não definirá limitações sobre onde, quando e para quem as pessoas podem pagar com o euro digital. Isso seria equivalente a um voucher. E bancos centrais emitem dinheiro, não vouchers”, afirmou.
O foco do real digital na programabilidade se dá pela intenção de ofertar uma nova geração de serviços financeiros. A Vert, por exemplo, testa a novidade para expandir o crédito rural, o Santander para automatizar transferência de veículos, e a Tecban como meio de deixar compras online mais seguras, para citar alguns exemplos – todos eles usam smart contracts.
Além disso, o dinheiro programável busca levar para a população as vantagens de inovações que atualmente trafegam no mundo desgovernado das finanças descentralizadas (DeFi), como a oferta de crédito entre pessoas, ou o futurístico streaming de salário.
“Mais que permitir que os participantes do sistema de pagamentos (bancos, cooperativas e IPs) emitam moeda digital lastreada em moeda do BC, a plataforma do real digital se baseia nesses tokens para a prestação de serviços ao consumidor. Assim os tokens cumprirão na plataforma do real digital a função que hoje as stablecoins cumprem no ambiente de finanças descentralizadas”, explica o economista do BC responsável pelo projeto.
Projetos de CBDC no mundo
Confira, a seguir, os principais projetos de moeda digital no planeta, em que fase de desenvolvimento estão, e se as CBDCs serão oferecidas para o usuário final (de varejo), apenas para o sistema financeiro (de atacado), ou ambos.
País/Região | Ano de anúncio | Estágio | Tipo |
África do Sul | 2022 | Pesquisa | Atacado, Varejo |
Arábia Saudita | 2019 | Piloto | Atacado |
Argentina | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Austrália | 2022 | Pesquisa | Atacado, Varejo |
Áustria | 2021 | Pesquisa | Atacado |
Azerbaijão | 2022 | Pesquisa | Indefinido |
Bahamas | 2022 | Lançado | Varejo |
Bahrein | 2018 | Pesquisa | Varejo |
Bangladesh | 2022 | Pesquisa | Indefinido |
Brasil | 2021 | Prova de conceito | Atacado, Varejo |
Butão | 2021 | Pesquisa | Atacado, Varejo |
Canadá | 2016 | Piloto | Atacado |
Catar | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Cazaquistão | 2022 | Prova de conceito | Varejo |
Chile | 2019 | Pesquisa | Varejo |
China | 2022 | Piloto | Varejo |
Cingapura | 2022 | Piloto | Atacado |
Coreia do Sul | 2020 | Prova de conceito | Varejo |
Costa do Marfim | 2022 | Pesquisa | Indefinido |
Curaçao | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Dinamarca | 2022 | Pesquisa | Atacado |
Egito | 2018 | Pesquisa | Varejo |
Emirados Árabes Unidos | 2019 | Piloto | Atacado |
Espanha | 2022 | Pesquisa | Atacado |
Estados Unidos | 2021 | Pesquisa | Indefinido |
Eswatini | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Federação Russa | 2022 | Prova de conceito | Varejo |
Fiji | 2022 | Pesquisa | Indefinido |
Filipinas | 2022 | Pesquisa | Atacado |
França | 2022 | Piloto | Atacado |
França e Cingapura | 2021 | Piloto | Atacado |
França e Suíça | 2021 | Pesquisa | Atacado |
França e Tunísia | 2021 | Piloto | Atacado |
Gana | 2021 | Piloto | Varejo |
Geórgia | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Guatemala | 2021 | Pesquisa | Varejo |
Haiti | 2020 | Pesquisa | Varejo |
Honduras | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Hong Kong | 2021 | Pesquisa | Varejo |
Hong Kong, Tailândia, China e Emirados Árabes Unidos | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Hungria | 2022 | Prova de conceito | Varejo |
Iêmen | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Ilhas Maurício | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Ilhas Salomão | 2022 | Pesquisa | Indefinido |
Índia | 2022 | Piloto | Atacado, Varejo |
Indonésia | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Irã | 2022 | Prova de conceito | Varejo |
Iraque | 2022 | Pesquisa | Atacado, Varejo |
Islândia | 2018 | Pesquisa | Varejo |
Israel | 2017 | Prova de conceito | Varejo |
Israel, Hong Kong | 2022 | Pesquisa | Indefinido |
Israel, Noruega e Suécia | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Jamaica | 2022 | Lançado | Varejo |
Japão | 2022 | Prova de conceito | Varejo |
Jordânia | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Kuwait | 2019 | Pesquisa | Varejo |
Laos | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Líbano | 2020 | Pesquisa | Varejo |
Macau | 2021 | Pesquisa | Varejo |
Madagascar | 2021 | Pesquisa | Varejo |
Malásia | 2022 | Prova de conceito | Varejo |
Marrocos | 2021 | Pesquisa | Varejo |
México | 2021 | Pesquisa | Varejo |
Mongólia | 2022 | Pesquisa | Indefinido |
Namíbia | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Nepal | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Nigéria | 2022 | Piloto | Varejo |
Noruega | 2022 | Prova de conceito | Varejo |
Nova Zelândia | 2022 | Prova de conceito | Varejo |
Omã | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Palestina | 2017 | Pesquisa | Varejo |
Paquistão | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Peru | 2022 | Prova de conceito | Varejo |
Polônia | 2017 | Pesquisa | Varejo |
Quênia | 2018 | Pesquisa | Varejo |
Reino Unido | 2018 | Pesquisa | Atacado |
República Checa | 2021 | Pesquisa | Varejo |
República de Palau | 2021 | Pesquisa | Varejo |
República Dominicana | 2022 | Pesquisa | Indefinido |
Ruanda | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Sri Lanka | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Sudão | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Suécia | 2022 | Prova de conceito | Varejo |
Suíça | 2020 | Pesquisa | Atacado |
Tailândia | 2022 | Prova de conceito | Varejo |
Taiwan | 2020 | Prova de conceito | Atacado, Varejo |
Tanzânia | 2021 | Pesquisa | Varejo |
Tonga | 2021 | Pesquisa | Indefinido |
Trindade e Tobago | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Tunísia | 2019 | Pesquisa | Varejo |
Ucrânia | 2017 | Prova de conceito | Varejo |
Uganda | 2022 | Pesquisa | Atacado, Varejo |
União Econômica e Monetária do Caribe Oriental (OECS/ECCU) | 2022 | Piloto | Varejo |
Uruguai | 2014 | Piloto | Varejo |
Vanuatu | 2021 | Pesquisa | Indefinido |
Vietnã | 2021 | Pesquisa | Varejo |
Zâmbia | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Zimbábue | 2022 | Pesquisa | Varejo |
Zona Euro | 2022 | Pesquisa | Varejo |