Real digital vem aí: qual é a diferença para moedas digitais de outros países

Atualmente, mais de 90 países têm projetos de CBDC em diferentes estágios e com desenhos distintos; veja lista

Paulo Barros

(Eduardo Soares/Unsplash)
(Eduardo Soares/Unsplash)

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O brasileiro que se acostumou rapidamente com o Pix poderá se ver em breve de frente com mais uma mudança no dinheiro: o real digital, nova versão da moeda, que está em desenvolvimento e deve ter um piloto na rua ainda no primeiro semestre de 2023 – o lançamento público pelo Banco Central está previsto para a partir de 2024.

A novidade se enquadra no que vem sendo chamado de moeda digital de banco central (CBDC, na sigla em inglês), a inovação que várias nações adotaram como prioridade após verem os avanços trazidos pelas criptomoedas e pela tecnologia blockchain.

Ao contrário do Pix, que criou um canal de pagamentos mais ágil sem mexer no mecanismo-base da moeda, o real digital tem a pretensão de implementar mudanças mais fundamentais para, dessa vez, trazer funções ainda não vistas no mercado financeiro. Se o Pix é uma evolução do TED e do DOC, o real digital não tem exatamente um paralelo com algo que já faça parte do dia-a-dia das pessoas.

O Brasil está longe de ser o único país a testar uma CBDC. De acordo com a plataforma CBDC Tracker, apoiada por organizações como Boston Consulting Group e EY para mapear as iniciativas de moeda digital no planeta, atualmente mais de 90 países têm projetos de moedas digitais em curso em diferentes estágios.

Na falta de uma padronização vinda de Basileia, onde fica o “banco central dos bancos centrais”, esses projetos ganham formas independentes, deixando cada um diferente do outro.

Inclusão financeira

Apesar da falta de padronização, há pontos em comum, e a promoção de inclusão financeira é um deles. Tirar pessoas da informalidade e levar ao setor financeiro é o principal objetivo da maioria dos projetos de CBDC em curso no mundo, especialmente em países emergentes – incluindo no Brasil.

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Apenas duas moedas digitais de bancos centrais já foram lançadas até agora, e ambas focam nos desbancarizados: a sand dollar, das Bahamas, onde a população está espalhada em pequenas ilhas e, por isso, tem maior necessidade de usar transações digitais; e a jam-dex, da Jamaica, onde poucas pessoas têm conta em banco.

Já na Nigéria, que está em testes avançados com a e-naira, o governo pretende proporcionar acesso a contas de pagamento por meio do smartphone.

Uma das exceções é a China, que mira resolver um problema diferente com sua moeda digital. Por lá, o principal desafio é desfazer um duopólio no setor de pagamentos digitais, dominado pelas gigantes Tencent e Alibaba. Não à toa, o país tem o maior projeto de CBDC do mundo.

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O yuan digital, ou e-CNY, começou a ser pensado ainda em 2014 e passa por amplos testes em diversas províncias desde 2020. Em 2023, a China passou a incluir o e-CNY nos dados de circulação de dinheiro no país pela primeira vez. Atualmente, estima-se que haja pelo 140 milhões de usuários do e-CNY, que passa de US$ 14 bilhões movimentados na fase de testes.

No entanto, apesar de ser um dos mais avançados, o projeto chinês não serve exatamente de espelho para o Banco Central na criação do real digital, hoje em fase de prova de conceito (teste de viabilidade técnica).

“Além das diferenças legais entre Brasil e China aplicáveis ao tema, a principal distinção entre os dois sistemas é quanto à categoria de serviços que se pretende disponibilizar”, explica Fábio Araújo, coordenador dos trabalhos sobre o Real Digital do Banco Central.

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“No caso Chinês a preocupação é reduzir a concentração de mercado observada no setor de serviços de pagamentos, já no Brasil o foco é na democratização de acesso a serviços financeiros, aprofundando a inclusão financeira”.

CBDC híbrida

O propósito do real digital é, portanto, similar ao da maioria das moedas digitais em desenvolvimento por outros países, sendo o yuan digital uma das poucas exceções. Mas, sob outros aspectos, a moeda virtual brasileira traz uma proposta distinta da maioria.

Essa diferença está ligada ao papel dos bancos. Se em países como a China o usuário poderá ter nas mãos o dinheiro emitido diretamente pelo banco central, no Brasil as instituições financeiras seguirão como intermediadoras: os bancos terão acesso direto ao real digital junto ao BC e, por sua vez, oferecerão à população tokens referentes aos depósitos bancários.

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Esses tokens bebem na fonte do que se chama de stablecoins, criptomoedas indexadas ao valor de um outro ativo. Assim como a maioria das stablecoins têm o valor de US$ 1, os tokens de bancos deverão valer R$ 1 de real digital depositado nas contas de clientes.

Essa proposta, elogiada mundo afora por preservar o papel dos bancos, tira parte do caráter de uma CBDC de varejo, ou seja, acessível diretamente pelo consumidor. Por outro lado, o BC defende que o real digital tampouco será uma CBDC de atacado (acessível apenas por instituições), pois seus benefícios não serão sentidos apenas pelo sistema financeiro.

“As diretrizes para a plataforma do Real Digital estabelecem o foco na prestação de serviços de varejo. Entretanto, para que os benefícios dessa nova infraestrutura sejam acessados de maneira segura e eficiente, o BC avalia que é muito importante manter sua parceria com o setor privado, mantendo o foco nas operações de atacado e deixando a atuação na prestação de serviços de varejo para agentes autorizados”, pondera Araújo.

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A maioria das moedas digitais desenvolvidas no mundo é enquadrada como de varejo ou de atacado. O Brasil está entre os poucos países que optam por uma abordagem híbrida. Como os brasileiros poderão acessar os serviços disponíveis para o real digital por meio de tokens de depósitos no sistema financeiro, explica Araújo, o real digital pode ser classificado uma “CBDC de atacado voltada à prestação de serviços de varejo”.

Segundo dados da plataforma CBDC Tracker, existem atualmente 14 projetos de CBDC de atacado, a maioria de países da zona do euro, como Áustria, França e Espanha, por vezes em parceria com nações de fora do bloco.

As moedas digitais de varejo dominam: 68 se enquadram nesta categoria, entre elas as desenvolvidas na Argentina, Japão e México, por exemplo. Já as híbridas são apenas oito: África do Sul, Austrália, Butão, Índia, Iraque, Taiwan e Uganda, além do Brasil.

Real digital como plataforma

Mas, afinal, que novos serviços serão esses oferecidos aos consumidores?

Essa é a resposta que o Banco Central tenta definir junto a entidades que toparam participar da fase de prova de conceito do real digital, que termina agora em fevereiro. O BC está reunindo os resultados obtidos e deve publicar um paper sobre o que cada uma consegue contribuir para um piloto que será desenhado na sequência.

“Na China, a dor é outra, na Europa também. [Por isso] os projetos de CBDCs estão cada um tomando um tom. Cada população e cada banco central tem uma dor diferente”, aponta Marcos Cavagnoli, diretor de Digital Cash Management e Open Finance do Itaú Unibanco, um dos participantes da fase de prova de conceito. “A gente vê um bom potencial [no real digital], entendendo essas visões, mas não é algo que vai ser respondido amanhã”, ressalta.

Por enquanto, o que está claro é que o BC aposta as fichas no que se chama de programabilidade do dinheiro, que envolve tornar a moeda brasileira compatível com softwares chamados contratos inteligentes (smart contracts) – hoje, essa interação é impossível com o Pix.

Mas, não é assim no resto do mundo, necessariamente: o dinheiro programável vem sendo rechaçado, por exemplo, por parlamentares europeus nas discussões em torno de um possível euro digital.

“[O euro digital] nunca será um dinheiro programável”, disse Fabio Paneta, membro do conselho do Banco Central Europeu (BCE) em audiência no Parlamento Europeu na semana passada. “O BCE não definirá limitações sobre onde, quando e para quem as pessoas podem pagar com o euro digital. Isso seria equivalente a um voucher. E bancos centrais emitem dinheiro, não vouchers”, afirmou.

O foco do real digital na programabilidade se dá pela intenção de ofertar uma nova geração de serviços financeiros. A Vert, por exemplo, testa a novidade para expandir o crédito rural, o Santander para automatizar transferência de veículos, e a Tecban como meio de deixar compras online mais seguras, para citar alguns exemplos – todos eles usam smart contracts.

Além disso, o dinheiro programável busca levar para a população as vantagens de inovações que atualmente trafegam no mundo desgovernado das finanças descentralizadas (DeFi), como a oferta de crédito entre pessoas, ou o futurístico streaming de salário.

“Mais que permitir que os participantes do sistema de pagamentos (bancos, cooperativas e IPs) emitam moeda digital lastreada em moeda do BC, a plataforma do real digital se baseia nesses tokens para a prestação de serviços ao consumidor. Assim os tokens cumprirão na plataforma do real digital a função que hoje as stablecoins cumprem no ambiente de finanças descentralizadas”, explica o economista do BC responsável pelo projeto.

Projetos de CBDC no mundo

Confira, a seguir, os principais projetos de moeda digital no planeta, em que fase de desenvolvimento estão, e se as CBDCs serão oferecidas para o usuário final (de varejo), apenas para o sistema financeiro (de atacado), ou ambos.

País/Região Ano de anúncio Estágio Tipo
África do Sul 2022 Pesquisa Atacado, Varejo
Arábia Saudita 2019 Piloto Atacado
Argentina 2022 Pesquisa Varejo
Austrália 2022 Pesquisa Atacado, Varejo
Áustria 2021 Pesquisa Atacado
Azerbaijão 2022 Pesquisa Indefinido
Bahamas 2022 Lançado Varejo
Bahrein 2018 Pesquisa Varejo
Bangladesh 2022 Pesquisa Indefinido
Brasil 2021 Prova de conceito Atacado, Varejo
Butão 2021 Pesquisa Atacado, Varejo
Canadá 2016 Piloto Atacado
Catar 2022 Pesquisa Varejo
Cazaquistão 2022 Prova de conceito Varejo
Chile 2019 Pesquisa Varejo
China 2022 Piloto Varejo
Cingapura 2022 Piloto Atacado
Coreia do Sul 2020 Prova de conceito Varejo
Costa do Marfim 2022 Pesquisa Indefinido
Curaçao 2022 Pesquisa Varejo
Dinamarca 2022 Pesquisa Atacado
Egito 2018 Pesquisa Varejo
Emirados Árabes Unidos 2019 Piloto Atacado
Espanha 2022 Pesquisa Atacado
Estados Unidos 2021 Pesquisa Indefinido
Eswatini 2022 Pesquisa Varejo
Federação Russa 2022 Prova de conceito Varejo
Fiji 2022 Pesquisa Indefinido
Filipinas 2022 Pesquisa Atacado
França 2022 Piloto Atacado
França e Cingapura 2021 Piloto Atacado
França e Suíça 2021 Pesquisa Atacado
França e Tunísia 2021 Piloto Atacado
Gana 2021 Piloto Varejo
Geórgia 2022 Pesquisa Varejo
Guatemala 2021 Pesquisa Varejo
Haiti 2020 Pesquisa Varejo
Honduras 2022 Pesquisa Varejo
Hong Kong 2021 Pesquisa Varejo
Hong Kong, Tailândia, China e Emirados Árabes Unidos 2022 Pesquisa Varejo
Hungria 2022 Prova de conceito Varejo
Iêmen 2022 Pesquisa Varejo
Ilhas Maurício 2022 Pesquisa Varejo
Ilhas Salomão 2022 Pesquisa Indefinido
Índia 2022 Piloto Atacado, Varejo
Indonésia 2022 Pesquisa Varejo
Irã 2022 Prova de conceito Varejo
Iraque 2022 Pesquisa Atacado, Varejo
Islândia 2018 Pesquisa Varejo
Israel 2017 Prova de conceito Varejo
Israel, Hong Kong 2022 Pesquisa Indefinido
Israel, Noruega e Suécia 2022 Pesquisa Varejo
Jamaica 2022 Lançado Varejo
Japão 2022 Prova de conceito Varejo
Jordânia 2022 Pesquisa Varejo
Kuwait 2019 Pesquisa Varejo
Laos 2022 Pesquisa Varejo
Líbano 2020 Pesquisa Varejo
Macau 2021 Pesquisa Varejo
Madagascar 2021 Pesquisa Varejo
Malásia 2022 Prova de conceito Varejo
Marrocos 2021 Pesquisa Varejo
México 2021 Pesquisa Varejo
Mongólia 2022 Pesquisa Indefinido
Namíbia 2022 Pesquisa Varejo
Nepal 2022 Pesquisa Varejo
Nigéria 2022 Piloto Varejo
Noruega 2022 Prova de conceito Varejo
Nova Zelândia 2022 Prova de conceito Varejo
Omã 2022 Pesquisa Varejo
Palestina 2017 Pesquisa Varejo
Paquistão 2022 Pesquisa Varejo
Peru 2022 Prova de conceito Varejo
Polônia 2017 Pesquisa Varejo
Quênia 2018 Pesquisa Varejo
Reino Unido 2018 Pesquisa Atacado
República Checa 2021 Pesquisa Varejo
República de Palau 2021 Pesquisa Varejo
República Dominicana 2022 Pesquisa Indefinido
Ruanda 2022 Pesquisa Varejo
Sri Lanka 2022 Pesquisa Varejo
Sudão 2022 Pesquisa Varejo
Suécia 2022 Prova de conceito Varejo
Suíça 2020 Pesquisa Atacado
Tailândia 2022 Prova de conceito Varejo
Taiwan 2020 Prova de conceito Atacado, Varejo
Tanzânia 2021 Pesquisa Varejo
Tonga 2021 Pesquisa Indefinido
Trindade e Tobago 2022 Pesquisa Varejo
Tunísia 2019 Pesquisa Varejo
Ucrânia 2017 Prova de conceito Varejo
Uganda 2022 Pesquisa Atacado, Varejo
União Econômica e Monetária do Caribe Oriental (OECS/ECCU) 2022 Piloto Varejo
Uruguai 2014 Piloto Varejo
Vanuatu 2021 Pesquisa Indefinido
Vietnã 2021 Pesquisa Varejo
Zâmbia 2022 Pesquisa Varejo
Zimbábue 2022 Pesquisa Varejo
Zona Euro 2022 Pesquisa Varejo
*Fonte: CBDC Tracker

Paulo Barros

Jornalista pela Universidade da Amazônia, com especialização em Comunicação Digital pela ECA-USP. Tem trabalhos publicados em veículos brasileiros, como CNN Brasil, e internacionais, como CoinDesk. No InfoMoney, é editor com foco em investimentos e criptomoedas