Como o Plano Real transformou a Bolsa de Valores e criou a base para o Novo Mercado

Com a estabilização moeda, a Bolsa passou a ser opção de captação para as empresas e de melhor investimento aos acionistas

Rodrigo Petry

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Quando o país era assolado pela hiperinflação, no início dos anos 90, a análise dos resultados das empresas de capital aberto era bem diferente dos moldes atuais – após 30 anos de Plano Real. As “blue chips” da bolsa brasileira – maiores empresas em termos de capitalização –, enquanto isso, eram companhias bem distintas, em 1994, frente às atuais, pertencentes a setores como o de telefonia, por exemplo.

Com inflação galopante, outro fator chamava muito atenção: não era o desempenho operacional, vindo da fabricação, do desenvolvimento ou das vendas em si de produtos ou serviços que garantia o resultado positivo ou negativo no balanço das empresas, mas sim a performance financeira.

Ou seja, o lucro ou o prejuízo das empresas, em certo período, era determinado, basicamente, pelas operações de tesouraria das companhias. Esses departamentos, portanto, que funcionavam como “bancos”, dentro das empresas, precisavam fazer uma gestão ágil e rigorosa das receitas e das despesas financeiras para evitar a desvalorização dos ativos e do capital de giro, por conta da inflação.

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Além disso, as estratégias comerciais eram desenhadas para maximizar o fluxo de caixa, como forma de reinvestir o faturamento obtido antes da desvalorização de seu valor nominal. Tudo isso, evidentemente, prejudicava a precificação dos produtos – que chegavam a ser vendidos com prejuízo (como em supermercados), para que sua receita fosse aplicada, o mais rápido possível. A eficiência operacional das empresas, dessa forma, era sacrificada em detrimento da proteção financeira.

Plano Real e evolução da Bolsa de Valores

O quadro desenhado acima pode parecer totalmente insano, nos dias atuais, mas era o que os corajosos – e poucos, mas sofisticados – investidores brasileiros encontravam ao aplicarem seus recursos nas empresas listadas nas bolsas do país, há cerca de 30 anos. Até os anos 90, além da Bovespa (hoje B3), em São Paulo, existiam outras bolsas regionais, porém apenas a do Rio, que encerrou suas atividades no começo dos anos 2000, também era relevante, como alternativa viável de investimento.

O mercado de capitais, nessa época, não se desenvolvia apenas por conta da hiperinflação, mas também pelo fato de a economia brasileira ser fechada (com barreiras tarifárias, controle de capitais e subsídios à indústria nacional). As recorrentes crises econômicas também ajudavam na baixa capitalização e na falta de liquidez dos ativos. 

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Tudo isso levava a uma estagnação do mercado de capitais, como forma de financiamento das empresas. 

“No período de alta inflação, o que realmente movimentava a capitalização das empresas era o aumento do endividamento”, contou, ao InfoMoney, o economista José Roberto Mendonça de Barros, fundador da MB Associados. A consultoria de Mendonça de Barros, que foi secretário de política econômica do Ministério da Fazenda entre 1995 e 1998, desenvolveu um estudo, publicado em junho de 2000, com o diagnóstico e as oportunidades para o mercado de capitais no Brasil na época – e que serviu de base para a criação do Novo Mercado.

De acordo com ele, as necessidades de investimentos das empresas eram atendidas por recursos (via dívida) do BNDES, incentivos fiscais ou fundos com algum grau de subsídio, ou ainda por lucros retidos. Essa era a forma, “mais barata”, de se capitalizarem.  

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Controlador definido – geralmente, famílias

Também impedia o crescimento do mercado de capitais o fato de a imensa maioria das empresas ter um controlador definido, mesmo este grupo – geralmente familiar – contando com apenas pouco mais de um sexto do capital da companhia. Essa regra fazia parte da Lei das Sociedades Anônimas, criada nos anos 70, para “driblar” a “escassez de recursos” para as empresas, sem que o “controlador” (uma família, na maior parte das vezes) deixasse de exercer tal poder, mesmo não tendo a maioria das ações.

No caso, as regras, da época, previam que um terço do capital da empresa poderia ser de ações ordinárias (de controle) e os outros dois terços, de ações preferenciais. Assim, os acionistas minoritários adquiriam até 66,6% do capital, sem direito a se manifestar sobre as decisões das companhias. 

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“Essa foi a solução criada para os donos das empresas controlarem a companhia detendo apenas uma pedaço do capital, de pouco mais de 16% das ordinárias”, disse Mendonça de Barros. “Obviamente, isso foi desenhado para ‘economizar’ capital”, explicou.

Entretanto, isso gerava enormes problemas: “os minoritários eram muito maltratados. Tinham a preferência na distribuição do resultado, mas, em um cenário inflacionário, bastava atrasar a distribuição do dividendo que ele (o provento) perdia o seu valor”, relembra.

Oportunidade com o Plano Real

Um dos efeitos indiretos do Plano Real foi que, com a queda da inflação, abriu-se a oportunidade de investimentos nas empresas, já que as companhias passaram a crescer (em termos de receita) muito mais rapidamente. 

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Antes, com a inflação elevada, o foco das companhias eram as operações de curto prazo. “A (área de) tesouraria era mais importante do que a de desenvolvimento de produtos”, detalha o economista. 

“Com o real bem-sucedido, antevia-se a possibilidade de aumento da base de aplicações para investimentos, via renda variável, em ativos de riscos… Até porque o financiamento (por parte das empresas), com recursos subsidiados, tinha ficado para trás; era um ‘filho’ da inflação alta”, complementa Mendonça de Barros.

Fundos de pensão

Além do próprio fato da estabilização da moeda, outro fator ocorria, globalmente, no universo dos investimentos: o crescimento dos grandes fundos de pensão. Estes, eram grandes e perenes investidores de longo prazo, que passaram a fornecer capital de longo prazo para companhias ao redor do mundo.

“Existia uma oportunidade histórica, datada, para que as empresas tivessem um salto no funding (captação de recursos), com a possibilidade desses investimentos, de longo prazo, por parte dos fundos de pensão”, acrescenta o economista. Assim, as empresas deixaram de ser dependentes, tão apenas dos financiamentos, a taxas subsidiadas, do BNDES. 

Por outro lado, esses investidores de longo prazo, que visam aplicações com horizonte de retorno em uma década, por exemplo, exigiam, como contrapartida, uma maior transparência das companhias, na divulgação e na qualidade das informações do balanço. Dessa forma, evitariam riscos de investimentos em empresas com administração e resultados ruins.

Novo Mercado

Foi a partir daí que se desenvolveram as bases e a necessidade da criação do Novo Mercado, com objetivo de trazer companhias que prezassem pela transparência das informações financeiras e operacionais. Ou seja, foram os primeiros passos da Governança Corporativa nas empresas.  

Uma das contribuições do estudo da MB Associados foi a busca de exemplos internacionais, como o do Neuer Market, da Alemanha, criado em 1997 e que, em três anos, registrou a abertura de capital de 200 empresas. Na época, o mercado acionário alemão era o quarto maior do mundo.

A ideia da governança nas empresas, portanto, nasceu nessa época e se consolidou no exterior, nesse período – dos primeiros anos do Plano Real. A maioria dos mercados contava com empresas públicas, mas, diferente do Brasil, sem ter um controlador definido, da forma como acontecia por aqui. Por isso, para crescer, a bolsa brasileira precisava evoluir.

Conforme Mendonça de Barros, o mercado de capitais no Brasil, então, passou a ser uma possibilidade de financiamento de longo prazo, já que, com a inflação baixa, havia a expectativa de crescimento mais acelerado das empresas. 

“O Neuer Market, que até depois desapareceu, era um exemplo de ideia, em termos internacionais, de uma seleção de empresas de crescimento e com governança”, disse, citando que muitas startups israelenses, tecnológicas, se capitalizaram, listando suas ações na Alemanha.

Avanço lento

Como tudo no Brasil é difícil, o Novo Mercado, porém, demorou a engrenar. Lançado em 2000, contou com sua primeira empresa apenas em 2002, no caso a CCR (CCRO3). Depois, em 2004, veio a Natura (NTCO3).

Em parte, essa demora ocorreu, segundo conta Mendonça de Barros, pela tradição de controle familiar das empresas, onde o “minoritário que se acomode, ou vá embora”. “Vender ações na bolsa passou a ser uma possibilidade (de captação para as empresas), assim como para as pessoas físicas, de investimento em renda variável. Só que as companhias precisavam mudar. Mesmo mantendo controle, deveriam adotar uma governança com os minoritários.”

Enquanto isso, outra alteração que ocorreu na época para incentivar o mercado de capitais foi a criação, na esfera jurídica, da arbitragem, para solução de controvérsias. 

Índices de governança

A inclusão das empresas no Novo Mercado exige uma série de contrapartidas, por parte delas, como, por exemplo, a emissão apenas de ações ordinárias (ON), que possibilitam o direito ao voto e a participação dos acionistas minoritários nas decisões das empresas. 

Segundo a B3, desde a sua criação, o Novo Mercado passou por revisões em 2006, 2011, 2018 e, recentemente, em 2023. Ano passado, os regulamentos dos segmentos especiais de listagem – Nível 1, Nível 2 e Novo Mercado – foram alterados, visando melhorar as regras de liquidez. 

Atualmente, cerca de 190 empresas estão listadas nos diversos segmentos do Novo Mercado. Elas, inclusive, são listadas em índices específicos, como é o caso do IGC (Governança Diferenciada), ITAG (com Tag Along diferenciado), IGCT (governa corporativa trade) e IGC-NM (governança corporativa – Novo Mercado). 

“O Novo Mercado foi uma resposta, historicamente ajustada, às mudanças do mundo naquela época (final dos anos 90), por mais transparência, mas também à estabelecida pelo Plano Real. A pessoa física passou a participar mais do mercado e os abusos dos controladores foram reduzidos”, analisa Mendonça de Barros.

Blue chips

Outro fator, historicamente, que chama a atenção é o perfil das companhias. Durante os seis primeiros meses do Plano Real, no segundo semestre de 1994, a principal companhia da bolsa era a Telebras, segundo levantamento da Alos Ayta, feito a pedido do InfoMoney

A velha estatal foi desmembrada em várias operações, durante o processo de privatização do setor de telefonia, em 1998. Outras companhias, porém, seguem bem ativas, como Petrobras (PETR4) e Vale (VALE3), assim como Eletrobras (ELET3), Cemig (CMIG4), Usiminas (USIM5) e CSN (CSNA3). Nesses 30 anos, quem ganhou relevância, principalmente, foi o setor bancário. 

Ações mais negociadas da Bolsa no começo do Plano Real. Fonte: Alos Ayta

Sobre a Telebras ser a empresa mais negociada da Bolsa, naquela época, a resposta para sua enorme liquidez encontrava-se na escassez de telefones fixos, que eram vendidos no mercado paralelo por até US$ 10 mil – em uma época em que não existiam celulares no Brasil.

Entretanto, anos depois, com o avanço tecnológico, as plantas de telefonia fixa foram perdendo espaço. Segundo dados da consultoria Teleco, em abril deste ano, eram 23 milhões de linhas fixas de telefonia no Brasil. Isso representou uma queda de 11% em um ano. Já a telefonia móvel avançou, no mesmo período, 3%, para 258,9 milhões – ou seja, o país tem mais de uma linha por habitante.

Estagnação tecnológica e do PIB

Por fim, Mendonça de Barros aproveitou o exemplo da telefonia para explicar, em parte, as razões da disparada dos preços, causando a hiperinflação, dos anos 80 até o Plano Real, bem como a recessão econômica.

“À medida que a inflação foi disparando, o sistema econômico passou a se guiar para sobreviver à hiperinflação – e não para inovar tecnologicamente, fazer investimentos, como um país normal. Do ponto de vista micro, estagnamos.” 

Isso, de certa forma, acrescenta ele, existia praticamente todos os setores da economia, que sofriam severas  “disfunções econômicas”. “Não foi por acaso que não crescemos nos anos 80”, finalizou o economista.

Esta publicação faz parte da série 30 anos do Plano Real: Passado, presente e futuro da moeda que mudou o país, especial do InfoMoney com reportagens, entrevistas, vídeos e artigos sobre a trajetória da moeda brasileira de sua criação aos dias de hoje.