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Colunista convidado: Carlos Augusto Junqueira de Siqueira, advogado e autor dos livros “Transferência do Controle Acionário” e “Fechamento do Capital Social”.
Não, não se trata de rombo no sentido financeiro, análogo às atualmente denominadas malfeitorias no serviço público associado ao setor privado. Longe disso. O rombo do título refere-se ao capital intelectual acumulado pela autarquia desde sua criação e, hoje, ao que vemos, em grande parte abandonado.
O tema vem a propósito de matéria veiculada na revista “Dinheiro” [edição 12.11.14] sob o título “O Xerife em Xeque”. Tratando de processos sancionadores julgados pela Comissão de Valores Mobiliários [CVM], a abordagem é crítica e, até aí, nenhuma novidade. Incomum é o fato de dirigente do órgão destacar aspectos negativos dos quadros da CVM e, especialmente, a necessidade de capacitar melhor os técnicos da autarquia.
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Capacitação é sempre útil e bem vinda. O que causa espécie é a exposição pública de assuntos domésticos, com o Colegiado sendo apresentado como guardião da sapiência. Afinal, a maioria dos técnicos encontra-se lá há mais tempo que os diretores e não há porque considerá-los menos dotados tecnicamente, até mesmo por conhecerem um acervo maior de casos. A atitude enfraquece a instituição e sempre poderá ser usada como argumento para desqualificar entendimentos futuros.
Uma boa forma de capacitação é a presença em reuniões com os agentes externos. A troca de argumentos enriquece e alavanca a aprendizagem. Outra, a delegação de competências – um Colegiado centralizador, e não falo do atual especificamente, inibe a iniciativa e o surgimento de lideranças.
O Colegiado tem espaço como segunda instância decisória, atuando muitas vezes com sensibilidade política que não cabe ao corpo técnico. Assim era antigamente, assim foi ensinado nos primórdios da autarquia. Atualmente, os diretores têm mandato fixo e, ao sair da CVM, eventualmente buscam colocação no setor privado.
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Se o objetivo é a melhoria da qualidade, a crítica, publicamente formulada, não configura um bom começo. Por conta da insatisfação de alguns, submetidos a um regime de fiscalização que lhes desagrada, enquanto outros reclamam atuação mais incisiva da CVM em casos recentes de grande repercussão, promove-se um desmerecimento indevido do trabalho produzido por seu corpo técnico, exatamente quando os prejuízos se avolumaram com a queda generalizada do mercado. Faz parte e, a propósito, bom bode, isto é, cabrito, não berra.
A história tropeça na leitura dos votos referentes aos processos citados na matéria publicada, que não corroboram, nem confirmam a existência de problemas como despreparo ou imperícia. Ao contrário. Dois julgamentos foram focalizados, ambos relacionados a eventuais práticas de insider trading. Um, envolvendo o Banco BTG Pactual S.A. e negociações com ações de emissão da companhia CCX Carvão Colômbia S.A. do empresário Eike Batista. No outro, segundo entendeu o Colegiado, acionistas controladores da Brasil Brokers Participações S.A. negociaram com ações de própria emissão, detendo informação ainda não divulgada ao público.
Não tenho a intenção de dissecar tais votos, nem a petulância de apreciá-los como se dotado de sabedoria salomônica. A questão é outra.
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No primeiro caso são discutidos conceitos tênues, um mais antigo, outro recente, quais sejam o da segregação de atividades [chinese wall] e o da mente corporativa. Para concluir pela absolvição dos indiciados, é apontado, no voto da diretora-relatora, o fato de que não foi devidamente verificada pela área técnica da CVM, a estrutura de segregação da companhia. Indaga-se: por que não se determinou diligência nesse sentido, de modo a sanar a alegada falha? Em geral, trata-se de medida com caráter de neutralidade, que não vincula o julgador.
Mais – o chinese wall não se constitui num mecanismo à prova de falhas, descuidos ou, mesmo, violações.
Quanto à questão da mente corporativa, parece-nos também equivocado o enfoque aplicado ao conceito que, de forma alguma, envolve centenas os milhares dos funcionários de uma companhia. Não existe apenas uma mente corporativa, mas várias, dada, justamente, a segregação de atividades.
Outra reflexão que se impõe – e aqui não falamos do caso concreto –, diz respeito ao cometimento do crime de insider trading disfarçado. A montagem de uma operação de arbitragem, a partir do conhecimento de informação privilegiada, deixa de configurar insider e passa a ser apenas arbitragem?
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No segundo caso, em declaração de voto discordante da bem estruturada manifestação do diretor-relator, a conclusão aponta [34] Esses Acusados que são empresários e pagam impostos e geram empregos, no meu entender, foram, no máximo, descuidados, mas, por conta desse descuido, estão agora diante de processos penais que ameaçam suas liberdades. É óbvio que eles poderiam ter sido mais cuidadosos e deixado de negociar naqueles períodos em que a CVM olharia com mais atenção para suas negociações. Mas, a CVM também poderia ter sido mais cuidadosa e, diante desses contra indícios, todos públicos, porque foram tirados do prospecto ou do Termo de Acusação, ter deixado de acusá-los e onerá-los com um processo penal que, ainda que tenha poucas chances de prosperar, gera custos reputacionais imensos.
Ora, admitir que os indiciados foram descuidados, sendo eles acionistas controladores de companhia aberta, produz efeito comprometedor ao invés de eximi-los de responsabilidade, considerando-se o comando geral constante do art. 153 da Lei das Sociedades por Ações [LSA], mesmo que não estejam agindo no exercício estrito de suas funções:
Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.
Inusitada também é a argumentação no sentido de que esses acusados são empresários e pagam impostos e geram empregos […]. A prevalecer essa linha, os empresários, de antemão, devem ser absolvidos em muitos casos, uma vez que todos pagam impostos e geram empregos.
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Por extensão, também os não empresários que, igualmente, são tributados, sustentam famílias e educam seus filhos, trabalham ou estudam, assim contribuindo para o desenvolvimento da sociedade.
Trata-se de argumento sem sustentação jurídica, a elevar às alturas o simples cumprimento de obrigações que recaem sobre todos os participantes do mercado.
Coincidentemente, na seção “Jurisprudência Mercado de Capitais”, boletim elaborado pela conceituada banca Motta, Fernandes Rocha Advogados e publicado na revista “Capital Aberto” [Novembro, 2014], deparamo-nos com outra decisão do Colegiado referente ao pleito formulado pelo Banco Santander S.A. visando obter tratamento excepcional para sua recente OPA de permuta, no sentido da não observância dos limites de aquisição fixados no art. 15 da Instrução CVM nº 361/02.
A área técnica da CVM, no caso a Superintendência de Registro de Valores Mobiliários [SRE], manifestou concordância com o pedido desde que a OPA contemplasse mecanismo de proteção à liquidez das ações remanescentes, concretizado mediante a obrigação do ofertante adquirir essas ações, por um prazo de três meses, na hipótese da aceitação à oferta superar um terço de cada espécie das ações em circulação nos moldes previstos no art. 10, § 2º, da mesma Instrução.
O Colegiado concordou com a SRE apenas para autorizar o tratamento excepcional solicitado. E discordou quanto à sugestão que visava proteger a liquidez dos acionistas remanescentes, argumentando que a citada regulamentação não respalda tal exigência.
Ora, um pedido de excepcionalidade, por sua própria natureza, pressupõe a faculdade de estabelecer um sistema de contrapesos, compensatório para a exceção que está sendo concedida, especialmente quando objetiva proteger acionistas minoritários.
Aparentemente foram usados dois pesos e duas medidas – o regulamento pode ser desconsiderado para conceder um benefício não previsto, mas não para impor uma obrigação compensatória.
O rombo na CVM, assim, relaciona-se à cultura acumulada pela casa desde sua criação. Pelo que temos observado, os precedentes citados nas análises e votos relativos às operações e aos processos sancionadores, têm universo limitado.
A pesquisa é restrita à produção já digitalizada, sem dúvida mais acessível e sem os inconvenientes de vasculhar antigos processos empoeirados. Ainda que mal pergunte, por que não foram objeto de digitalização? E de estudo?
Não se vê a citação de votos proferidos por ex-membros do Colegiado, altamente qualificados, que aliavam à formação teórica, a prática profissional, bastando lembrar os membros dos primeiros colegiados da CVM, que elaboravam os próprios votos, numa época em que não dispunham de assistentes e estagiários.
Dirão que o mercado e a legislação mudaram. Em parte, como ocorre normalmente, a afirmativa é verdadeira. Mas a utilização de informação privilegiada é tão velha quanto o mercado e, certamente, o crime mais frequente nele praticado.
As operações mais antigas sempre serão repetidas. Não faz muito, houve a problemática disputa entre Vivendi e Telefonica pelo controle acionário da GVT. A CVM (mesmo considerando a inexistência de derivativos, que, a propósito, não faziam a menor diferença legal no caso), enfrentou igual situação em 1978 (!) e, de forma simples, impediu a realização de OPA em desconformidade com o art. 257 da LSA.
A impressão é de que a autarquia foi criada em 1976 e refundada pós Internet. Pois é só impressão. Mesmo aí, nota-se que o acervo vai sendo abandonado na medida em que as Instruções são alteradas. Como se os aperfeiçoamentos (ou retrocessos) da lei e da regulamentação invalidassem, na íntegra, a doutrina e os dispositivos contidos na legislação revogada e mantidos nos novos regulamentos.
A CVM possui (além das obras publicadas, claro), provavelmente, o maior acervo de pareceres versando sobre direito societário e mercado de valores mobiliários do país. Se não podem ser citados ou disponibilizados publicamente, nada impede que sejam usados como fontes para a melhor compreensão das questões submetidas à autarquia.
Esse desperdício constitui o rombo da CVM, de valor inestimável para a capacitação de todos aqueles que trabalham na casa. Como disse certa vez o então presidente Adroaldo Moura da Silva – Pós-graduação é aqui!
É mesmo. Talvez o que falte seja arregaçar as mangas e debruçar sobre o acervo jurisprudencial formado há décadas, construindo, assim, uma rota para a coerência e para a segurança jurídica e, não, reinventar a roda a cada dois ou três anos.
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