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SÃO PAULO – Depois de meses de discussão, o Banco Central divulgou nesta semana as diretrizes gerais para a criação de uma moeda digital brasileira. Em um momento marcado pela euforia com as criptomoedas, o anúncio foi recebido com entusiasmo – mas também suscitou uma série de dúvidas.
O real digital será mais uma moeda digital emitida por banco central, também conhecida como CBDC (sigla em inglês para Central Bank Digital Currencies) e tem diferenças marcantes em relação a criptomoedas como o Bitcoin. A criação de CBDCs vem avançando em países como a China e é um assunto de discussão constante em outros, como os Estados Unidos.
Embora as diretrizes do CBDC brasileiro já estejam traçadas e algumas certezas comecem a ser delineadas, muitas respostas ainda dependem do modelo e das tecnologias que serão empregados no real digital – e tudo isso ainda está em definição. O InfoMoney coletou informações do Banco Central e ouviu especialistas para saber o que já está claro sobre essa moeda digital e o que ainda é dúvida. Confira:
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1) A moeda digital proposta pelo Banco Central é uma criptomoeda como o Bitcoin?
Não. Uma das principais características das criptomoedas como o Bitcoin é o controle não centralizado da emissão, dizem os especialistas. Não há uma autoridade única que acompanhe as transações – então, elas precisam ser registradas e validadas uma a uma por pessoas, que usam seus computadores para gravá-las na chamada blockchain.
“No caso da moeda digital do Banco Central, pela sua própria natureza, a emissão será centralizada”, diz Safiri Felix, diretor de produtos e parcerias da Transfero Swiss.
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Nas suas diretrizes, o BC informou que será a instituição que emitirá a moeda digital, como uma extensão da moeda física. A distribuição ao público será intermediada por instituições custodiantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), como os bancos.
A autoridade monetária também reforçou que sua opinião sobre as criptomoedas segue inalterada: “São ativos arriscados, não regulados pelo BC e devem ser tratados com cautela pelo público”.
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O “real digital” do BC é diferente ainda das stablecoins, como são chamadas as moedas digitais com lastro em uma moeda física. Existem, inclusive, stablecoins que possuem o real como referência – como é o caso do BRZ. A Transfero Swiss, que emite a moeda, mantém reservas em ativos denominados em reais (em geral, títulos públicos) equivalentes a 106% do volume de BRZs em circulação.
Fabio Araújo, economista que está coordenando os trabalhos sobre a moeda digital no Banco Central, explicou em uma entrevista coletiva que mesmo sendo lastreada na moeda física uma stablecoin embute o risco do seu emissor – enquanto o “real digital” é um passivo do próprio BC.
Felix acrescenta outra diferença: “Como será emitida pela autoridade monetária do país, a moeda digital do BC poderá ter curso forçado e ser moeda corrente no Brasil, o que não é o caso de uma stablecoin“.
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2) Qual é a diferença da moeda digital do BC para os reais que já circulam em meio eletrônico?
Ainda que muitas transações aconteçam com cédulas de papel, Araújo destacou que a maior parte dos reais na economia brasileira já são digitais. O salário que cai na conta corrente, o pagamento de uma conta pelo aplicativo do banco, uma TED ou, mais recentemente, um PIX – são todas formas de movimentar dinheiro que não envolvem a sua presença física.
A principal diferença do real digital para essas outras modalidades, segundo Araújo, está no fato de que, por ser emitida pelo Banco Central, seu risco é o do BC. Já os reais tradicionais que as pessoas mantêm no sistema bancário embutem o risco das instituições financeiras. A moeda convencional que circula em meios eletrônicos “leva o risco da instituição”, disse Araújo, enquanto a moeda digital do BC “é risco soberano”.
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Araújo também explicou que a moeda digital deverá ter limitações de uso pelas instituições financeiras. No caso da moeda convencional, os valores que as pessoas mantêm depositados nos bancos são usados para realizar empréstimos a outras pessoas. No caso do real digital isso, em princípio, não seria permitido.
É um modelo, segundo Araújo, que lembra o das chamadas “contas de pagamentos” oferecidas por fintechs: os recursos captados por meio delas também não podem ser utilizados na concessão de crédito.
3) Um real digital valerá o mesmo que um real físico?
Segundo Araújo, do BC, a princípio, o real digital deve interoperar no sistema financeiro – o que significa que as pessoas poderiam escolher, junto à sua instituição financeira, entre manter seus valores em moeda convencional ou digital.
Porém, ainda não é certo se haverá paridade absoluta de valor entre as duas opções. “Fundamentalmente, do ponto de vista econômico, você vai ter dois ativos. Vão haver forças de mercado que trabalham para colocar os preços desses ativos em patamares diferentes”, disse Araújo nesta quarta-feira (26) em um evento do Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados Associados. “Como os mecanismos do real digital ainda não estão definidos, esse ponto da paridade também não está”.
Segundo Araujo, seria possível conviver com algum descolamento dos preços, desde que ele não traga volatilidade excessiva para a moeda. Também seria possível estabelecer um sistema que garantisse sempre que um real digital vale o mesmo que um real físico – desde que houvesse gestão macroeconômica de modo a garantir que os preços coincidissem.
Isso significa, segundo Felix, que o Banco Central poderia atuar comprando e vendendo as moedas de modo a equilibrar a oferta, a demanda e os preços.
4) A taxa de câmbio do real digital será a mesma de um real físico?
Entre as diretrizes que o Banco Central vai considerar no desenvolvimento da moeda digital está adoção de solução que permita interoperabilidade e integração, com o objetivo de que ela possa ser usada em pagamentos transfronteiriços – ou seja, há perspectiva de que seja usada em transações internacionais.
Também não há certeza, por enquanto, sobre a paridade das taxas de câmbio das duas modalidades. Gustavo Cunha, sócio da FinTrender e colunista do InfoMoney, lembra que o próprio dinheiro físico pode ser negociado a diferentes taxas de câmbio. No Brasil, uma nota de US$ 1 tem um valor em reais ligeiramente diferente do valor de US$ 1 em uma transferência internacional ou de US$ 1 inserido em um cartão de crédito pré-pago. “Se a efetividade e os custos de transação de uma modalidade forem diferentes de outra, poderia haver cotações diferentes”, afirma.
5) Em que será possível usar o real digital?
As diretrizes do Banco Central preveem que a moeda digital seja utilizada em pagamentos no varejo, com a capacidade para realizar operações online e, eventualmente, operações offline.
A expectativa é de que, a partir dessa linha geral, o mercado possa encontrar os mais diversos tipos de aplicações para o real digital. “Esperamos que essa moeda fomente a criação de novos modelos de negócio”, disse Araujo. E daí poderiam surgir usos de todo tipo, envolvendo tecnologias como contratos inteligentes (smart contracts), internet das coisas (IoT) e dinheiro programável.
Plataformas de autopagamento em supermercados, em pedágios e estacionamentos, além dos sistemas de eletrodomésticos inteligentes – como uma geladeira que, por meio de sensores, monitore os produtos que estão faltando e realize as compras automaticamente – são exemplos de aplicações que poderiam ser criadas ou aperfeiçoadas com o real digital, conforme Araujo.
A depender de como a tecnologia do real digital for desenvolvida, outras possibilidades se estabelecem. Dinheiro digital e programável, segundo Felix, facilita o controle do Banco Central. “Se o BC identificar que alguém está cometendo algo ilício, poderia, por exemplo, descadastrar o seu CPF e impedir o acesso ao sistema”, explica.
Poderia, também, programar as unidades de real digital para usos específicos. “Se o pagamento de um benefício como o Auxílio Emergencial ocorresse em reais digitais, por exemplo, eventualmente seria possível estabelecer as condições de como o dinheiro poderia ser gasto – como apenas em supermercado”, diz Felix.
Isso é bom ou ruim? Depende do ponto de vista, segundo o especialista. “Conceitualmente, isso representaria menos autonomia para o cidadão”, defende.
6) Quem tiver reais digitais poderá sacar cédulas de real?
Segundo Araujo, do BC, sim. “A princípio, uma pessoa poderia sacar o real em formato digital e passar para o formato físico”, afirmou. Essa possibilidade está relacionada à interoperabilidade da moeda digital e da convencional, que é um dos princípios definidos para o seu desenvolvimento.
7) Será possível ter reais digitais fora de um banco?
Um real físico pode ser mantido pelas pessoas nas suas contas bancárias – ou fora delas. É possível guardar cédulas no bolso ou até embaixo do colchão. Segundo Araújo, do BC, com a versão digital da moeda isso deverá ser diferente.
“Hoje pensamos em um ambiente em dois níveis, em que o Banco Central emite e a distribuição e custódia é feita pelos participantes do sistema financeiro. No momento, entendemos que teria de haver uma relação bancária para alguém ter a posse da moeda digital”, explicou.
Também nisso o real digital difere das criptomoedas como o Bitcoin. “Em todo criptoativo é permitido que o usuário faça a própria custódia, ou autocustódia”, diz Felix. Eles podem ser mantidos em carteiras digitais, ou wallets, em sua propriedade e acessados por meio de chaves privadas.
8) O real digital vai utilizar a tecnologia de blockchain?
A blockchain é uma tecnologia de registro de transações utilizada em criptomoedas como o Bitcoin. É uma espécie de banco de dados público onde consta o histórico de todas as operações realizadas com cada unidade de moeda digital, para assegurar a autenticidade e que não haja duplicidade de uso.
Segundo Araujo, o Banco Central já fez testes com a tecnologia, que “é muito útil para gerar confiança entre pessoas e sistemas que não se conhecem”. Ainda não está definido, no entanto, se a blockchain será aplicada no caso do real digital. Um dos problemas, afirmou o economista, é o gasto excessivo de energia que essa tecnologia demanda.
9) Quando o real digital começará a valer?
Não será para já. Em cerca de um a dois meses o Banco Central promete começar a ouvir a sociedade sobre a proposta de criação da moeda digital, por meio de uma série de seminários. “Trataremos de temas atinentes à CBDC e convidaremos o público a participar”, disse Araújo. Essa etapa deverá durar de dois a três meses. Embora não haja certeza, Araújo estimou que o Brasil poderá reunir as condições para ter uma moeda digital em dois a três anos.
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