Do hipermercado às lojas express e atacarejo: veja evolução do consumo com Plano Real

Chegada do Plano Real alterou fundamentalmente hábitos de compras de alimentos e bens essenciais das famílias; setor de supermercados evoluiu junto

Camille Bocanegra

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Todo mundo já ouviu o ditado popular: “tempo é dinheiro”. Hoje, é possível estabelecer paralelos como as horas de dedicação a uma atividade remunerada ou o potencial de investimentos de longo prazo. Antes do Plano Real, que completa 30 anos, sendo tema de uma série de reportagens especiais do InfoMoney, as duas grandezas estavam mais interligadas que nunca. O tempo, nesse caso, “corroía” o dinheiro, ou melhor, o poder de compra, devido à hiperinflação.

Para muitas famílias, o sábado seguinte ao recebimento do salário tinha compromisso certo: a ida ao hipermercado. Dependendo do dia da semana no qual o valor chegava às mãos, a compra não aguardava o fim de semana chegar. Hoje, muitas famílias conseguem se planejar para realizar suas compras em estabelecimentos diversos e no melhor momento do mês ou da semana. Há 30 anos, essas mesmas famílias enfrentavam filas munidas de 3, 4 carrinhos cheios de produtos, que fossem suficientes para o mês todo.

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A luta, mais do que contra a elevação dos preços, era contra o relógio. “Você concentrava seu consumo no tempo. Se pensava, eu recebo hoje, eu consumo hoje”, explica o economista-chefe do Banco BV, Roberto Padovani. No período imediatamente anterior ao Plano Real, a hiperinflação promovia aumentos de preços diários. Padovani, que foi assessor do Ministério da Fazenda durante a estruturação da moeda atual, relembra ocasião na qual a inflação atingiu 7% em uma semana, praticamente 1% ao dia.

“Um impacto importante dessa mudança de preços relativos da hiperinflação é que o salário, o preço do teu trabalho, vai perdendo a corrida com o preço do macarrão, da manteiga”, explica o economista. Além disso, a época era marcada pela intensa variabilidade de preços, que impedia o estabelecimento de referências de quanto, de fato, custava um produto.

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“Realmente não havia muito parâmetro para definir o preço porque o negócio não era só lucrar com as vendas dos produtos. Nós comprávamos dos fornecedores com um mês para pagar e vendíamos o produto para receber à vista dos clientes. Esse dinheiro era aplicado no OverNight, uma aplicação do mercado financeiro da época”, relembra Carlos Correa, diretor-geral da Associação Paulista de Supermercados (APAS) e há 28 anos na entidade, atuava, na época, como gerente de compras de um supermercado. Ele elaborava e estava na linha de frente dos preços da loja em que trabalhava.

Por isso, a busca por lugares de confiança tornou ainda mais relevante, pela segurança de que o preço pago pelo produto seria o mais justo possível. “Esse impacto econômico no nosso cotidiano muda as nossas práticas de consumo”, ressalta Padovani.

A era dos hipermercados

Se a época exigia que compras o mês combinassem segurança de preço, altos volumes no mínimo de tempo possível, melhor alternativa eram os hipermercados. Os estabelecimentos ofereciam itens das mais variadas categorias, combinando desde produtos de papelaria até os tradicionais segmentos hoje vistos em supermercados e atacarejos. Mesmo com lojas maiores, as filas intermináveis marcaram a época também, contra o chamado “dragão” da hiperinflação.

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Nos estabelecimentos, as remarcações de preços eram constantes. Isso fez famosas duas figuras da época: as “fiscais de preços” (muito presentes no governo de José Sarney), donas de casa que vigiavam os aumentos, e os remarcadores, funcionários que alteravam os preços durante o dia.

Para as famílias, garantir os produtos necessários para o mês havia virado rotina. Para o lojista e o empresário industrial, a operação não era mais simples. A logística tinha que garantir a distribuição e abastecimento do país todo em um dia, uma vez que as idas aos mercados eram concentradas. “O lojista tinha que ser um cara gigante para ter uma estrutura que recebesse milhares de pessoas ao mesmo tempo, tivesse um estoque gigantesco, e as indústrias, por sua vez, elas tinham que ter uma capacidade de produção na última semana do mês”, comenta Padovani.

Correa detalha como os supermercados operavam nas primeiras semanas do mês, quando os consumidores lotavam os supermercados para realizar as compras no dia em que recebiam o salário. “Havia uma necessidade de ser montada a melhor escala de funcionários para atender esse período. As folgas, naquelas semanas, eram minimizadas para se ter o máximo de trabalhadores dentro da loja. E acontecia de os supermercados ficarem abertos até muito além do horário. Isso era combinado com os funcionários. Os consumidores não iam embora, e as lojas ficavam abertas até o último cliente ir embora”, destaca.

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Mudança de padrão de consumo

Após o Plano Real, com a inflação sob controle, foi possível que as famílias alterassem seu padrão de consumo. Dois fatores foram essenciais para garantir a mudança, de acordo com Padovani: noção de preço relativo e poder de consumo sendo preservado no salário. “As famílias adquiriram maior previsibilidade e segurança para planejar seus orçamentos domésticos. Inicialmente, essa nova estabilidade incentivou o melhor planejamento financeiro das pessoas, permitindo aproveitar promoções e oportunidades que não eram viáveis durante o período de hiperinflação”, diz Andressa Siqueira, economista e planejadora financeira CFP pela Planejar.

As poucas opções de consumo e a necessidade de grandes despensas para armazenamento de produtos deram lugar à mobilidade de escolha e a possibilidade de fracionamento das compras. Andressa destaca que a fragmentação das compras garante que a fidelidade do cliente seja ligada às vantagens oferecidas, como pontuação em programas de fidelidade. A mudança não veio imediatamente, segundo Correa, uma vez que, mesmo “sedentas por estabilidade”, as pessoas ainda tinham desconfianças e mantiveram por alguns meses a compra mais concentrada.

Para os estabelecimentos, a mudança significou menos compras para estocagem, menor necessidade de capital de giro e alteração da visão do consumidor sobre os estabelecimentos. “Passou a ser importante você ter uma loja melhor, bem iluminada, com um piso bonito, carrinhos com funcionamento. Houve um empoderamento do consumidor para experiências dentro da loja”, comenta. Isso favoreceu também estabelecimentos menores, como mercados “de bairro” e permitiu a criação, anos depois, de modelos de lojas express (como a rede Minuto, do Grupo Pão de Açúcar (PCAR3).

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E o atacarejo?

Mesmo em um contexto de inflação mais controlada que nunca, Padovani comenta que dois “repiques inflacionários” aconteceram. O primeiro, em 2015, teve IPCA em quase 11% ao ano e, após a pandemia, houve alta de 12% (em abril de 2022). A experiência favoreceu a consolidação da classe dos “atacarejos“, supermercados que vendem tanto no atacado (com redução de preços) quanto no varejo. O formato também permitiu o retorno às compras quinzenais e mensais para camadas da população.

“É impressionante como uma leve aceleração inflacionária já reduz o poder aquisitivo da população e isso mostra como a população faz conta”, diz o economista do BV. Ainda assim, de acordo com ele, o crescimento do segmento é garantida pelos elementos como estabilidade e potencial de comparação de preços, conquistados no Plano Real.

“A gente volta um pouco para o modelo das grandes operações. Não só por conta do aumento da inflação e da perda de capacidade de consumo mas, pelo contrário, pela capacidade de se avaliar preço relativo e a capacidade você tem de conseguir preços mais baratos portanto ter algum ganho em termos reais”, finaliza.

Esta publicação faz parte da série 30 anos do Plano Real: Passado, presente e futuro da moeda que mudou o país, especial do InfoMoney com reportagens, entrevistas, vídeos e artigos sobre a trajetória da moeda brasileira de sua criação aos dias de hoje.