Colunista convidado: Fernando Aurelio Zilveti, professor doutor livre-docente em direito tributário pela Faculdade de Direito da USP
O pano de fundo do processo de impeachment da Presidente é a irresponsabilidade fiscal e suas consequências políticas para o país. O congresso soberanamente interpreta a lei e a Constituição de modo a impor punição exemplar à mandatária faltosa. O STF considerou até então legítimo esse processo, preservando a ordem democrática institucional.
Não há como discordar que o atual governo praticou atos conhecidos por “pedaladas fiscais”. Disso se sabe há muito tempo e é falha a escusa que outros mandatários tenham perpetrado igual prática. A responsabilidade aqui é subjetiva, de autorizar gasto sem a aprovação do Congresso e utilizar bancos públicos para mascarar contas negativas. Isso submete o agente à análise de seus atos, não o conjunto de atos de mandatários diversos, nem os próprios atos em mandatos distintos.
A decisão final de afastamento da Presidente da República marcará a teoria do direito financeiro e o conceito de responsabilidade fiscal pátrios, mas a questão constitucional aqui é nuclear. Isso significa, na prática, que todo mandatário pilhado em prática nociva à lei de responsabilidade fiscal deve sofrer processo de afastamento, espécie de “recall” político-financeiro. O impeachment consiste, afinal, em tipo de “recall” do chefe do Poder Executivo.O aspecto inovador desse caso é o regime presidencialista admitir o impeachment por grave delito de responsabilidade fiscal.
No caso Collor o delito foi falta de decoro. No caso Clinton os delitos foram perjúrio e obstrução da justiça. No primeiro, receber um Fiat Elba sem prova de consequente benefício indevido do doador foi suficiente para admissão do processo, em interpretação aberta do tipo decoro. O caso Collor não foi, porém, julgado pelo Senado diante da renúncia do presidente.
O segundo caso, nos EUA, foi rechaçado pelo Senado, uma vez que os senadores se mostraram preocupados com a interpretação jus naturalista das hipóteses constitucionais de crime grave ou contravenção. Entenderam que Clinton manter “relações impróprias” com a estagiária e negar isso não consistiu crime grave ou contravenção de perjúrio e obstrução da justiça, sob a perspectiva do direito positivo. Os senadores de maioria republicana julgaram que a interpretação extensiva aberta traria riscos à democracia, bem maior em questão.
A análise dos precedentes acima indicam a necessidade de prova cabal de desrespeito da LRF para que os senadores concluam pelo afastamento definitivo da presidente, segundo a teoria do direito positivo, interpretação sem riscos para a democracia. Isso em si não assusta. O “recall” fiscal sim provoca arrepios em pelo menos duas dezenas de governadores e um sem número de prefeitos. Pensar em saídas distintas para a responsabilidade fiscal pode transformar o Brasil naquilo que Vahinger denominou de “Als ob”, realidade que essencialmente não pode ser conhecida.