Todo mundo já soube de alguma história sobre alguém que ocupou uma propriedade que não lhe pertencia originalmente e, com o tempo, conseguiu obter a propriedade do local. Ou de alguém que ampliou a sua casa construindo em parte de um terreno desocupado de proprietário desconhecido.
Essas são as famosas situações de usucapião, que, embora amplamente conhecidas, costumam gerar muitas dúvidas sobre quando se aplicam legalmente ou não.
Normalmente, a expressão surge quando o assunto são imóveis. Mas sabe aquele eletrodoméstico, televisão, celular, ou mesmo carro que alguém está utilizando emprestado e o proprietário nunca pediu de volta? Tudo isso também é passível de usucapião em determinadas situações, inclusive na herança.
A seguir, mostraremos o que é usucapião, como funciona, quais os tipos e outros aspectos importantes sobre essa forma de propriedade. Continue a leitura a seguir.
O que é usucapião?
Usucapião nada mais é do que uma forma originária de se adquirir uma propriedade, seja ela um bem móvel ou imóvel.
“A gente usa a expressão no feminino (‘a’ usucapião), justamente porque ela se refere à forma com que se adquire um bem pelo decurso do tempo de uso”, observa o advogado Leandro Aghazarm, do Henneberg Ferreira e Linard Advogados.
Como funciona a usucapião?
Seja para bens móveis ou imóveis, a essência da usucapião é a mesma. Uma pessoa que estiver utilizando um bem móvel ou imóvel pode se tornar sua proprietária, se estiver agindo como se fosse dona e se o proprietário do mesmo não se opuser a respeito.
Para isso, a lei exige que exista um determinado tempo de uso e outros requisitos específicos, os quais veremos no próximo item.
Quais os requisitos para se ter usucapião?
Exceto para os bens públicos, que não são passíveis de usucapião, existem três requisitos para que ela possa ser aplicada:
1 – Agir como dono do bem
Agir como dono significa não somente ter a posse, mas também zelar pelo patrimônio que está sendo utilizado.
No caso de imóveis, por exemplo, o usuário deve estar pagando os impostos, realizando manutenções, benfeitorias e demais cuidados com a conservação física do local. O mesmo se aplica a bens móveis, que devem estar em bom estado de funcionamento para que possam ser passíveis de usucapião.
2 – A posse deve ser ininterrupta por determinado período
A depender do tipo de usucapião, existe um prazo mínimo durante o qual a pessoa deve estar de posse do bem para que possa pleitear a sua propriedade. Mas essa posse deve ter ocorrido por um prazo ininterrupto.
3 – Inexistência de oposição à posse
Além de comprovar o cuidado e a utilização contínua do bem, a posse deve ser pacífica e sem que alguém tenha manifestado alguma oposição.
Por exemplo, receber uma carta do proprietário pedindo que o imóvel seja desocupado, ou mesmo uma ação de reintegração de posse são formas de oposição à posse. Nesses casos, segundo Leandro, o mais seguro para o proprietário é uma notificação extrajudicial com aviso de recebimento ou via cartório, para que exista a comprovação do envio e do recebimento.
“Mas também existem outros meios de comprovar a oposição, como mensagens de WhatsApp ou e-mails. O importante é o proprietário dar ciência de que deseja o seu bem de volta, e essa comunicação deve ter confirmação de recebimento e leitura. Caso contrário, a pessoa que está no imóvel ou de posse do bem pode ter reconhecido o direito de usucapião, mesmo não tendo boa fé”, diz o advogado.
Prazo para ter direito à usucapião
No caso de bens móveis, são necessários de três a cinco anos para caracterizar usucapião. Já para bens imóveis, o prazo máximo é de 15 anos, podendo ser reduzido para 10, cinco ou dois anos, dependendo do tipo.
Quando alguém que tem a posse de um imóvel pede usucapião, o seu prazo pode ser computado com o de seu antecessor, como explica Aghazarm.
“Suponha que uma pessoa tenha vivido em um imóvel de forma pacífica e ininterrupta por cinco anos. Nesse caso, o próximo morador pode computar o seu tempo de posse e o de seu antecessor, e pedir na justiça o reconhecimento da usucapião”, diz o advogado.
Tipos de usucapião de imóvel
De acordo com Ferrari, a legislação brasileira prevê quatro tipos de usucapião de imóveis:
- a ordinária;
- a extraordinária;
- a especial urbana; e
- a especial rural.
Vejamos agora o que caracteriza cada uma delas.
Usucapião ordinária
Na usucapião ordinária, a pessoa precisa ter a posse do imóvel por 10 anos seguidos. Além disso, a ocupação deve ter ocorrido por um justo título (um acordo com o proprietário ou um contrato de compra e venda, mesmo que sem escritura), para que se possa caracterizar a boa fé.
Se o local for a moradia da pessoa, ou se nele tiver sido feito algum investimento econômico ou social, o prazo pode cair para cinco anos, desde que não seja proprietária de outro imóvel urbano ou rural.
Usucapião extraordinária
Já na forma extraordinária, a posse do imóvel não precisa ter ocorrido por justo título ou boa fé.
Digamos que alguém tenha ocupado um imóvel deliberadamente, sabendo que pertencia a outra pessoa. Se o ocupante ficar lá por 15 anos ininterruptos e sem oposição, poderá adquirir a propriedade por usucapião.
Assim como na forma ordinária, o prazo pode ser reduzido em cinco anos (passando para 10 anos ao todo), se o imóvel for moradia habitual ou se nele tiver sido feita alguma obra de caráter produtivo.
Usucapião especial urbana
A usucapião urbana se aplica a imóveis com até 250 m², desde que a pessoa que tem a posse não seja proprietária de outro imóvel.
Há quem considere uma subclassificação para esse tipo, que é a usucapião familiar, quando o casal se separa e um dos ex-parceiros fica morando no local. Nesta situação, quem permaneceu no imóvel pode adquirir a sua propriedade depois de dois anos da separação, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Leandro observa a importância de oficializar a partilha de bens assim que é feito o divórcio ou o término da união estável.
“Por questões de custos, muitas pessoas somente se separam e deixam a partilha de bens para depois. Isso é perigoso para quem saiu de casa, pois se quem ficou morando no imóvel não paga um aluguel nem está obrigado a alguma contraprestação, corre o risco de a situação ser caracterizada como abandono do lar, e quem está no imóvel pode requerer a usucapião”, alerta o advogado.
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Usucapião especial rural
A usucapião rural é semelhante à urbana, mas se aplica a propriedades rurais.
Nesse caso, o terreno rural deve ter até 50 hectares (ou 500 mil m²) e seguir as mesmas regras anteriores: ser a única moradia da família ou ter atividade produtiva no local.
Usucapião de imóvel de herança
Quanto existe algum imóvel no processo de inventário que está ocupado por alguém, seja essa pessoa herdeira ou não, é preciso identificar qual a origem dessa situação.
Se havia um contrato de locação ou comodato (contrato de empréstimo gratuito), a pessoa falecida precisa ser substituída no documento pelo espólio enquanto o inventário não for concluído. Terminado o processo, o espólio é substituído no contrato pelo herdeiro que ficou com o imóvel.
A partir do momento do falecimento, o espólio é habilitado para figurar como locador ou comodante. Segundo Aghazarm, se não for feita essa alteração e a pessoa deixa de pagar aluguel ou continua vivendo no imóvel emprestado, ela pode obter a propriedade por usucapião se o inventário demorar muito para ser concluído.
“Se o morador tiver o título de boa fé, o prazo pode cair de 15 para 10 anos. Por isso, é importante existir um contrato de aluguel ou comodato em nome do espólio enquanto a sucessão patrimonial não for concluída, pois esse contrato impedirá a reivindicação da propriedade por usucapião”, alerta o advogado.
Usucapião de bem móvel
Em princípio, qualquer bem móvel pode ser objeto da usucapião.
Se forem cumpridas as três condições básicas – agir como dono, posse ininterrupta e sem oposição – o prazo é de três anos para quem tem a posse com justo título e de boa fé. Caso não exista essa condição, serão necessários cinco anos para pleitear a propriedade do bem.
No entanto, esses prazos não valem para bens que estão alienados. O exemplo clássico dessa situação são os veículos financiados, pois às vezes o banco pode demorar mais de cinco anos para retomar o bem no caso de inadimplência.
Em casos assim, Leandro observa que existe jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que impede a caracterização da usucapião. Isso porque, independentemente do prazo, o comprador somente terá a propriedade quando a dívida estiver paga.
“No caso de um veículo financiado, o devedor tem somente a sua posse, pois precisa pagar para que a propriedade seja dele. Mesmo que o banco deixe de cobrar por um tempo, a posse não dá direito à usucapião”, observa.
Usucapião judicial e extrajudicial
Nos processos de usucapião, pode-se optar pela forma judicial ou extrajudicial. A judicial, como explica Ferrari, é mais demorada, pois aceita todo tipo de pedido, sem nenhum filtro.
O advogado relata que já presenciou processos de mais de 10 anos, mesmo com a pessoa preenchendo todos os requisitos e a justo título.
“Quando se entra com a petição inicial, o juiz precisa dar conhecimento aos confrontantes (vizinhos) do imóvel, que também são citados na ação. Se o imóvel, por exemplo, está dentro de uma área com uma única matrícula, todos os proprietários que constam nessa matrícula devem ser citados. E tudo isso acaba tornando o processo bastante demorado”, diz Aghazarm.
Por outro lado, a usucapião extrajudicial torna mais ágil a ação, pois ela é feita por um advogado diretamente no cartório de registro de imóveis. A sua previsão consta no Código de Processo Civil (CPC), artigo 1.071, posteriormente complementado pelo artigo 216-A, que estabelece o seguinte:
Art. 216-A: Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:
I – ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias;
II – planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes;
III – certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente;
IV – justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel.
Considerações finais
Muitas pessoas adquirem imóveis ou lotes de terrenos sem matrícula ou documentação adequada. Nesses casos, segundo Aghazarm, uma forma de regularizar a propriedade pode ser por meio da usucapião.
“Por lei, só se adquire a propriedade de um imóvel com o registro da matrícula em nome do proprietário. Se não existir esse registro, o comprador terá que provar que adquiriu o imóvel de boa fé, que extraiu certidões do vendedor para ver se ele não tinha dívidas trabalhistas, tributárias ou algum outro tipo de processo discutindo a propriedade. E, mesmo assim, existe o risco, principalmente se algum herdeiro ou credor estiver reivindicando o bem”, alerta o advogado.