Embora a inflação não seja novidade para os brasileiros, os mais jovens não têm ideia de como a alta dos preços afetou a vida das pessoas entre as décadas de 1970 e meados dos anos de 1990. 

No Brasil daquele tempo, era impossível fazer qualquer plano financeiro para o longo prazo, pois você literalmente acordava todos os dias pagando mais caro no supermercado. O descontrole chegou ao ponto de a população ter sido chamada a fiscalizar estabelecimentos que não cumpriam o congelamento de preços determinado no governo José Sarney. Os “fiscais do Sarney” marcaram época e representaram mais um entre os diversos planos de estabilização econômica malsucedidos.

De 1986 a 1994, o Brasil teve quatro moedas e seis planos econômicos que fracassaram, até que, finalmente, o Plano Real derrotou a hiperinflação. Um ano antes de sua implementação, em 1993, o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) chegou a registrar uma inflação de quase 2.500%.

Nascido em meio à descrença de muitos, o Plano Real completou 30 anos e carrega consigo o sucesso da estabilização econômica. Mas nem tudo foi perfeito, e algumas críticas persistem até hoje quanto à sua condução, conforme veremos a seguir.

O que foi o Plano Real?

O Plano Real foi uma série de reformas econômicas implementadas em 1994, durante o governo de Itamar Franco, que tinham como principal objetivo conter a hiperinflação.

Bem antes do Plano Real, o Brasil já sofria com o aumento sistemático de preços. Para entendermos o contexto econômico e o seu desfecho, precisamos recuar algumas décadas.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Contexto histórico que antecedeu o Plano Real

Entre 1968 e 1973, o Brasil viveu o chamado “milagre econômico”, período de inflação controlada e alto desenvolvimento econômico, com PIB (Produto Interno Bruto) médio perto de 10% ao ano.

Na verdade, o embrião desse crescimento está nos governos de Getúlio Vargas, que iniciou o processo de industrialização brasileiro, e de Juscelino Kubitschek, que impulsionou setores-chave como infraestrutura, transporte, educação e alimentação. De Getúlio ao início dos anos 70, esses projetos sempre contaram com pesados investimentos públicos que, por sua vez, eram financiados predominantemente com a dívida externa.

Crescimento constante e inflação sob controle era o panorama da economia brasileira no início dos anos 70. Tudo ia bem, até que um evento começou a inverter o curso das coisas: a primeira crise do petróleo, em 1973.

Por ser um bem não renovável, a comercialização de petróleo já vinha sendo regulada pelos países produtores, mas o fornecimento ficou realmente problemático em 1973, com a Guerra do Yom Kippur. O conflito, entre árabes e israelenses, ocorreu próximo ao Canal de Suez, na fronteira entre Egito e Israel. 

Como forma de retaliação ao Ocidente, que apoiou Israel no conflito, os países árabes aumentaram o preço do barril de US$ 3 para US$ 12 em apenas três meses. Como os países ocidentais dependiam ainda mais do petróleo como fonte de energia, essa alta se refletiu diretamente na inflação.

Seis anos depois, com as economias ocidentais ainda abaladas pela alta dos preços, veio o segundo choque do petróleo, em 1979. O motivo foi a revolução fundamentalista do Irã, segundo maior produtor da commodity na época. A situação se agravou mais ainda em 1980, com o início da guerra entre Irã e Iraque, o que fez o preço do barril disparar para cerca de US$ 60 (considerando valores atuais). 

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Dessa vez, a alta do petróleo causou estragos bem mais graves, pois não foram só os custos de produção que subiram. Para controlar a inflação, os EUA elevaram os juros de uma média de 13% ao ano para 20% ao ano.

Ou seja, da noite para o dia, a dívida externa brasileira havia crescido cerca de 54%. Esse cenário pôs fim ao curto milagre econômico, e marcou a escalada da inflação dali para frente.

Até que o Plano Real fosse implementado, o Brasil teve os Planos Cruzado (I e II), Bresser, Verão e Collor (I e II). Em todos eles, a moeda perdeu três zeros e mudou de nome, e todos fizeram o congelamento de preços para conter a inflação, o que não aconteceu.

Quem criou o Plano Real?

Itamar Franco assumiu a Presidência da República interinamente em outubro de 1992, quando Fernando Collor de Mello foi acusado de corrupção e afastado do cargo. Dois meses depois, o Congresso Nacional aprovou o seu impeachment, e Itamar viria a ser formalmente aclamado chefe do Executivo em 29 de dezembro.

Uma de suas primeiras ações foi formar a equipe econômica, que viria a ser conhecida como os “pais do Plano Real”. Veja quais foram os principais nomes.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Fernando Henrique Cardoso

FHC era ministro das Relações Exteriores quando foi convidado por Itamar Franco para liderar o Ministério da Fazenda. A missão era desafiadora: criar um plano econômico que controlasse a inflação e trouxesse estabilidade econômica de forma sustentável.

Doutor em Ciências Sociais e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), ficou três anos no exílio por causa da ditadura militar. Retornou ao Brasil em 1968, e começou a carreira política em 1970 no Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Em 1982, assumiu como senador na vaga de Franco Montoro, eleito governador de São Paulo, e começou a participar do movimento Diretas Já. Anos depois, tornou-se líder do PMDB (sigla que sucedeu o MDB) no Senado, e participou ativamente da Constituinte.

Em abril de 1999, FHC deixou a Fazenda para concorrer à Presidência da República, sendo substituído por Rubens Ricupero no cargo. O sucesso do Plano Real garantiu a sua eleição para a chefia do Executivo por dois mandatos consecutivos.

Persio Arida

Formado em Economia pela USP e doutor na área pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), Persio Arida foi um dos idealizadores da URV, ao lado de André Lara Resende.

Nos anos 80, fez parte do Ministério do Planejamento do governo José Sarney, e dirigiu o Banco Central no início do Plano Real, em 1995, por cinco meses. Antes disso, chegou a presidir o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Muito reconhecido no meio acadêmico, Arida montou o departamento de Economia da PUC-Rio, onde viria a lecionar posteriormente. Foi também pesquisador em Washington (EUA) em um dos centros de estudos da Smithsonian, tendo retornado ao Brasil em 1985 para participar da redemocratização.

André Lara Resende

Economista formado pela PUC-Rio e mestre em Economia pela FVG (Fundação Getulio Vargas), André Lara Resende foi diretor do Banco Central em meados dos anos 1980. 

Na época, participou da elaboração do Plano Cruzado, ao lado de Persio Arida. O plano não teve sucesso em seu objetivo, que era o de conter a inflação, e Resende se afastou da vida pública até 1993, quando liderou a negociação da dívida externa durante o governo de Itamar Franco.

Pedro Malan

Formado em Engenharia Elétrica pela PUC-Rio e Ph.D. em Economia pela Universidade de Berkeley (EUA), Pedro Malan foi ministro da Fazenda nos dois mandatos de FHC.

No final dos anos 1970, integrou o grupo que viria a criar o Instituto de Economistas do Rio de Janeiro. Na mesma época, começou a lecionar Economia na PUC-Rio.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Durante a década de 80 até o início dos 90, Malan representou o Brasil no Banco Mundial. Em setembro de 1993, a convite de FHC, então ministro da Fazenda, assumiu como presidente do Banco Central, cargo que exerceu até 1994.

Gustavo Franco

Mestre em Economia pela PUC-Rio e doutor em Economia pela Universidade de Harvard (EUA), Gustavo Franco começou na política em 1993, como secretário adjunto do Ministério da Fazenda e diretor de Assuntos Internacionais. 

Ele também foi um dos idealizadores do Plano Real, e presidiu o Banco Central entre agosto de 1997 e março de 1999. 

Edmar Bacha

Economista pela Universidade Federal de Minas Gerais e Ph.D. em Economia pela Universidade de Yale (EUA), Edmar Bacha começou sua vida pública na presidência do IBGE, de 1985 a 1986. Foi figura importante na criação do Plano Cruzado, no governo de José Sarney, mas divergências o fizeram deixar a equipe.

Bacha voltaria a trabalhar para o governo no início dos anos 1990, na equipe econômica de Itamar Franco que elaborava o Plano Real. Anos depois, durante o primeiro mandato de FHC, foi presidente do BNDES, em 1995.

Implementação do Plano Real

O Plano Real levou cerca de três meses para ser implementado, e contemplou três fases distintas.

A primeira fase foi o ajuste fiscal, que tinha o objetivo de cortar gastos e aumentar a arrecadação, buscando equilibrar as contas públicas. Nessa fase, foi criado o FSE (Fundo Social de Emergência) que desvinculou receitas e despesas para bancar programas de interesse econômico e social, como gastos com saúde, previdência e educação.

A segunda fase implementou a URV – Unidade Referencial de Valor – e esse, segundo o então ministro da Economia, Fernando Henrique Cardoso (FHC), foi um dos principais diferenciais do plano em relação aos seus antecessores.

“Ao invés de você acordar um dia e ler no jornal que tem uma nova moeda, nós explicamos antecipadamente o que iria acontecer. Isso fez a população sentir que, dali para frente, as coisas mudariam e seriam mais estáveis”, disse FHC em documentário sobre o Plano Real.

A ideia da URV havia sido criada em 1984 a partir de um paper feito pelos economistas Pérsio Arida e André Lara Rezende. A lógica era a seguinte: para interromper a alta dos preços, criava-se um sistema com duas moedas: a oficial, que era a inflacionada, e uma nova, que funcionava como indexador e tinha o seu valor corrigido diariamente. 

A URV era justamente esse indexador. Quando foi lançada, em 1° de março de 1994, a moeda brasileira era o cruzeiro real (CR$). Na data, uma URV era equivalente a CR$ 647,50, e todos os dias, para saber o preço dos produtos, era preciso converter cruzeiros reais em URVs.

Em 1° de julho de 1994, com a URV valendo CR$ 2.750, ela desaparece como indexador e vira a moeda real, dando início à terceira e última fase do Plano Real. A expectativa era de que a ampla variação da URV absorvesse a alta dos preços dos últimos três meses, de forma que eles não estivessem defasados quando a unidade virou real. Em outras palavras, teoricamente os preços estavam todos alinhados por cima, e as pessoas já estavam familiarizadas com a unidade de preços. Só faltava então trocar o nome de URV para real.

A ancoragem cambial no Plano Real

Quando a URV foi transformada em real, o governo congelou o câmbio na paridade de um real para um dólar. Tempos depois, o câmbio fixo deu lugar às bandas cambiais, com o real ainda mais valorizado em relação ao dólar – na época, a moeda norte-americana chegou a custar 86 centavos de real.

A medida também fazia parte da tentativa de controle da inflação, pois com o dólar mais “barato”, os importados passaram a concorrer diretamente com a produção nacional. Durante algum tempo, a maior oferta de produtos estrangeiros ajudou a manter os preços baixos por aqui, mas a ancoragem cambial gerou outros problemas.

Se por um lado, os dólares que entravam ajudavam a conter os preços, por outro, era preciso remunerar bem esse capital, para compensar o risco de um país que recém saía de uma hiperinflação. E foi exatamente isso o que o Banco Central fez com a Selic, que chegou a mais de 45% no final dos anos 90.

Porém, quando os juros ficam altos por muito tempo, além do encarecimento da dívida, isso se reflete também em baixos níveis de investimento, como explica o economista Paulo Gala.

“No começo do Plano Real, houve um crescimento econômico por conta da estabilização e de um boom de consumo. Mas logo depois, para segurar a âncora cambial, o Banco Central subiu muito os juros, e isso meio que asfixiou a economia. E ainda tivemos o agravante de algumas crises na época, como a asiática, a russa, a argentina, até que o Brasil foi atingido em 1999”, disse o economista em seu canal no YouTube.

Taxa Selic – de 1996 a 2002:

Efeitos do Plano Real sobre a economia

Segundo economistas, o Plano Real trouxe reflexos positivos e negativos à economia, como veremos a seguir.

Fim da hiperinflação

O conjunto de medidas implementadas em três etapas conseguiu acabar com a hiperinflação que assolava o país desde a década de 80. Isso reduziu a miséria e restaurou a confiança do mercado internacional na economia brasileira.

Variação anual da inflação no Brasil (%) – IGP-DI de 1990 a 2002:

Abertura econômica

Outro aspecto importante foi a promoção da abertura econômica brasileira na época. Para evitar que a inflação saísse novamente de controle, a ideia era incentivar as importações, o que, teoricamente, seguraria os preços por aqui. Dessa forma, além de sustentar a paridade cambial, o governo reduziu as tarifas de importação, para garantir que não faltassem produtos à disposição dos consumidores.

Competição internacional desigual

Por outro lado, a valorização do real frente ao dólar também trouxe reflexos negativos para a economia. Para o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, a taxa de câmbio valorizada jogou o Brasil em uma competição internacional desigual.

“Nunca vi um exemplo de economia em desenvolvimento que tenha crescido ao manter a taxa de câmbio valorizada por mais de 20 anos. Isso foi um erro crasso”, disse o economista em audiência pública da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, em 2013.

Aumento do déficit externo

Paulo Gala explica que a valorização do real tinha provocado um déficit externo enorme, com exportações minguando e importações crescendo a taxas exponenciais. Com o passar do tempo, foi ficando cada vez mais difícil manter a ancoragem cambial. Apesar de ter controlado os preços, o Plano Real não conseguiu colocar a economia em uma rota de crescimento sustentado, segundo o economista.

“Quando FHC foi reeleito, o governo rapidamente abandonou a ancoragem cambial, pois o Brasil vinha perdendo reservas alucinadamente. Mesmo com a Selic em mais de 40%, foi preciso gastar um grande volume de reservas cambiais para tentar honrar a paridade. Com isso, o nosso déficit externo chegou a 4% do PIB, percentual que o FMI considera gatilho para grandes crises cambiais. De fato, veio a crise cambial em 1999”, lembra Gala.

Reservas internacionais do Brasil (US$ milhões) – de 1987 a 2002:

Para o economista André Roncaglia, a única forma de manter uma economia do tamanho do Brasil funcionando seria com importações. E o motivo era simples: com o real tão valorizado, a indústria simplesmente não conseguia operar.

“Quantos dólares você tem que ter no Banco Central para comprar queijo suíço, tênis importado, e ainda celulose, trigo, e tudo mais que precisa para fazer a economia funcionar? O Brasil não tinha o suficiente, e precisou recorrer ao FMI para gastos básicos. É assim que começam as crises cambiais”, disse Roncaglia em um podcast. Todos esses problemas já vinham sendo percebidos pela equipe econômica de FHC há tempos. Tanto é que, logo após sua reeleição, em meados de janeiro de 1999, o governo comunicou ao mercado que não iria mais intervir para segurar a taxa de câmbio. Terminava assim o regime de bandas cambiais, que deu lugar ao tripé macroeconômico de Armínio Fraga, presidente do Banco Central no segundo governo de FHC.

Esta publicação faz parte da série 30 anos do Plano Real: Passado, presente e futuro da moeda que mudou o país, especial do InfoMoney com reportagens, entrevistas, vídeos e artigos sobre a trajetória da moeda brasileira de sua criação aos dias de hoje.