Lições

A próxima pandemia

O que o combate à crise provocada pelo coronavírus nos ensinou, na visão do diretor geral do Hospital Sírio-Libanês

“Quando Bill Gates anunciou, durante uma palestra em 2015, que o mundo não estava preparado para a próxima pandemia, ele se referia ao susto que o mundo havia passado com o Ebola.

Realmente, em sua profética apresentação, Gates expôs as dificuldades que teríamos de superar para conseguirmos, de forma colaborativa e unificada, enfrentar uma pandemia de proporções como esta que vivemos no último ano, e que estamos vivendo até hoje.

Quando os primeiros sinais de alerta de uma nova infecção começaram a aparecer, todos os centros de saúde do Brasil passaram a olhar para seus processos, seus insumos e protocolos.

De imediato, começamos a observar falta de insumos básicos, como máscaras e luvas, e vimos nossas cadeias industriais quebrarem diante da forte dependência que tínhamos de matérias-primas importadas.

Tivemos, também, que testemunhar o espírito comercial se sobrepor à solidariedade.

Diante de uma ameaça de saúde pública, vários fornecedores optaram por aumentar seus preços para aproveitar a demanda elevada, em vez de reconhecerem a necessidade extrema de proteção daqueles profissionais de saúde que foram a linha de frente no combate da pandemia.

Já no fim do primeiro trimestre de 2020, começamos a entender que nossa realidade estava mudando drasticamente.

No Sírio-Libanês, trabalhamos rapidamente para manter o atendimento de pacientes com e sem COVID-19 em fluxos separados, criamos mais de 120 protocolos de atendimento para padronizar a assistência à saúde do paciente que procurasse nossa instituição.

Percebemos, então, que apesar de a ciência avançar muito rapidamente, estávamos lidando com um poderoso inimigo e tínhamos que depender da nossa responsabilidade social e comunitária para ajudar a conter a transmissão.

Em abril, as máscaras se consolidaram como um aliado no enfrentamento da COVID-19. Mas tão logo isso se tornou um fato, a máscara passou a ser usada como uma arma política.

O vírus SARS-CoV-2 foi apenas um dos inimigos que tivemos de combater em 2020. Tivemos também que superar a desinformação, a disseminação de falácias e a racionalização de informações claramente absurdas, mas que caíram no gosto popular.

A máscara, que poderia reduzir de forma contundente a transmissão do vírus, passou a ser uma bandeira que dizia muito mais sobre quem não a usava do que o reconhecimento do ato de cidadania de quem não sai de casa sem ela.

A pandemia estressou nossa humanidade ao limite do que queremos reconhecer que existe em nós mesmos.

Se usar uma máscara se tornou tão polêmico, o que dizer então dos tratamentos milagrosos? Esses passaram a ser usados como desculpas para justificar as festas e baladas que reuniam centenas de pessoas, enquanto a demanda por leitos em hospitais só aumentava.

Havia falta de estudos no começo da pandemia que nos permitissem dar uma resposta contundente às dúvidas sobre tratamentos.

Em velocidade surpreendente, estudos foram publicados, muitos desses oriundos da ciência nacional, com a criação da Coalizão Covid Brasil, que reuniu hospitais de excelência para trazer o mais rapidamente possível respostas para essas perguntas.

Mas os estudos, que deveriam trazer um ponto final nas dúvidas que tínhamos sobre os tratamentos para o paciente com COVID-19, virou fomento para mais disputas ideológicas.

Vivemos hoje duas pandemias, da COVID-19 e da desinformação. E, de forma trágica, a desinformação parece estar ganhando.

Pois quanto menos conhecimento disseminamos sobre o vírus, mais livremente ele circulará.

Quanto mais ele circula, mais ele se replica, e, dessa forma, aparecem novas variantes. Ainda não sabemos se essas variantes são mais agressivas, tudo indicam que são mais transmissíveis.

Mas, se tivéssemos todos, de forma responsável, adotado medidas de segurança, como o uso de máscaras, distanciamento social e higiene das mãos, não teríamos tantos vírus em circulação. Não teríamos tantos casos de COVID-19. Não teríamos tantas mortes. Ainda dá tempo.

A desinformação só reina quando não temos uma liderança unificada, coibindo as mentiras e promovendo as verdades. Pois quando duas fontes externam informações discrepantes, ouvimos aquilo que queremos ouvir.

Precisamos trabalhar para tornar as medidas de prevenção possíveis para todos, principalmente os mais vulneráveis. Políticas públicas precisam balizar nossa convivência para permitir o funcionamento de atividades e comércio sem que isso coloque em risco as nossas vidas.

Quando a vacina finalmente chegou, graças à colaboração mundial de cientistas e agências regulatórias, nos vimos novamente diante de dilemas que representam um reflexo da nossa humanidade.

Posicionamento feito pelo comitê de bioética do Hospital Sírio-Libanês no fim de janeiro deixou claro que é dever ético da sociedade ter a vacina distribuída segundo critério de saúde pública, que poderá garantir que os mais vulneráveis terão acesso prioritário ao imunizante.

O papel da iniciativa privada deve ser o de auxiliar o governo nesse papel, nunca de substituí-lo na tarefa.

Enquanto tivermos uma escassez de vacinas no mundo, 100% das que forem adquiridas ou produzidas no Brasil devem ir para o poder público.

A realidade dos fatos é dura, e pode ser vista, porém não é enxergada por todos. Pois ao testemunhar as cenas de pessoas sem oxigênio em Manaus, temos que reconhecer o quanto nossos atos têm consequência, o quanto somos responsáveis pela fragilidade da vida humana.

De que adianta a melhor ciência do mundo se não temos leitos nos hospitais e oxigênio para os pacientes.

Queremos todos voltar para a vida que conhecíamos em 2019, mas em 2021 vamos viver uma realidade nostálgica. Nos idos de 2019, podíamos frequentar shows, visitar os pais e avós, podíamos viver em sociedade.

O dia vai chegar quando poderemos viver novamente numa realidade próxima ao que tínhamos conhecido, mas, se não assumirmos agora a conduta de cidadãos do mundo, não teremos aprendido com os erros para contermos essa e evitarmos a próxima pandemia.”