Educação

“A pandemia desmistificou o uso da tecnologia para o aprendizado”

O fundador da Ânima Educação diz ainda que a internet precisa fazer parte da infraestrutura básica como água, luz e esgoto

“O ano de 2020 foi cheio de desafios e, quando a pandemia começou, escolas e faculdades se viram obrigadas a, do dia para a noite, descobrir como educar seus alunos de maneira 100% online.

A solução encontrada foi a digitalização do processo presencial. O professor transferiu a aula que daria pessoalmente para o universo digital em um curto espaço de tempo tendo que se preparar rapidamente para essa nova realidade apresentada.

Entretanto, o mais grave foi que o ensino à distância se apresentou como possibilidade somente para quem tinha acesso à internet, e este é um problema que precisa ser resolvido.

A infraestrutura básica não pode ser mais só água, luz, esgoto. A internet tem que entrar no pacote, porque, sem este acesso, as pessoas ficam à margem da sociedade.

De dentro das escolas foi possível perceber que um abismo se abriu entre os alunos das escolas privadas e os das escolas públicas.

Não é só o acesso à internet que precisa mudar. No mundo da educação, muito ainda precisa ser feito para alcançarmos o verdadeiro ensino à distância. Usamos muito mal a tecnologia.

O que temos visto é uma digitalização do velho, mas o que precisamos fazer é criar o digital, é criar o novo, a tecnologia a partir de outras metodologias, a possibilidade de analisar os dados.

Muitos põem a culpa no distanciamento para dizer que as aulas virtuais não são boas. Mas não é este o problema.

Quando estamos interagindo com alguém em uma videoconferência, estamos distantes, mas estamos olhando no olho, estamos dentro da casa da outra pessoa. Isso é estar perto.

Diferentemente disso, numa palestra com duas mil pessoas, onde só conseguimos ver quem está falando pelo telão, dizemos que se trata de uma experiência presencial.

Minha visão é que esse conceito de “à distância”, de lugar, de espaço, de tempo, vai mudar completamente.

A escola será híbrida, fluida, indissociável. Antes da pandemia, quantos por cento do nosso tempo era presencial e quantos por cento, à distância? A gente não sabe, porque tornou-se algo fluído. A tecnologia tem que ser vista dessa maneira.

Antes mesmo da pandemia, o EAD — que só era permitido no ensino superior — já se mostrava ultrapassado. As técnicas adotadas pela maioria das faculdades são as mesmas da época em que se fazia o curso por correspondência, na década de 1970.

Dão ênfase à transmissão de conteúdo sem levar em consideração a experiência e o aprendizado do aluno. Praticamente o que mudou em 50 anos foi apenas a maneira de acessar as aulas: em vez da fita cassete, um website. 

O que podemos tirar de positivo dessa pandemia é que ela desmistificou, nos diferentes estágios de ensino, o uso da tecnologia para o aprendizado.

O ensino no ambiente digital deixou de ser visto como algo voltado para uma parcela específica da população e entrou na agenda de todos.

Estamos em uma nova realidade que exige de professores, alunos e do magistrado em geral uma reavaliação de todo o processo educacional – e temos a oportunidade de corrigir problemas estruturais nesse ambiente. 

A criação de um ensino à distância de qualidade passa primeiramente pelo entendimento e pela diferenciação entre a educação síncrona e assíncrona. 

Em um modelo ideal, a aula assíncrona é aquela cujo objetivo é transmitir o conteúdo. Ela pode ser gravada e editada, para se tornar mais interessante. O aluno estuda esse conteúdo no período em que preferir e quantas vezes precisar.

Já os momentos síncronos são aproveitados para tirar dúvidas com o professor e discutir os aprendizados com os colegas.

O PowerPoint vai ser substituído, quem sabe, pela videoconferência – um professor pode chamar alguém que vai fazer uma aula junto com ele. Isso vai diminuir as distâncias de tempo e de espaço.  

A tecnologia será usada para criação de comunidade e aprendizado, vai ajudar a redefinir metodologias. Realmente acredito que os professores serão os grandes artífices dessa transformação e as escolas, as grandes locomotivas.

Para chegar a esse modelo, entretanto, ainda temos alguns desafios. Um dos principais é a maneira como o MEC analisa o ensino. É preciso revisitar as métricas e os indicadores de qualidade para permitir inovações nos métodos empregados por escolas e professores.

O MEC também deveria provocar, incentivar e valorizar as escolas públicas e seus professores não apenas pelo tempo de casa e sim por sua experiência profissional e sua capacidade de inovação. 

Acredito que cada vez mais será necessária a inteligência de dados para mensurar a eficiência do ensino. Seria perfeito que cada escola tivesse um indicador de quanto os alunos estão aprendendo durante o tempo que estão na escola.

Considerando os grandes avanços tecnológicos que tivemos em 2020, creio que não demorará muito para isso se tornar realidade.

Outro desafio está na própria estrutura organizacional das instituições de ensino. Com cargos extremamente hierárquicos e culturas da década de 1950, tanto nas escolas públicas quanto nas privadas, é necessária uma mudança para uma estrutura organizacional ágil que o mundo digital requer. 

No caso das universidades, está cada vez mais claro que elas não podem servir apenas para entregar conteúdo.

Atualmente, todo o conteúdo de que precisamos está de graça na internet.  As instituições educacionais precisam ser o espaço para que alunos confrontem pensamentos, criem empatia e aprendam a fazer escolhas. 

Diante de um mercado de trabalho cada vez mais dinâmico, mais do que formar profissionais com conceitos que podem rapidamente se tornar obsoletos, as instituições precisam oferecer uma gama de oportunidades e ajudar seus alunos a desenvolver capacidades comportamentais.  

A disrupção digital na educação não é um fenômeno brasileiro. Como em tantos outros setores tradicionais, é um movimento global e que só vai crescer nos próximos anos.

O Brasil tem uma chance única de sair na frente. Isso porque, em países desenvolvidos, ainda há modelos de ensino que funcionam e que são aclamados internacionalmente.

Como a lógica sempre é a de não mexer em time que está ganhando, as mudanças educacionais em países desenvolvidos devem levar um tempo.

Já no Brasil, como os nossos sistemas já não funcionam como estão, podemos aproveitar a oportunidade para rever e adequar o processo de ensino de acordo com a evolução tecnológica e digital.

Inclusive, fazer desta oportunidade uma solução ideal para as pessoas que sonham em obter um diploma e precisam conciliar as atividades do dia a dia sem deixar de estudar.  

Sobre o formato dos cursos em si, o ensino pós-pandemia não é presencial e nem digital. Ele precisa ser híbrido. É isso o que sempre entendemos aqui na Ânima e por isso não enfrentamos problemas na pandemia.

O ensino híbrido é fluido e integrado. Neste formato, é preciso definir o melhor processo de aprendizagem para cada tipo de conteúdo.

O processo pode ser em uma sala de aula utilizando o storytelling, em um laboratório com aplicações práticas ou por meio da tecnologia.

A tecnologia para o processo de aprendizagem, ao contrário do que muitos pensam, não é necessariamente algo digital. É tudo aquilo que aprimora ou facilita alguma prática. Tecnologia pode ser até mesmo uma cadeira ou uma simples caneta.

A pandemia nos trouxe a chance de nos mexermos. Esta é a oportunidade de chegarmos em um estágio em que a escola terá deixado de ser o lugar que entrega conteúdo para ser o local que desenvolve competência e faz as pessoas evoluírem.

Ir à escola será um prazer e não uma obrigação. Não podemos desperdiçá-la.”

Depoimento a Letícia Toledo