Setor de crédito no Brasil está em alerta máximo, com endividamento e inadimplência elevados

Inflação em alta, juros elevados e perspectivas negativas sobre a economia motivam programas de renegociação, como o futuro Desenrola

Roberto de Lira

Publicidade

O Brasil pode não estar ainda em uma plena crise de crédito, quando os agentes financeiros fecham de vez as portas para a concessão de empréstimos, mas especialistas alertam que o País já entrou numa fase de alerta máximo, com tendência de alta de endividamento das famílias e elevação da inadimplência de pessoas e empresas, em meio a condições de renegociação de dívida cada vez mais desfavoráveis.

O atual descontrole tem origens ainda durante o auge da pandemia de covid-19, em meados de 2020. A falta de liquidez gerada pela queda na circulação de pessoas fruto da crise sanitária obrigou a decisões de vasta liberação de recursos.

As pessoas tiveram acesso aos auxílios emergenciais, as empresas pequenas e médias ganharam a linha de crédito do Pronampe e a alíquota de recolhimento compulsório dos depósitos à vista no bancos recuou de 31% no início de 2020 para até 17% em 2021.

Continua depois da publicidade

O resultado de todo esse quadro foi que as pessoas físicas se sentiram incentivadas a contrair dívidas relacionadas ao consumo de bens e serviços e as empresas aproveitaram para ficar mais alavancadas para financiar projetos de expansão e de modernização tecnológica.

Um fator importante é que o a taxa básica de juros, a Selic, estava em confortáveis 2% ao ano até março de 2021, o menor patamar histórico.

Com a alta da inflação, primeiro motivada por quebras na cadeia global de suprimentos e depois por uma série de eventos que vão desde a plena retomada da atividade econômica após a chegada das vacinas até os efeitos da guerra na Ucrânia nos preços das commodities, o Banco Central teve de praticar contínuas altas nos juros – em agosto passado, a Selic chegou aos atuais 13,75%.

Continua depois da publicidade

A soma de fatores como desemprego ainda alto, inflação em rota ascendente e juros restritivos passou então a acelerar uma tendência de endividamento das famílias e de dificuldades de pagamento pelas empresas que ainda não deu mostras de arrefecimento.

Endividamento e inadimplência

Segundo a Serasa Experian, já no final de 2021, o nível de endividamento das empresas brasileiras atingiu um patamar recorde de 57,9% do total, o maior da série histórica iniciada em 2008. Entre os setores mais afetados estavam os de Comércio e Serviços, ambos com expansões de mais de 10 pontos porcentuais ante o ano anterior.

Para as pessoas físicas, a conjuntura se mostrou ainda mais brutal: em janeiro de 2023, o indicador de inadimplência da Serasa apontou para 70,09 milhões de brasileiros com dívidas em atraso, que somavam um montante de R$ 323,2 bilhões.

Continua depois da publicidade

“Não estamos vivendo uma crise de crédito, mas um ciclo de alta da inadimplência que faz com que o crédito cresça mais lentamente do que presenciamos ao longo destes últimos três anos”, afirmou o economista da Serasa, Luiz Rabi.

Os dados que a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) divulgaram nesta quarta-feira (8) confirmam a situação.

O percentual de famílias que relataram ter dívidas a vencer – que incluem cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, crédito consignado, empréstimo pessoal, prestação de carro e da casa – bateu em 78,3%.

Continua depois da publicidade

Desse total, 17,1% consideravam-se muito endividadas, indicador que voltou a crescer após quedas desde novembro do ano passado. E a proporção de consumidores sem condições de pagar dívidas atrasadas de meses anteriores chegou a 11,6% do total, a mais alta desde outubro de 2020.

Izis Ferreira, economista da CNC, alerta que a média de 78% das famílias brasileira em situação de endividamento que foi atingida em 2022, nunca havia sido registrada antes. E que há um círculo vicioso porque, com a inadimplência em alta, são reduzidas as chances de os juros do mercado caírem.

“As pessoas que já estão inadimplentes não conseguem pagar porque o valor da dívida aumenta muito rápido. A CNC deu um sinal de alerta ainda no início de 2022, mas os bancos só reportaram isso bem depois. Estamos falando de uma tendência porque a inadimplência deve permanecer alta, segundo as projeções”, alertou a economista.

Continua depois da publicidade

Empresas alavancadas

Izis comentou ainda que as empresas também estão alavancadas e, com o atual patamar das taxas de juros, estão com dificuldades para pagar suas dívidas.

“Os dados mais recentes do BC mostraram que o crédito cresceu mais para as empresas do que para as pessoas físicas e as empresas pequenas têm custo até maior para o carregamento dessas dívidas”, comparou.

No final de fevereiro, o Banco Central divulgou em seu relatório mensal que o seu Indicador de Custo do Crédito (ICC), que mede o custo médio de todo o crédito do Sistema Financeiro Nacional, atingiu 21,9% anuais em janeiro, com alta de 0,4 pontos porcentuais no mês e 3,0 p.p. em 12 meses.

A inadimplência da carteira de crédito do SFN atingiu 3,2% em janeiro, o que significou uma alta mensal de 0,2 p.p. e interanual de 0,7 p.p.

Esse quadro foi uma das explicações para que o saldo do crédito do Sistema tivesse caído para R$ 5,3 trilhões em janeiro, uma redução de 0,3% no mês. O volume de crédito para as empresas caiu em proporção maior e diminuiu 2,4% ante dezembro, totalizando R$ 2,1 trilhões. Na comparação anual, o saldo com as empresas desacelerou para 7,9%, ante 9,0% no mês anterior.

Em relatório, o Credit Suisse comentou que os dados indicaram tendências de crescimento de empréstimos mais lentas para 2023, em linha com a orientação dos bancos para o ano, especialmente no segmento de atacado.

“A qualidade dos ativos confirmou as expectativas de um início de ano impactado, dada a sazonalidade negativa no maior serviço de dívida (e impostos) no varejo”, comentou o banco.

A economista da CNC destacou que o grande varejo sente a atual conjuntura nas duas pontas, porque além de tomador de crédito junto aos bancos, possui empresas de crédito ao consumidor.

“Atravessa grande crise porque está mais caro e arriscado para ele financiar o consumidor e este pretende comprar menos porque está endividado. Vão investir menos, reduzir planos de expansão e contratar menos”, comentou.

Provisões e perdas

De fato, algumas grandes varejistas com o capital aberto na Bolsa têm divulgado dados preocupantes. O Magazine Luiza, por exemplo, divulgou em seu balanço até setembro de 2022 que sua perda com créditos de liquidação duvidosa cresceu 82% ante o ano anterior, de R$ 98,3 milhões para R$ 178,9 milhões.

Além disso, a inadimplência de sua carteira de crédito para dívidas de 15 a 90 dias estava em 3,4% no final de setembro, ante 2,1% no mesmo período de 2021, 1,8% em 2020 e 2,7% em 2019 (antes da pandemia).

A carteira superior a 90 dias, por sua vez, estava com taxa de inadimplência de 8,9% em setembro. Em 2021, ano considerado atípico, a taxa era de 4,9%, mas em 2020 estava em 8,6% e, em 2019 atingiu 8,8%.

Na Via, por sua vez, a provisão para devedores duvidosos chegou a R$ 658 milhões, ou 11,7% da carteira ativa no terceiro trimestre de 2022. A perdas sobre a carteira chegaram a R$ 328 milhões, ou 5,8% do total, a maior desde o 3° tri de 2020.

Nos comentários sobre o balanço do 3° trimestre, a companhia disse que considerava a inadimplência sob controle e com aumento inferior quando comparamos com outros players de mercado.

A taxa acima de 90 dias, disse a Via, seguiu praticamente estável em relação ao reportado no trimestre anterior, o que refletiu em um índice de cobertura de 11,7%, inferior em 1,1 ponto percentual se comparado a 2021.

Mas na época, André Calabro, CEO do banQi, braço financeiro da varejista, comentou que a inadimplência acima de 180 dias, que é onde se define a perda, houve uma deterioração no período.

“A gente sentiu, assim como o mercado, nessas faixas de atraso um pouco mais elevadas, a uma maior dificuldade de o cliente poder renegociar. Então mesmo assim a gente sentiu um pouco dessa dificuldade. (…) A gente vê muita inadimplência descolando em mercado muito focado em cartão de crédito, muito focado num produto rotativo”, comentou.

Renegociar é o mantra

A pergunta mais frequente que se faz no setor é: como sair dessa situação? A resposta pode parecer simples, mas chegar ao resultado não. Segundo Luiz Rabi, da Serasa, para que o ciclo de alta da inadimplência seja revertido é necessário que aquilo que o desencadeou também se reverta, ou seja, a alta da inflação.

“Foi justamente quando a inflação anualizada ultrapassou a casa dos 10% anuais, a partir do segundo semestre de 2021 que a inadimplência entrou numa tendência de alta. Normalizá-la irá demorar o tempo que for necessário para que a inflação retorne ao patamar de suas metas”, disse o economista.

Enquanto esse momento não chega – e os economistas consultados apontaram que um posicionamento mais ativo do governo federal sobre o quadro fiscal é essencial no processo -, cabe aos agentes incentivarem programas de renegociação de dívidas, junto com uma melhor educação financeira.

Rabi acredita que as renegociações vão conseguir dar uma certa aliviada neste processo, enquanto a inflação não converge para um patamar mais condizente com a meta do BC.

“Uma pessoa inadimplente hoje deve, em média, para 3 ou 4 credores diferentes. É muito difícil sair, então, desta situação quitando à vista todas estas dívidas. Renegociações com um ou mais destes credores fatalmente deverão ocorrer”, explicou.

Segundo o economista, no último Feirão Limpa Nome da Serasa, mais de 7 milhões de contratos de renegociação foram executados, totalizando R$ 5,82 bilhões.

Izis Ferreira, da CNC, lembrou da importância de programas de renegociação não só para as famílias endividadas, que têm visto sua renda comprometida, mas também para quem fornece o crédito. “A inadimplência alta não boa para ninguém: o credor também precisa receber” comentou.

Ambos os economistas também dão grande importância a agregar princípios de educação financeira nos processos de renegociação. “É preciso uma conscientização de que não adianta só tirar o nome do cadastro negativo. Na negociação, as pessoas têm de pensar no limite do cartão, por exemplo, e que a dívida agora tem um juro maior”, disse.

Rabi comentou que as renegociações promovidas pelo Feirão da Serasa já fazem parte do conceito de educação financeira, já que saber renegociar é um caminho fundamental para os consumidores que estão com o nome no vermelho. Ele listou ainda iniciativas para as pessoas cuidarem de suas finanças, como o curso Trilha Financeira e o canal do Youtube Serasa Ensina.

Desenrola

Há uma esperança que o programa federal Desenrola, a ser anunciado pelo governo federal em breve, ajude pelo menos à população de renda mais baixa.

A última Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da CNC mostrou que, em fevereiro, 37,9% das famílias que assumiram estar endividadas estavam na faixa de renda de 1 a 3 salários-mínimos, mesma taxa das famílias que admitiram que não terão condições de pagar esses débitos.

As primeiras informações dão conta que que essa faixa de consumidores deve ser atendida prioritariamente pelo Desenrola.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse nesta semana que o programa contará com um fundo garantidor criado pelo governo federal na faixa de R$ 10 bilhões, a ser considerado para pessoas com renda mensal de até dois salários mínimos. Ele estimou que o programa deve abarcar R$ 50 bilhões em dívidas de 37 milhões de CPFs negativados.

O economista da Serasa elogiou a iniciativa, mas confessou ter dúvidas sobre como o programa será operado. “Toda e qualquer iniciativa que facilite a renegociação das dívidas e restabeleça o crédito do consumidor é válida, porém não temos informações objetivas deste programa governamental para efetuarmos uma análise mais detalhada”, disse Rabi.