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O futuro do Mercosul passou a ser fortemente debatido desde a vitória do ultraliberal Javier Milei na disputa do segundo turno da eleição presidencial da Argentina. Não só pela agressiva retórica da campanha do libertário economista argentino, mas também porque ele possui uma proximidade ideológica com o presidente uruguaio Luis Lacalle Pou, que tem batido de frente com os governos dos sócios do bloco comercial. Mas especialistas ouvidos pelo InfoMoney dizem que mudanças extremas nas relações, como um rompimento, são difíceis de acontecer.
Pou defende uma flexibilização de regras, que permitam ao seu país negociar um acordo e livre comércio com a China, mas isso afronta o arcabouço jurídico do Mercosul, comenta Marcio Sette Fortes, professor licenciado do Ibmec e atualmente visiting researcher do Interamerican Defense College, em Washington.
Ele lembra que o modelo que rege o Tratado de Assunção, o documento fundador do bloco, e as resoluções específicas adotadas ao longo das últimas três décadas, é o chamado de 4 + 1. Ou seja, hoje Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai devem negociar acordos de natureza comercial de forma conjunta.
“Veja, por exemplo, o famoso acordo Mercosul-União Europeia, que se desenrolou por mais ou menos duas décadas. Para que ele pudesse ser delineado, ele devia atender às necessidades dos quatro membros plenos. E foi feito assim”, explica.
Sette Fortes admite que qualquer ordenamento de bloco econômico traz necessidades de pedidos de atualização por seus membros ao longo do tempo, mas que o pleito do Uruguai não se enquadraria numa flexibilização, como em pedidos de mudanças na Tarifa Externa Comum (TEC), por exemplo.
“Não é um pedido de atualização, é uma necessidade que o Uruguai vislumbrou em conseguir com a China determinadas facilitações de comércio que lhe seriam muito proveitosas. Mas ele não teria do direito a negociar livremente fazendo parte do Mercosul. Há aí, portanto, um paradoxo: ou ele decide fazer parte do Mercosul ou ele negocia livremente. Porque negociar livremente não faz parte dos acordos do Mercosul”, detalha.
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O professor, que já foi diretor do Brasil no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), destaca que o Mercosul é uma união aduaneira e que, para permitir que algum de seus membros possa negociar livremente fora do modelo 4+1, o bloco teria dar um passo atrás na escala de integração, eliminar a TEC, e voltar ao estágio anterior, que é o de zona de livre comércio.
“Numa zona de livre comércio, tem acordos preferenciais de comércio entre os membros, mas eles podem fazer acordos comerciais com terceiros países, como seria o caso do Uruguai com a China. Seria necessário o Mercosul retroceder no seu processo integracionista, deixando de ser uma união aduaneira, com a TEC de lado, e voltando a ser apenas uma zona de livre comércio”, detalha.
Voz isolada
Thiago Schwinke Vidal, diretor de Análise Política da Prospectiva, acredita que a aproximação ideológica de Milei com o presidente uruguaio cria um fator adicional de incerteza, uma vez que, até agora, o governo Lula tem conseguido segurar a insatisfação do parceiro.
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O analista diz que Lacalle Pou foi o principal beneficiado da eleição de Milei na Argentina, ao menos do ponto de vista dessa relação regional. “Nas críticas que ele vinha fazendo ao Mercosul desde sua eleição e também ao que ele chama de excesso de ideologia na relação da América do Sul, ele vinha sendo uma voz isolada na região nesse sentido. E agora isso muda com a vitória do Milei”, explica.
Para Vidal, Pou ganhou um aliado e pode ser que isso se traduza numa elevação da temperatura do Mercosul. “Por outro lado, a gente tem que lembrar que o Uruguai também vai ter uma eleição em 2024, em outubro. E, nas pesquisas, a esquerda está pontuando melhor. A gente sabe que, em ano eleitoral, é difícil ter grandes mudanças. Pode ser que a eleição no Uruguai acabe servindo como uma variável de freio a mudanças mais disruptivas ao Mercosul”, prevê.
Ele destacou ainda que Milei precisaria do apoio do Congresso de seu país para mudar a participação no bloco, por se tratar de um acordo internacional. “O tratado é ratificado pelo Congresso e, portanto, isso não pode ere feito unilateralmente pelo governo. Acho que avizinha-se um tempo de esfriamento da relação, o que é negativo, mas não se traduz num rompimento”, comenta.
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Lucas Mesquita, professor adjunto na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), também vê grande dificuldade em mudanças profundas na configuração do bloco econômico. “O processo de decisão do Mercosul para mudanças na sua estrutura e organização precisa do apoio dos seus quatro membros. Mas com a mudança política na Argentina e com a questão do Uruguai, o que pode acontecer são ajustes”, afirma.
Mesquita afirma ainda que a saída de um país de qualquer bloco de integração regional que já tenha uma trajetória como a do Mercosul é difícil, principalmente do ponto de vista econômico.
“Já tem uma cadeia produtiva que se estabeleceu e funciona baseada nos parâmetros gerados pela integração regional. Produtos são fabricados para a exportação no bloco. Uma saída brusca é quase impossível, impacta setores industriais e econômicos. Basta observamos quão difícil vem sendo a saída da Inglaterra da União Europeia”, compara.
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Já Sette Fortes destaca que o processo fundador do bloco, em termos jurídicos, é um tratado internacional. E que a ratificação desse acordo, ou seja, a internalização de seu acordo arcabouço jurídico, foi aprovada pelo Congresso de cada país.
Para sair, seria necessário fazer uma “denúncia” do tratado internacional. “O país é livre para fazer suas escolhas. Basta buscar a denúncia do tratado internacional. Mas aí, ao sair do bloco ele ganha as vantagens que ele deseja (com a China, no exemplo do caso do Uruguai), mas perderia as vantagens que tem com o Mercosul. Cabe a ele colocar na balança o que é melhor em termos de longo curto prazo, mas também de longo prazo”, argumenta.
O professor licenciado do Ibmec avalia que, estratégica e politicamente é importante pensar o que acontecerá com o Uruguai nessa questão da ampliação de relacionamento com a China. “Se isso conduz a ganhos de curto prazo ou se isso conduzirá, apesar dos ganhos de curto prazo a possíveis situações de dependência no longo prazo. Isso é uma questão estratégica que cada país teria que pensar ao fazer um acordo com um gigante comercial do tamanho da China”, diz.
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Muito além do comércio
Sobre essa ponderação de perdas e ganhos, Sette Fortes lembrando que os blocos econômicos não são fundados apenas em acertos comerciais. “Existem outra categorias de acordos que são feitos entre países de blocos econômicos para que possam ter vantagens. Não são apenas vantagens aduaneiras. Há vantagens de investimentos, de transferências de tecnologia, de transição e cruzamento fronteiriço de mão de obra, de segurança internacional entre as polícias dos países membros”, lista.
“A esfera comercial é apenas uma delas, claro que importantíssima porque afeta os resultados da balança comercial do país e com isso afeta o saldo de transações correntes e as contas externas do país. Obviamente é uma faceta das mais importantes, mas não se resume a ela apenas”, completa Sette Fortes.
Mesquita, da Unila, concorda que uma proposta de saída ou permanência no bloco precisar equilibrar essas questões. “O Mercosul hoje é mais do que um arranjo comercial e é preciso considerar a permanência no bloco com essa perspectiva também. Do ponto de vista comercial o bloco gera vantagens para todos os países, mas precisamos também considerar que a integração já tem uma importância para além da economia”, afirma.
“Há aspectos políticos e sociais que também são importantes. O bloco tem atuado em áreas importantes de integração social e política. Podemos citar exemplos como o livre trânsito, que impacta no turismo, no trabalho, na educação, na saúde, e na própria economia”, detalha.
O professor da Unila vê com naturalidade pedidos de mudanças nas negociações intrabloco. “A formação de blocos regionais gera dinâmicas específicas para a atuação dos países na política internacional, mas ela não é um processo estanque e fixo e sim em constante mudança, porque os interesses dos estados que o compõem se alteram também”, afirma.
“O Mercosul de hoje é totalmente diferente do que foi criado nos anos 1990, principalmente porque o mundo é outro, as agendas são outras, os interesses dos Estados, tanto do bloco, quanto os demais, seja da região ou mundo, são outros. A complexidade da integração reflete a própria complexidade da política internacional.
Segundo ele, a atuação da China na busca por acordos bilaterais é um desses elementos de complexidade da política internacional. “A presença chinesa tem alterado a lógica dentro da negociação intrabloco, principalmente a partir das demandas uruguaias, que busca a partir da negociação com a China buscar vantagens intrabloco”, diz.
Para Sette Fortes, o assunto dos blocos econômicos e das negociações internacionais é “um tema vivo, quase orgânico”. “Nós vemos isso evoluindo todo dia, como se fosse um ser vivo que vai passando por transformações. Há uma visão organicista da cosia. Os interesses dos países mudam, à medida em que eles se relacionam com outros países e recebem novas ofertas e possíveis novos ganhos”, conclui.