“Eleitores nos EUA vão decidir entre duas visões diferentes de sociedade e de governo”, diz ex-embaixador Sérgio Amaral

Escolha não significa apenas eleger um candidato, mas modelos de sociedade muito diferentes, que terão impacto no livre comércio e meio-ambiente

Roberta Paduan

Ex-embaixador Sérgio Amaral (Fonte: Conselho Empresarial Brasil-China)
Ex-embaixador Sérgio Amaral (Fonte: Conselho Empresarial Brasil-China)

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Toda eleição presidencial americana é acompanhada com atenção no mundo inteiro. O pleito de 3 de novembro, porém, já pode ser classificado como histórico, não apenas para os americanos, mas para o mundo todo, incluindo o Brasil.

“Os eleitores não vão decidir apenas entre dois candidatos, mas sobre duas visões muito diferentes de sociedade e de governo”, afirma Sérgio Amaral, ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos e ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.

Segundo Amaral, o que está em jogo é o futuro, pelo menos o futuro próximo, do livre comércio e do tratamento dado ao meio-ambiente, temas vitais e que ultrapassam qualquer fronteira. No caso do Brasil, a derrota do Republicano Donald Trump representaria uma condenação de políticas adotadas pelo governo Jair Bolsonaro, que ficaria ainda mais isolado do que já está.

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Na entrevista a seguir, Amaral também avalia as relações Estados Unidos com a China e critica a postura do governo brasileiro na visita do secretário de estado americano Mike Pence, que esteve em Roraima há uma semana e fez ameaças à Venezuela em seu discurso.

O que as eleições americanas de 3 de novembro podem significar para o Brasil?

Para o governo Bolsonaro, a eleição de Trump seria importante porque ele respalda, de certa forma, muitas políticas que o presidente brasileiro tem adotado. A ideia do nacionalismo, da oposição a movimentos organizados, a partidos de esquerda, a indiferença em relação a alguns aspectos da pandemia, a defesa do armamento da população. Existe uma série de políticas que ambos adotaram, e uma derrota do Trump repercutiria como uma condenação de políticas que também foram adotadas aqui. Se Trump perde, o governo brasileiro tende a ficar mais isolado do que já está.

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O que o alinhamento brasileiro com os Estados Unidos trouxe de benefício até agora?

Os ganhos são muito modestos e, em alguns casos, o Brasil fez concessões, como no do etanol, sem ter recebido vantagens semelhantes (recentemente, o Brasil isentou de impostos a importação de 200 milhões de litros do biocombustível americano, apesar de os Estados Unidos terem cortado 80% das importações de aço brasileiro). Há a expectativa de apoio à entrada do Brasil na OCDE, mas isso vai depender de todo um processo de negociação, que ainda nem sequer começou. É uma troca que tem sido desfavorável para o Brasil até o momento.

O que significa em termos de relações internacionais a visita do secretário de estado americano, Mike Pompeo, à sede da Operação Acolhida, em Roraima, que acolhe refugiados venezuelanos (a visita ocorreu em 18 de setembro)?

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Foi uma prática inusitada, porque nós (diplomacia brasileira) somos muitos ciosos (do princípio) da não intervenção na ordem interna de outros países, sobretudo de vizinhos. Quando o vice-presidente Mike Pence veio ao Brasil, há dois anos, ele já queria fazer um pronunciamento na fronteira com a Venezuela, mas o governo brasileiro, com muito jeito e respeito, mostrou que não seria adequado, e a visita não aconteceu.

Dessa vez, o próprio ministro das Relações Exteriores (Ernesto Araújo) esteve presente na manifestação, que incluiu uma ameaça ao governo da Venezuela. Isso compromete o princípio da não intervenção, e um ato que viola esse princípio não deveria ser tolerado, sobretudo porque ele se prestou a um ato de campanha para o presidente Trump. Portanto, o Brasil praticou também uma intervenção no processo político-eleitoral dos Estados Unidos, em apoio explícito a um dos candidatos.

Houve quem defendeu a visita de Pompeo, alegando que o Brasil deveria se posicionar contra a Venezuela, não contra os Estados Unidos.

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O Brasil tomou, sim, medidas de repúdio ao desrespeito e à violação dos direitos humanos e da democracia na Venezuela. Foi o primeiro país, inclusive, a propor a suspensão da Venezuela do Mercosul e apoiou todas as medidas tomadas no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos) contra o governo de Nicolás Maduro.

Quais seriam as consequências no campo econômico para o Brasil no caso da vitória de Trump e no caso da vitória de Biden?

É difícil avaliar, mas não acredito, por exemplo, que o Biden adotaria medidas hostis contra o Brasil, caso fosse eleito. Mas tem de ver que boa parte do eleitorado que o apoia é composta por pessoas que têm um compromisso muito forte com questões ambientais. Essas pessoas certamente vão exercer pressões na opinião pública, no Congresso, para que o governo americano adote medidas mais rigorosas em relação à Amazônia e ao processo de desmatamento. E isso pode gerar perdas econômicas para o Brasil.

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Quem tem mais chances de vencer as eleições com o cenário que temos hoje?

No início do ano, parecia provável que Trump ganharia, sobretudo, pelos resultados da economia. A partir da Covid-19, as chances dele foram diminuindo, porque não só os resultados do combate à pandemia foram desastrosos, como também o comportamento da economia reverteu. O número de desempregados aumentou substancialmente e os Estados Unidos terão uma recessão, e grande, em comparação com alguns países desenvolvidos.

Esses foram os pontos que mais pesaram contra Trump no processo eleitoral e explicam por que Biden conseguiu uma vantagem nas pesquisas de opinião, da ordem 10% a 12%, há cerca de um mês, e da ordem de 8% a 10% mais recentemente. Portanto, Trump fez algum progresso no sentido de diminuir a diferença que havia, mas é bom lembrar que o sistema eleitoral americano não tem a correspondência necessária entre os votos de caráter geral e os votos dos delegados dos estados.

Os estados têm sistemas próprios e, na maioria deles, quem tem mais votos ganha todos os delegados. Isso pode ser desfavorável para a candidatura de Biden, como foi desfavorável para Hillary Clinton, em 2016, quando ela teve a maioria dos votos, mas não teve a maioria dos delegados do colégio eleitoral.

É possível dizer que a eleição americana deste ano é uma eleição histórica?

Sem dúvida. O que os eleitores serão chamados a escolher não é apenas um candidato ou outro, mas pessoas que defendem visões de sociedades muito diferentes. A visão de Trump aposta no radicalismo, na diferença, na ameaça, no risco, enquanto o Biden procura caminhar para o centro, em direção à convergência e de um governo que irá buscar um equilíbrio maior na sociedade.

A sociedade americana vem manifestando alguns sintomas de mal estar. Uma parcela importante da população não tem acesso à cobertura de saúde, apesar de os Estados Unidos serem uma nação desenvolvida e rica. São algo entre 30 e 40 milhões de cidadãos americanos que não têm seguro de saúde. Há também uma inquietação diante da violência nas escolas, nas ruas, do aumento das pessoas na prisão, do aumento da discriminação racial, com uma série de episódios recentes. Existe uma série de sinais dizendo que as coisas não estão caminhando bem. Nessa eleição os eleitores vão decidir entre duas visões diferentes de sociedade e de governo.

Mas a eleição anterior, em que Trump ganhou de Hillary Clinton, já não foi uma escolha entre duas visões de mundo?

Sim, é verdade. Se nós voltarmos aos debates da campanha passada, de 2016, vamos ver que a Hillary disse várias vezes que o eleitor estava diante de uma opção histórica. E, sim, vários dos sintomas que a sociedade manifesta hoje já eram manifestados em 2016. Só que passados quatro anos e também por causa do tipo de estratégia político-eleitoral de Trump, que é a da radicalização, esses sinais se agravaram e estão hoje mais fortes. E a radicalização também é hoje mais forte.

Fora os Estados Unidos, o que o pleito de 3 de novembro pode significar para o mundo?

Essa eleição terá repercussões muito fortes e em vários campos. Dará sinais muito fortes a vários países que enfrentam situações semelhantes. Estamos num momento em que apostas que foram convergentes na grande maioria dos países, como o livre comércio, estão sendo colocadas à prova. E nos Estados Unidos, além da visão tradicional do partido Democrata ser mais protecionista, as posturas de Trump, em matéria de livre comércio, também foram protecionistas. Se a sociedade americana reafirmar essas posições protecionistas, vai, sem dúvida, reforçar a volta do protecionismo num grupo cada vez maior de países.

Em que outros campos o pleito americano pode afetar a comunidade global?

Essas eleições terão forte influência sobre o meio-ambiente. A Europa caminha para uma posição muito firme na defesa ambiental, através do que eles chamam de Green European Model (Modelo Europeu Verde, em livre tradução para o português). Se a sociedade americana escolher Trump, devemos assistir a continuidade da atual política ambiental e de luta contra a (existência das) mudanças climáticas. Se Biden for eleito, vai formar uma aliança muito poderosa de defesa do meio-ambiente e de luta contra as mudanças do clima. E Estados Unidos e Europa terão muito peso no mundo, em relação a esse tema.

A vitória de Biden melhoraria as relações entre Estados Unidos e Europa?

Sem dúvida, uma vitória Democrata indica essa tendência de aproximação entre Europa e Estados Unidos. Hoje, as relações entre esses dois grandes e tradicionais aliados está um pouco estremecida por várias questões de política externa, como a questão do acordo sobre Irã (em 2018, Trump abandonou unilateralmente o acordo nuclear assinado com o Irã em 2015, contrariando a posição dos países europeus), há a questão da Nato (Aliança do Atlântico Norte), em que Trump critica os países europeus por não atingirem a meta de contribuição de 2% de seu orçamento.

Se Biden for eleito, poderemos assistir a uma reafirmação do multilateralismo. Se Trump for eleito, ele possivelmente continuará com sua visão de maior unilateralismo, o que significa maior autonomia dos Estados Unidos para a adoção de sanções, por exemplo, ou para a realização de acordos comerciais, que serão bilaterais, não multilaterais, como sempre prevaleceu no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC).

E qual deve ser o efeito sobre a China?

Certamente um dos campos de maior repercussão das eleições de novembro será sobre as relações com a China. Essa é uma questão dominante, porque possivelmente o fato mais importante desse início do século XXI é a emergência da China. Depois de ter passado pelo século XIX, que foi chamado de o Século da Humilhação; depois o século XX, que foi difícil, de guerra, de muita dificuldade econômica, hoje, a China vive a restauração do papel central que já teve no mundo, no período das dinastias.

A China quer o reconhecimento da sua emergência, do esforço e dos resultados que alcançou, seja na economia, seja na retirada de contingentes cada vez maiores da sua população do nível de pobreza. Deseja o reconhecimento da comunidade internacional pelas grandes mudanças e conquistas, apesar de feições autoritárias do seu regime.

A partir do momento em que os Estados Unidos perceberam a emergência da China com mais clareza, a postura de Trump foi a de conter essa emergência, através de medidas comerciais, medidas de tecnologia e mesmo buscando o decoupling, que Trump chamou como a separação das maiores economias, de forma a coibir transferência tecnológica para empresas chinesas.

Uma vitória de Biden mudaria as relações com a China?

Creio que seria muito difícil Biden introduzir mudanças substantivas na fase inicial do seu governo, dado o apoio que Trump conseguiu por parte da população à sua postura em relação à China. Se for eleito, Biden terá de respeitar o apoio que essas políticas de contenção da China granjearam de parte expressiva da população. Essa restrição do americano em relação à China foi criada em parte pela percepção do crescimento chinês em diferentes campos. Mas boa desse temor é também resultado de uma campanha feita por Trump e por alguns de seus ministros com vistas à eleição.

Nos últimos meses, o governo americano adotou quase que uma medida por dia de contenção à China. São medidas na área de comércio, de investimentos estrangeiros, medidas que restringem as exportações para a China, que se dirigem a autoridades chinesas, com suspenção de vistos, fechamento de consulados, medidas muito amplas e continuadas. Creio que isso aumentou o sentimento da população contra a China. Refiro-me ao sentimento nacionalista, que é uma base importante do apoio a Trump.

O senhor considera exagero ou pertinente a avaliação de muitos estudiosos da política que afirmam que Trump é uma ameaça à democracia americana?

Acredito que haja alguns sinais, sim, de autoritarismo, de cerceamento da liberdade de expressão, sobretudo a pressão permanente sobre o trabalho da imprensa. Mas, se existem certas tendências de Trump na direção do autoritarismo e do arbítrio, o fato é que as instituições americanas são fortes na defesa dos princípios democráticos. Acredito que na hipótese de ele ganhar, elas continuarão atuando também. Não sei como ficará se houver uma mudança na Corte Suprema pela designação de novos juízes.

Essa nomeação a toque de caixa parece oportunismo grosseiro e pouco político, não?

A lei permite que ele faça isso, mas é evidente que algumas práticas da boa convivência política não recomendariam que isso fosse feito, aliás, como Obama não fez (em 2016, nove meses antes das eleições, Barack Obama foi impedido pelo Senado de nomear o substituto do juiz Antonin Scalia, da Suprema Corte, morto em fevereiro, por ser ano eleitoral).

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Roberta Paduan

Jornalista colaboradora do InfoMoney